A INCRÍVEL HISTÓRIA DE MARÍA JUANA PILLAR DE LA CRUZ – (CAP II, III) – por Wander Lourenço

II

UNA CUENTA POR PAGAR

Naquela mesma noite, o negruzim Deolindo acordou-me com o repuxão de ansiedade, para cobrar-me pela promessa de entrega corpórea, em troca do arranjo da união conjugal com o comerciante Assir Lubbos, o Turco, que me propositara sobrenome árabe e situação familiar. Como palavra empenhada há de ser cumprida à risca, eu permiti que o escravo ladino se esbaldasse da carne fresca daquela ciganita Juana, até desmaiar feito animal feroz capturado em armadilha de mandíbula.

Não obstante, eu estava mui desconfiada de que o pretuzim Deolindo persistisse com a chantagem nupcial, de modo que ideei um plano de silenciamento do boquirroto, que consistia em acusá-lo de roubo e homicídio de todo o conteúdo do cofre do Manolo Negreiro, que roncava, às escâncaras, no aposento ao lado, mortificado pela carraspana de vinho vulgar. Nisto, assim que o negruzim recadeiro perdeu o fôlego pós-gozação, eu homiziei o relógio de bolso e algumas apoucadas moedas d’ouro em seu surrão, vindo a resguardar-me com o restante do espólio pecuniário do espanhol em sótão de sobrado.

Ao despertá-lo cuidadosamente, avisei o pretim Deolindo do perigo do castelhano nos pegar com a boca na botija em flagrante delito de alcova, pedindo-lhe que se apressasse a ir-se embora antes que o galo cantasse a sua toada de alvorecer. De aresto, o jubiloso Deolindo, assustado, vestiu-se desajeitadamente; e, ao despencar portal afora, já ia olvidando-se do bornal esfarrapado com o produto da afanação involuntária, quando eu lhe chamei atenção para que não deixasse rastros que viessem a despertar a suspeição do atraiçoado Manoelo Negreiro. Este, por sinal, não se dera conta da presença do escravo de estimação, apesar dos gemidos ruidosos do visitante clandestino, que me possuíra durante toda a noite sem armistício de respiração. Ao certificar-me da escapula do negruzim Deolindo, apossei-me do punhal de prata, para adentrar aposento do castelhano, com o intuito de assassínio contra a suposta vítima do preto ladrão, que se apossara do relógio de bolso e das moedas d’ouro de propriedade do castelhano. Neste meio tempo, sangrei-o, sem dó nem piedade, conquanto tivesse me apavorado com a golfada de sangue expelida da garganta do Manolo Negreiro, que ainda agonizava quando eu retirei-me da alcova, para, enfim, dormir o sono da alforriação.

Na antemanhã, os dragões da Intendência Geral de Polícia da Corte me acordaram com a fisgada rústica da ponta do sabre da baioneta, açoitando-me com a menção de aprisionamento pela acusação do crime de homicídio em detrimento da vida do espanhol Manolo Francesco Roiz, o Negreiro. Entrementes, ao espernear mediante arbitrariedade do gesto de aleivosia, atiraram-me, bruscamente, sobre o catre da alcova; e, ao me esbofetearem com a palma da mão da Justiça, acusaram-me de “assassina ingrata e dissimulada”. Levantei-me; e disse-lhes que não havia cabimento me acusarem pelo assassinato de quem me apadrinhara cortezmente, dando-me morada e sustento, após o misterioso desaparecimento de mi madre Maria Egípcia. Ao acorrentar-me, o dragão-mor do distrito informou-me que, caso houvesse álibi de comprovação da inocência da ré, que o confiasse em juízo, porque, caso contrário, tudo indicava que seria condenação de pena capital em cadafalso do Largo da Lampadosa.

Em seguida, o suboficial da Intendência Geral de Polícia da Corte me indagou se eu percebera algum movimento estranho ou mesmo ruído durante a madrugada, haja vista que o defunto ainda estava quente, quando os dragões foram chamados pela escrava Deodorina, que, desesperada, clamava aos transeuntes por adjutório ao se deparar com o cadáver fresco do Manolo Negreiro.

–– Que não. –– contrapus-me.

–– Levem-na. –– ordenou, secamente.

Na chegada ao distrito, deparei-me com o negruzim Deolindo mui assombrado, sendo conduzido, a safanões e impropérios, em direção ao cubículo da Casa de Correção. Não obstante, logo fui informada de que o gatuno de estimação do Manolo Espanhol havia sido flagrado com relógio de bolso e algumas parcas moedas d’ouro do castelhano trucidado, a sangue frio, pela ganância do imprudente escravo de ganho, que era o álibi que me faltava para livramento do cárcere. Logo, assim que se deliberou sobre a injustiça atentada contra a sua prometida, o meu noivo Assir Lubbos seguiu até a Intendência Geral de Polícia da Corte, para cuspir cobras e lagartos ao desembargador Viana pela desfaçatez do aprisionamento desta ciganita Juana. De cabeça erguida e de braços dados com o altivo Assir Turco, eu atravessei o pátio da Casa de Correção, para instalar-me no Sobrado das Onze Janelas da Rua dos Ciganos do Campo de Sant’Anna, até a data cerimônia matrimonial.

Quiçá, o mais agravante tenha sido o fato de que eu não tivesse sentido nem um pouco de arrependimento ou remorso pelo homicídio do castelhano Manolo Roiz, o Negreiro. E até quando, às vésperas do casório, chegou-me a notícia do enforcamento do pretim Deolindo, senti-me mais aliviada do que pesarosa, porque, além de mim, obviamente, já não havia mais ninguém que pudesse denunciar-me pelo malfeito da incriminação forjada do escravo doméstico. Ademais, desde cedo eu aprendi com a vida de cigana errante que o ser humano não pode dar-se ao direito à pena do próximo, sobretudo a quem nos extorquiu carnalmente. Por esta razão, creio eu que o exemplo da condenação servira como lição de moral, tanto ao negruzim Deolindo, quanto ao negociante escravagista Manolo Francesco Roiz, o Negreiro.

Enfim, que Deus os guarde em bom lugar.

III

DAS BODAS ESPONSAIS AO PAÇO DO LARGO DO CARMO

O casório oficial com o libanês Assir Lubbos fora um escândalo para a alta (e casta) sociedade fluminense, que não aceitava o fato de que um homem promissor e endinheirado se enamorasse de uma cigana desclassificada sem eira nem beira, cuja madre prostituída seduzira, muito provavelmente por sortilégios de feitiçaria, o proeminente D. João VI, que arriara as quatros rodas dos tílburi do coração pela cigana Maria Egípcia. No entretanto, como de praxe, ao baile e ao banquete não se despreza, os figurões de gala da Corte de São Sebastião do Rio de Janeiro compareceram em peso e medida, até porque não pretendiam melindrar o imigrante mais afortunado da época, que prosperava a olhos vistos, desbancando toda a nata de europeus burgueses e aristocráticos, que aportara sob a proteção da Coroa Portuguesa.

O conspícuo Assir Turco se consolidava como sujeito com o faro aguçado para bons negócios, que, a cada gota de suor, germinava contos e patacas, que o transformavam na liderança política mais cobiçada deste hemisfério tropical. Tal iminência de prosperidade não seria despercebida pela ambiciosa Dona Carlota Joaquina, que se aproximara do belo varão com intento de adultério, ao que, não obstante, fora prontamente repudiada pelo consorte desta María Juana Pillar de La Cruz Lubbos. Despeitada, a vingativa esposa de Sua Alteza D. João VI reclamou das incivilidades do comerciante libanês, que, à boca miúda, dizia-se que era refratário ao regime monárquico e escravocrata, sendo, portanto, republicano e abolicionista.

Na rede de intrigas da Corte, o bonachão D. João VI ignorou os queixumes da esposa ressentida, sob a pragmática alegação de que o “turco” Assir Lubbos seria desprovido de ímpetos de intelectualidade, que o impelissem aos arroubos da proclamação da República do Brasil. Nada obstante, a malévola Dona Carlota Joaquina não desistiu do desagravo contra o “libanês soberbo e atrevido do Assir Turco”, mormente porque, sangue por sangue, o dela era nobre e azul, ao passo que o da tal ciganita Juana, decerto, se caracterizava pelo defeito de cor da raça dos ciganos. Por conseguinte, o beneplácito do negociante árabe não possuía traquejo social para afrontá-la numa disputa de alcova.

–– Questão de honra. –– bradava a soberana espanhola, aos quatro cantos, a quem se dispusesse a ouvi-la, nos corredores do Paço do Largo do Carmo.

Evidentemente, a imperiosa Dona Carlota Joaquina não sossegaria enquanto não me incriminasse perante as retinas do meu amado Assir Turco, que se dedicava de corpo e alma ao matrimônio, sem sequer pestanejar diante do assédio da víbora castelhana. De outra feita, a escabrosa espanhola intimou-me, por intermédio de invitação real, a residir no Paço do Largo do Carmo, para servi-la como dama de companhia. Como o meu honrado esposo Assir Lobbus aconselhou-me a não contrariar a vontade da enérgica Dona Pernoca Escarlatina, ainda que não o fosse de bom grado, aceitei empregar-me no Paço do Largo do Carmo. Todavia, a primeira missão que a perversa consorte de Sua Alteza D. João VI fora me obrigar a carregar às costas os despojos da latrina do aposento, com urinas e fezes até as margens da Baía de Guanabara.

–– Salvo engano, a documentação imperial convocava-me para labutar como dama de companhia; e não para a função de tigre de merda. –– bradei em protestação. –– expus-me, no exato instante em que adentrava o salão nobre D. João VI, aparvalhado com a presença da bela e púbere intrusa, que, depois me dissera ao pé do ouvido, o fascinara encantadoramente. –– Pois saiba que eu me recuso a me prestar ao despejo de borras e sedimentos da Família Real.

Estupefacta, a imperante Dona Carlota Joaquina ameaçou-me ao afirmar que, se eu me negasse aos afazeres cotidianos, me escorraçaria a pontapés, arranhões e injúrias do Paço do Largo do Carmo. Sem perda de tempo, já ia me retirando da frente da bruxa agourenta, quando o D. João VI intercedeu sobre a obrigação de se acatar o registro em documento oficial ao pé da letra, sem que se admitisse qualquer espécie de equívoco, no tocante ao desvio de função doméstico.

–– Se acaso a senhora María Juana Pillar de La Cruz Lobbus fora convocada a exercer o ofício de dama de companhia, por determinação da minha senhor esposa Dona Carlota Joaquina, que prevaleça a mensagem do manuscrito real, posto que, pelo visto, seja outra a vossa aspiração de nobreza.

Como a incisiva reação do reinante D. João VI, a rancorosa Dona Carlota Joaquina mirou-me dos pés à cabeça, com os olhos ruídos de indignação, como quem dissesse “aguarde-me”, pois que a retaliação há de ser mais firme do que a benevolência do D. João VI. Sem despedir-se, a arrogante e pernóstica monarca retirou-se, restando-me a companhia do D. João VI, que me devorava despudoradamente, sem disfarçar a cupidez diante da moçoila, que, alarmada pela exaltação de sua consorte, ainda assim se deslumbrava com a opulência da mobília do salão nobre do Paço do Largo do Carmo. Apalermado, o D. João VI conduziu-me pelo casarão que servia de abrigo ao obeso corpanzil, lamentando-se pela precária hospedagem que nem de perto se equiparava com as residências de Lisboa e arredores da capital lusitana, ainda que a morada da Família Real fizesse o Sobrado das Onze Janelas da Rua dos Ciganos do Campo de Sant’Anna mais parecer o cortiço Cabeça de Porco da região portuária da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

À proporção que percorria os aposentos do Paço do Largo do Carmo, o D. João VI ressaltava a necessidade de melhorias urgentes, a se providenciar através de obras de restauração e afins. Até que, ao penetrar a alcova de serventia da dama de companhia, trancou-a a cravelha de ferro, para logo em seguida me derrubar sobre o catre do aposento, violentando-me, sem hipótese de reação, perante a investida cega e furiosa, que me imobilizara completamente. Aproveitando-se da situação de paralisia, o libidinoso D. João VI possuiu-me como se tivesse apossado por um espírito maligno, mordendo-me os mamilos com a avidez faminta até sangrá-los, com a sua dentadura ávida por carne cigana, como se estivesse a se ressarcir pelo desaparecimento de mi madre Maria Egípcia, que se escafedera sem revelação de paradeiro. Ao pós-orgasmo, não obstante, o famigerado mal recuperou o fôlego e decretou segredo absoluto, sobre a intimidade que houvera entre nós, caso não almejasse enfrentar a sanha de Dona Carlota Joaquina.

Ao coibir-me da delação do ato libertino, com a perspectiva da mais austera penalização, o majestoso D. João VI ainda gabou-se da virilidade de macheza, antes de ordenar que eu vestisse a indumentária da dama de companhia, de maneira que, sem perda de tempo, se iniciasse a assistência à Dona Carlota Joaquina. À noite, em estado de exaustão, quando adentrei o domicílio familiar, o meu afetuoso esposo Assir Lobbus me aguardava à mesa para cearmos, sôfrego por notícias sobre o meu primeiro dia de labutação, junto a Vossa Alteza Príncipe Regente D. João VI e à sua digníssima consorte Dona Carlota Joaquina.

De modo óbvio, sob a égide da intimidação, eu não pude romper com o silêncio sobre o episódio da transgressão cometida por D. João VI, mesmo diante da advertência do meu bom e dedicado esposo Assir Lubbos, de que seria mui provável que a Dona Carlota Joaquina me atraíra ao convívio aristocrático do Paço do Largo do Carmo, a fim de que se aprontasse armadilha para aprisioná-lo em seu ardil de víbora peçonhenta. Dito isto, o meu caridoso esposo Assir Turco confidenciou-me que a capciosa princesa consorte lhe solicitara permissão para assembleia de negócios com os conselheiros da Corte, a ser realizada naquela manhã, com as ilustres presenças do dr. José da Silva Lisboa, deputado e secretário da Mesa de Inspeção da Agricultura e Comércio; do fidalgo Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares e ministro da Guerra; e do Antonio de Araújo e Azevedo, o Conde da Barca, ministro e secretário de estado dos Negócios Estrangeiros do Reino.

Juro que não tive coragem de relatar a violência sofrida no cubículo das serviçais do paço, porque poderia ocorrer que o genioso Assir Turco intercedesse de tal modo que culminasse em tragédia de crime de sangue, o que, decerto, o condenaria à pena capital em se tratando de homicídio em detrimento da vida do provindouro El-Rey do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Não obstante, mesmo com todo cuidado de preservação do segredo do estupro cometido pelo D. João VI, após a reunião do conselho, a malévola Dona Carlota Joaquina o confiara que a sua escrava Elória flagrou o seu venerando esposo em regência de usufruto carnal de sua dama de companhia, a ciganita María Juana Pillar de La Cruz Lubbos.

Ao ser consultada, eu não pude negar a violência do D. João VI, no Paço do Largo do Carmo.

–– Porém, a Dona Carlota Joaquina me garantiu que Vossa Mercê se resfolegava com os arroubos de erotismo de Sua Alteza D. João VI… –– acusou-me Assir Turco, ao mesmo tempo em que interrogava o porquê de eu não ter ao menos lhe avisado sobre a afronta do libertino.

(Continua na próxima Edição)

Leia também o cap. anterior

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Wander Lourenço – Especialista e Mestre em Literatura Brasileira (UFF); Doutor em Literatura Comparada (UFF); PhD em Estudos Literários da Universidade Clássica de Lisboa & Pesquisador de Pós-Doutorado da PUC-GO. Pós-graduando em Psicanálise – PUC-RS.

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