O TRIUNFO DA (BOA) VONTADE – por Danyel Guerra

Jacques Demy

“Il m’a marquée plus definitivement qui aucun autre réalisateur.  L’image qu’a imposée de moi ‘Les Parapluies…correspond quelque parte à une verité de moi-même

Catherine Deneuve   

Joyeux anniversaire, Jacquot !                                  

Era notte a Avellino, num dia de novembro de 1982. Mal entro no Cine Eliseo, ouço a Chiara me chamando, um tanto frenética. Daniele, vienni qui… Eu ainda não cheguei junto dela e já está me indagando. Conhece aquele cavalheiro? Um minuto só…conheço, ele é o Jacques…

Ele está de pé, num canto do foyer, aguardando, plácido, sereno, o traslado para o hotel. Imóvel, hirto, assim se mantém, declinando o conforto de uma poltrona situada a escassos metros, onde encostara a bagagem. O francês deslocou-se a esta cidade da Irpínia  para mostrar, no Festival de Cinema Neorrealístico, Un Chambre en Ville, fita totalmente cantada, que tem como painel de fundo uma greve nos estaleiros navais de Nantes.

Jacques Demy vem de entrar na casa dos cinquenta. Malgrado a cabeleira grisalha, sem ameaças de calvície, parece uns anos mais novo. A primeira impressão que me causa é a de alguém muito reservado, absorto até. Um ser tomado por uma prudente dose de timidez.

Ao vê-lo assim tão circunspeto, hesito se devo importunar este seu alheamento do mundo prosaico. Porém, ce soir ou jamais… Ganhando ousadia, caminho em sua direção. “Bonne soir, monsieur, muito prazer em conhecê-lo. Só quero lhe dizer que aprecio imenso seus filmes. Gosto muito de Lola (1961). Na minha opinião, em Lola (Anouk Aimée) se reflete a luz de uma lídima mulher-coragem. Que pertinácia! “

Merci, sublinho seu apreço, monsieur”, corresponde, mostrando-se agora mais descontraído. Não há nada automaticamente mais eficaz para quebrar o gelo de uma pessoa do que lhe dirigir um elogio sincero. Demy abre cordial a porta do diálogo.

“Como você parece gostar de faitsdivers, vou-lhe contar um muito pitoresco…  Nosso diálogo vê-se interrompido pela voz apressada  de uma funcionária do festival . Signore Demy, seu carro chegou. “Muito bem, continuamos nossa conversa amanhã. Poder ser?”, sugere, enquanto me estende a mão direita.

No dia seguinte, Demy não me contou o episódio, porque não nos encontramos. Afinal, ainda não tenho o dom da ubiquidade. Ao fim da manhã, eu pegava il treno para Ancona, a fim de cobrir, para a Cinema Novo, o festival dessa cidade do Adriático.

    Ele canta…ele (en)canta…

Em La Ricotta, de Pier Paolo Pasolini, uma das curtas de Ro.Go.Pa.G. (1962), um repórter entrevista o enfatuado diretor, interpretado pelo enorme Orson Welles. Indagado sobre o Cinema de Federico Fellini, o regista abranda sua soberba e responde com um travo de poesia: “Ele dança….ele dança!” Uma (quase) idêntica resposta, eu darei se alguém me solicitar uma opinião sobre Jacques Demy. Terei de acrescentar, todavia, com vibrante exclamação: “Ele canta…ele canta!” Roçando o truismo serei tentado a somar: “…e encanta…encanta.”

Meu primeiro contato com sua filmografia aconteceu numa tarde invernosa, em que abri, na TV, o acolhedor Les Parapluies de Cherbourg (1964). Desde esse título, que ela instala em mim um estranho e anômalo sortilégio. Se tivesse o privilégio de ser cineasta, eu dificilmente me inclinaria a dirigir filmes, a imagem e semelhança, dos de Demy. O que ainda mais eleva a simpatia nutrida pelo Cinemarte de um demyurgo feliz que “como o mar”, declarava ser “assim, entre o cinzento e o azul.”

Jacquot, sobriquet de infância, impõe-se como o caso exemplar de um “provinciano” oriundo das margens do Loire que se tornou cineasta na grande capital. Embora essa condição não lhe atribua uma notória originalidade. Inusitado terá sido a circunstância de ter lutado, tenaz e indômito, contra o destino que o pai lhe indicava: ser, como ele, um mecânico de automóveis.

Não será descabido caraterizar a vitória de Jacquot como o triunfo da (boa) vontade. E quando a esta se aliam vocação e talento, todos sonhos são passíveis de se tornarem reais. Convencido pela determinação do filho, apoiado pela mãe, o progenitor acendeu o farol verde e o ainda adolescente mudou-se para Paris, em 1949, a fim de estudar Cinema. Até desencarnar no outono de 1990, Jacquot optou pela constância de trilhar o caminho do meio, uma trajetória que, adentro da Nouvelle Vague guardou equidistâncias tanto do grupo dos Cahiers du Cinéma como do grupo da Rive Gauche.

    Pode-se até não ser apreciador do alegado “Cinema cantante” de Demy (uma catalogação deveras redutora!). Mas nenhum cinéfilo de boa fé se negará a reconhecer ser ele detentor de personalidade autoral e de coerência estilística.

Mesmo quem não se reveja na sua relação empática com os faustosos  musicais holywoodianos, não hesitará em constatar que Demy renovou –e até inovou- os dramas, as comédias musicais no seio do Cinema francês. Predileção em larga medida inspirada nas suas recordações de criança e adolescente apaixonado por teatro de fantoches e por música, como se testemunha em Jacquot de Nantes (1991), a enternecedora cinebiografia de Agnès Varda.

E se competiu a Varda, sua chère moitié, assinar Le Bonheur (1965), foi Jacquot quem inseriu o chip da felicidade e do otimismo nos ecrãs gauleses. Seus filmes espargem o aroma de uma joie de vivre que não se evapora  quando o ecrã enegrece. Sinto esse bem-estar sempre que revejo Les Demoiselles de Rochefort (1967), testemunho da força da vontade das jumelles Garnier (1). Na peugada de Demy, elas insistem em perseguir a utopia e a evasão, estimuladas pela alacre partitura, com laivos jazzísticos, de Michel Legrand.

Um Jim Morrison maravilhado

    Neste ponto da narrativa, alguém na certa me desafiará. Afinal, porque é que você não tenta adivinhar qual seria o faits-divers que Demy queria lhe confiar? Aceitando o repto, posso evocar a visita que Jim Morrison, abrindo the doors do devaneio, fez ao plateau de Peau d’Âne (1970), nas rodagens da sequência final em que o rei (Jean Marais) e a fada madrinha (Delphine Seyrig) aterrisam de… helicóptero no casamento da princesa (Catherine Deneuve). “Eis Jim sentado na relva, maravilhado por ver Catherine Deneuve, recorda Varda.

Continuando a especular podia ousar que ele queria aludir ao seu não-encontro com Sylvie Vartan. A cantora búlgara era sua primeira escolha para o papel de Geneviève em Les Parapluies… Demy falou a respeito com o agente dela que, lesto, descartou a escalação, alegando que a diva não estava interessada em fazer (mais) cinema. Muitos anos depois, Vartan, finalmente sabedora da sondagem, declarou que seu agente nunca lhe falou do convite que, vincou, “com agrado, eu aceitaria”.

Demy sacou então da carta Deneuve, por quem se encantara vendo L’Homme à femmes (1960), de Jacques-Gérard Cornu, com Danielle Darrieux no papel de sua mãe. Parentesco reeditado em Les Demoiselles…

Por ser consabido, não acredito que Jacques pretendesse me contar a sua fugaz aparição em Les Quatre Cents Coups (1959), de François Truffaut, figurando um policial, na cena em que Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) é apresentado pelo padrasto (Albert Rémy) numa soturna esquadra.

Abandonemos, todavia, esta retórica em torno de (im)probabilidades um tanto fúteis e aliemos o útil ao agradável: que consiste em não deixar pela metade, pelo meio, este acercamento a maviosa opera demyniana, onde as mulheres são princesas com pele de seda pura. Afinal, como se diz em Lola, “au cinéma c’est toujours plus beau”.

Nota:                 

  • Les Demoiselles… reveste a singularidade de ser o único filme em que contracenam as irmãs, não gêmeas, Françoise Dorléac e Catherine Deneuve.

      ♦♦♦

Danyel Guerra nasceu na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, Brasil,  num novembrino dia de Vênus, sob o signo de Escorpião. No ano em que Lygia Fagundes Telles publicava ‘Ciranda de Pedra’, seu romance inaugural.
Editou e/ou publicou os livros ‘Em Busca da Musa Clio’ (2004), ‘Amor Città Aperta’ (2008), ‘O Céu sobre Berlin’ (2009), ‘Excitações Klimtorianas’ (2012), ‘O Apojo das Ninfas’ (2014), ‘Oito e demy’ (2015), ‘O Português do Cinemoda’ (2015), ‘Os Homens da Minha Vida’ (2017) e ‘Corpo Estranho’ (2021).

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