21 DE JUNHO 1970 – por Francisco Fuchs

 

Pelé e Bobby Moore trocam camisas ao término de Brasil x Inglaterra (1970)

 

Para Giuseppina Traverso

Quando eu nasci, o Brasil era o país do futebol: donde se conclui que já não sou nenhum garoto. Há coisas que não podemos revelar sem denunciar nossa idade; porém, por uma dessas leis de compensação que gostaríamos de imaginar arranjadas por um ser superior, quanto mais se avoluma a soma de nossos anos, menor é a importância que damos à divulgação do resultado.

É intensa a atração que a cor vermelha desperta em crianças de todas as idades, e eu não fui exceção. Por causa do vermelho sanguíneo do uniforme (e talvez pela continental grandiosidade do nome, embora também possam ter-me influenciado os ecos longínquos do último título estadual), tornei-me adepto do América Football Club. A paixão infantil perdurou até a visita do tio Giorgio, que não alcançava como podia eu torcer para outro clube carioca senão aquele no qual jogava o inigualável Garrincha. Assim, inspirado pelo irmão de minha mãe, tornei-me, aos cinco anos de idade, botafoguense; mas minha fase alvinegra não durou mais do que sua viagem de retorno à Itália. Ninguém ama por indicação alheia, e tudo que tio Giorgio conseguiu foi germinar uma dúvida e dissolver minhas antigas convicções, deixando-me numa espécie de limbo futebolístico. Fui resgatado sem demora, e novamente pela cor vermelha. Tornei-me Flamengo até morrer. Tudo isso aconteceu bem antes que Garrincha vestisse o manto rubro-negro, e muito antes que eu viesse a saber que ele era flamenguista de coração.

Se o filósofo vivesse nos dias de hoje, ensinaria que nos iludimos ao acreditar que a criança escolhe o leite, o covarde a fuga, e o adepto, o clube de futebol pelo qual torce. Não há escolha. A adesão a um time é um sortilégio determinado por um ou mais encantamentos: um atleta, uma campanha vitoriosa, um uniforme, uma combinação de cores, o próprio nome do clube, a imitação de um parente. Se é possível conquistar alguma margem de liberdade ao longo dos anos, coisa de que não duvido, tal façanha não há de estar ao alcance de mentes infantis; mas a adesão a um clube acontece, geralmente, durante os primeiros anos de vida.

Tudo que se aplica à “escolha” de um clube aplica-se, e com ainda mais razão, à “escolha” de uma pátria. Quando veio a Copa do Mundo de 1970, eu tinha idade suficiente para acompanhar os jogos pela televisão e era, por óbvio, torcedor brasileiro desde pequenino. Já não tínhamos Garrincha, como nas duas vitórias anteriores, mas tínhamos Pelé encabeçando um sonho multicor na TV em preto e branco. A cada partida superávamos mais um adversário, e derrotamos até mesmo, num jogo angustiante, a poderosa Inglaterra; e estávamos vencendo por um a zero a grande final contra a Itália quando Roberto Boninsegna roubou a bola e empatou o jogo. Para meu espanto, pois era um gol contra o Brasil, mamãe vibrou como nunca, e foi justo nesse momento que eu percebi que ela era, de fato, italiana. Perturbou-me um pouco descobrir que minha mãe era capaz de torcer contra o país em que eu nasci, mas… não era aquilo, afinal, apenas um jogo de futebol?

Naquele último ano dos anos 60, eu, aos 8 anos de idade, já havia lido, visto e ouvido de tudo um pouco. Lá estava eu quando os Mutantes tocaram no Festival e quando Gordon Banks defendeu a cabeçada indefensável de Pelé; e lá estava eu quando o homem pisou na Lua e quando os monges vietnamitas arderam, impassíveis, num sereno desafio à tirania e aos limites da condição humana. Minha mãe ainda viveria por mais um ano, e há de ter-me perdoado mil vezes por haver comemorado o tricampeonato da seleção canarinho.

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Francisco Traverso Fuchs sempre detestou falar de si mesmo, mas terminou por descobrir que pode fingir fazê-lo sem que ninguém o note.

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