RECENSÃO DE “CALIFORNIAS PERDIDAS” – por Fernando Martinho Guimarães

Califórnias perdidas:
uma antologia de poesia açoriana

Californias perdidas é uma antologia de poetas e de poemas. O subtítulo diz-nos exatamente isso: Una muestra de poesía azoriana. De Antero de Quental a Emanuel Jorge Botelho. Nela se acolhem alguns dos poetas mais representativos do que, em cerca de século e meio, é exemplarmente configurável como exibição de uma identidade poético-literária e cultural – a assumida «açorianidade» a que Nemésio imprimiu cunho. Assim, para além dos nomes que constam do subtítulo, encontramos na presente antologia Roberto Mesquita, Vitorino Nemésio, Pedro da Silveira, Natália Correia, Eduíno de Jesus, Emanuel Félix, Martins Garcia, Álamo de Oliveira, J. H. Santos Barros e Urbano Bettencourt.

É conhecida a celebrada imagem da história da cultura, nas suas diversas fulgurações, como um diálogo que poetas, cientistas e filósofos estabelecem entre si, sem que o tempo ou o espaço constituam limite ou fronteira a impedir o transporte de ideias e pensamentos que, na palavra, têm o seu veículo, o seu meio, malgré tout, mais apropriado. Também esta mostra –– como indica o subtítulo e como prefere chamá-la Melchior López, organizador, com Urbano Bettencourt, da presente recolha ––, procura fixar um diálogo entre, por um lado, um conjunto de poetas cuja pertença a um imaginário açoriano é proposto como exemplar e, por outro lado, um diálogo entre vozes poéticas que, dos Açores e das Canárias, propõem a con-versão dos poemas, do português para o castelhano. Um encontro, uma con-versa, em que os riscos inerentes da tradução são criativamente assumidos.

Em fazendo-se do mar destino, não há como a aguda consciência insular para fazer das palavras cais de partida ou de chegada, em todo o caso e sempre, de encontros e desencontros. É que, tanto na bruma azórea como na claridade canárea, adivinha-se a existência dos palácios da ventura de Antero ou das califórnias perdidas de abundância de Pedro da Silveira. O poeta suspeita da sua existência e, pelo sortilégio da palavra poética, sentencia-se à interminável procura deles nos versos que sempre regressam a si mesmos. Neste exercício investe toda a sua energia criadora, mobiliza todos os artifícios retóricos e convoca a cumplicidade do leitor na partilha de emoções que apenas no e pelo poema, e pela leitura dele, acedem à consciência. A devoção que dedica à linguagem, o esmero com que faz ressoar o silêncio que inter-rompe nas palavras que se sucedem umas às outras, o cuidado com que, da matéria da palavra, da sua carnalidade, procura extrair inesperados sentidos, imprevistas significações, funcionam como símile do trabalho da criação do mundo. Que o poema esteja sempre aquém do que, no desejo da escrita, era assomo de beleza é a sentença que impende sobre o fazer poético. E se, por um golpe d’asa, sopro divino ou porque sim, o poema exulta no verso feliz, na imagem bem achada, na quebra do verso que tem de ser nesta palavra e não pode, de maneira nenhuma, ser noutra, é porque da matéria da palavra e da fria objetividade das coisas, a pulsão poética insiste em reiterar que, apesar de uma pedra ser uma pedra, uma pedra não é uma pedra –– para pedir de empréstimo um verso de Emanuel Félix.

Da poesia do autor de A Habitação das Chuvas, afirmava Urbano Tavares Rodrigues, em artigo de saudosa homenagem publicado no jornal Público (de 21 de fevereiro de 2004), que o virtuosismo e a magia cerebral patentes nos seus poemas “vão do exercício intertextual aos jogos de ironia, às comparações fequentes”. E (um aparte que pede o favor do leitor), ainda sobre Emanuel Félix, asseverava Ernesto Melo e Castro ter sido ele o introdutor da poesia concreta em Portugal. Que tenha sido esquecido, nas várias publicações que Melo e Castro dedicou ao experimentalismo e concretismo poéticos, foi, verdade seja dita, motivo de pesar seu. O «Signo Insulado» de Martins Garcia não é apenas lugar de lonjura, de desamparo, ou de mero virtuosismo anafórico e paralelístico. Afinal, como nos diz Emanuel Jorge Botelho no poema «O Barco de Antero», “as coisas são como são./ não vale a pena dar-lhes debrum de rosas bravas,/ ou colheres de água quente/ com três pitadas de açúcar”.

Surpreende que, em boa parte dos poemas representados nesta mostra, perpasse um tom de desolação, de sentida clausura, de fechamento face ao horizonte sem fim do mar? O resguardo – que a ilha-concha de Vitorino Nemésio celebra – dificilmente resiste à evidência de uma realidade em que “as cousas mesmas/ Têm um ar de desgosto sem remédio…”, como nos diz Roberto Mesquita no poema «Spleen». Também Urbano Betteconcourt –– que, à semelhança de Barros Bastos, viveu a experiência traumática da guerra colonial ––, reverbera em muitos dos seus poemas o desencanto face a uma realidade em que a insularidade é, a um tempo, vivência geograficamente situada e marca da inapelável condição humana. De que outro modo se pode interpretar o recorrente uso da ironia, o recurso à imagem, jubilosa, sim, mas carregada de uma secura crítica, a não ser pela intensa consciência de que, por mais que seja “Abril/ só restam m/ águas mil»? Mesmo que a frequência do mundo não se reduza ao território da ilha, como é o caso dos poetas presentes em Californias perdidas, nunca a ilha é o território que deixam de frequentar.

O trabalho de recolha que Melchior López e Urbano Bettencourt propõem neste livro assinala o acolhimento de vozes poéticas que partilham entre si um território simultaneamente real e ficcional. Nessas vozes sobrevém uma atenção vital ao tempo e ao destino enquanto marca de insularidades diversas, mesmo quando, à maneira de João de Melo, elas cultivam um agnosticismo reservado no que à açorianidade diz respeito. A dimensão insular e as condições de vida a ela associadas, a convocação salvífica e redentora, catártica também, que na língua poética é modo de interpelação do mundo e de abertura para o que nele é presença e ausência de sentido, são alguns dos motivos que encontramos, recorrentemente, na poesia dos autores que a antologia acolhe.

Contrair no verso limpo a sensibilidade e o pensamento, o sentimento e a inteligência, extrair das possibilidades que a linguagem promete a palavra justa é o ofício a que o poeta se condena. E, ainda que a derrota, nesse propósito, seja profecia inescapável, então que o seu dizer se cumpra na beleza dos versos de «Paisagem com barcos», de Eduíno de Jesus:

«Agora há só os fantasmas que passam em silêncio,
descem as ruas que vão dar inevitavelmente ao porto,
ficam parados olhando os navios para sempre ancorados na doca
e ao entardecer regressam cabisbaixos outra vez ao interior da Ilha
e lá ficam.»

Californias perdidas
Una muestra de poesía azoriana
Seleção de Melchor López ye Urbano Bettencourt
Ediciones Franz, 2021
(Trad. de Beatriz Sequeira)
Editorial Presença

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Fernando Martinho Guimarães (1960) Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. De formação filosófica e literária, a sua produção ensaística e poética reflecte essa duplicidade. Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, castelhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e em 2008 Crónicas.