CONVIDADO
ao cair
do astro maior
aguardo,
felicitações
remotas
que pelo
nome
nunca o dizem,
até que
— é sempre assim,
um estranho
de maneiras
inconcretas
se apresenta,
alto incerto,
aos gritos,
exigindo
a servitude
alimentar
e lá vão
o vinho,
o pão sacramental,
e as desculpas
habituais
— mas a dispensa
estava
vazia,
cheia de recortes
de jornal,
e pó acumulado
e o televisor,
há muito avariado,
com imagens
sem corpo,
sem lado,
dos anos de antes
do apogeu
quando
os azulejos
de cozinha
eram ainda
os de antigamente
e o café
matinal
era sorvido
em abstracto
depois de um sono
reaprendido
ao dormir
quando a luz jovem
e clara
preenchia
todos os recantos
da casa
— mas agora
que dizer,
sem querer
ser indelicado,
sem querer abrir
o livro sobre
notas já rescritas
talvez
que o mundo
mudou,
ou que um
alteração
atmosférica
tornou
íntima, todas
as tardes
mais densas,
mais difíceis
de suportar
até porque
é assim
que
os gatos miam,
e as pombas,
já ausentes,
divagam ao luar
— mas não,
apenas
os números
em sequência,
num florir
lógico à dedução,
confirmam
o que já se sabe
— que os convivas
estão aí
para contentar,
e que Cristo,
o filho,
dizem eles,
nunca irá voltar
♣♣♣
VIAGEM
nada faças
que imprompto
dê o alerta,
mas antes que
os teus pés
caminhem
o trilho da nuvem,
para além
de qualquer
anúncio gravítico
que marque
a terra,
ainda que molhada,
ainda que
predisposta
à pintura
dos teus passos
na paisagem
— abstém-te
como aquele morto
que, morto
por não haver
nascido
nada carece
à memória,
ou ao movimento
ambulatório
das portas
— sê da ave
unicamente
a asa,
que sustenta
o ar na trepidação
do fôlego
desapoiado
pela presença
do princípio,
para o qual
todas
as razões
são acessórias
e os nomes
divagação
elíptica,
sem nada a dizer
sobre a forma
das letras
— sobe acima
da montanha,
não para olhar
a paisagem,
mas para negar
ao mundo a visão
de si mesmo
quando
o sol poente
é abaixo
da nossa altura,
e as nódoas
da noite
são toalhas sujas,
indecentes,
à espera
de um trabalho
imperfeito
de lavandaria
e as estrelas
as purpurinas,
enfeites
de uma festa
infantil,
de que a lua
é o bolo de aniversário
— recusa,
calmo e sábio,
qualquer fruto
e alimento,
qualquer
ingestão que leve
ao percurso
da natureza
pelo ventre
venal cloaca,
descendente,
tal que
de ti
nada se infecte
ao universo,
e puro possas
por incólume
boca,
exibir
do verbo,
intransitivo,
o vago, final sorriso
— sê suave
e liberto, liso,
observando
a visão
num ecrã
a n-dimensões,
pela abertura
do olho monumental
do ponto donde,
rodeado
por solene
escuridão,
flutuante,
a brisa marítima
é a única
propriedade
do céu
e os actores
figurantes
em segunda-mão,
envergando
fantasias
transparentes
e sê a flor
antes da semente,
nega-te
divino,
como as pétalas
de um incêndio
antes da luz
— por isso,
nada inquietes
à sentinela,
nem incites
o furtivo
caçador
ao disparo
ocasional,
confundindo
o alvo
com a certeza
e talvez
passes
pelo aqui
sem os deslumbres
da meia-noite
ou o eflúvio
de uma nota
mal cantada,
assim
descobrindo-te
raiz incomestível
descobrindo-te
ágil aspereza,
e Deus
enganando-se
eternamente
♣♣♣
TEMPO
e o anjo
segurava
a mão,
fumo
sobre a terra,
ou as alegrias
do passado
num naipe
de trunfo
e paus,
por nomes
estendidos
e belos,
nomes assoprados
entre
as asas,
que são
a melodia
do céu
e olhava,
surpreso assim,
para o reparo
daqueles pés,
interrogando
o atar
do cordel
— os que partiram
demoram-se
ainda,
enquanto
os que estão
são de partida
por
antecipação
a um depois,
contido prévia
hora
consumada,
o momento
como se
no princípio,
exterior
a tudo e a Deus
— é esse
o significado
da música,
da qual
a poesia
é o imperfeito
desejo
o compasso
e o ritmo,
preparado
oração
e suspiro
preparado
vestido
lançado
às hesitações
do vento
solicitando,
negação
que se repete,
a nudez
total
do corpo
— e é esse
o significado
da voz,
alma eléctrica
ao buscar
do apagar à luz
em
palavras
que piscam
a cada
esvanecer
ténue do mundo
numa excitação
de malas
feitas,
e última vistoria
à casa,
na garantia
de que é vazia
— e, com os dedos
postos
à face,
olhar em curva —
tudo é
completo,
ou chuva parecida
com a calma,
água
resvalando
fria
nas costas
sobre
omoplatas
doridas
que
despontam
o círculo final
♦♦♦
Henrique Miguel Carvalho nasceu em Lisboa em 1970. É formado em filosofia e os seus interesses, muito variados, incluem, a par da literatura, a música, a arquitetura, a matemática e a história do pensamento em geral. Publicou alguns artigos de natureza académica, mas nunca poesia. Gosta de fazer longas caminhas pelo campo, onde vai à procura de inspiração.
henrique_mm_carvalho@yahoo.com
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