A VIAGEM DO ELEFANTE
Em maio deste ano, publicamos na Athena o artigo Quem Porfia Mata a Caça, no qual procurávamos analisar o romance O Homem Duplicado de José Saramago. O tempo passou, outras leituras vieram e me esqueci por completo do escritor português até que li uma notícia antiga sobre sua doença em um jornal do Rio de Janeiro, meses antes, de Saramago ressurgir nos cadernos literários brasileiros com entrevistas e um novo livro publicado: A Viagem do Elefante.
Lembro-me que, na época, pensei com meus botões: vou remar contra a maré e implicar de novo com um Nobel da Literatura.
Neste livro, a narrativa é construída sobre um episódio real, no qual o Rei Dom João III de Portugal presenteia o Arquiduque Maximiliano, herdeiro do trono da Áustria, Império dos Habsburgos, com um elefante que estava em Portugal, havia dois anos, abandonado com o seu cornaca.
Saramago denominou esse livro de conto.
Faço a primeira apreciação crítica e advertência: A viagem do Elefante conto não é, pois este é, universalmente aceito, como narrativa curta, na qual os personagens são poucos, sendo a ênfase jogada na situação. Tecnicamente, o conto possui um gancho e termina com uma epifania, na qual o leitor percebe o sentido oculto da narrativa, ou seja, conforme ensina Ricardo Piglia, um conto sempre conta dois contos. Há um conto visível que esconde uma história secreta e a epifania se dá quando, ao final da leitura, o leitor percebe a história secreta. Nesse sentido, o último livro de Saramago, uma narrativa com mais de 250 páginas, não deve ser considerado como um conto. Talvez, fosse mais adequado denominá-lo como novela, quiçá um romance.
Ultrapassada a primeira armadilha colocada pelo autor, vamos à última entrevista dada ao Prosa e Verso, caderno literário do jornal conservador O Globo. Nesta, Saramago se definia como um cético que necessitava ver o que se oculta por trás da aparência das coisas, das palavras. Acreditava ele que vivemos permanentemente em uma comédia de enganos que é preciso, continuamente, desmontar. Em outra entrevista para outro periódico brasileiro, comentando seu livro Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago diz que estávamos cegos antes do dia 11 de Setembro de 2001.
Lendo a entrevista ao Prosa e Verso pensei: vou implicar com essa pose de farol da humanidade e lá vem outro “Romance de tese.”
Advirto ao leitor que, a princípio, não gosto desta posição na qual o autor em comento se colocava, como se soubesse de uma coisa óbvia que nós, pobres mortais, não conseguíamos enxergar. Acho deveras aborrecida essa idéia de que há um monstro em cada esquina, de matar um leão ideológico por dia e de denunciar nossa própria miséria como se não fôssemos capazes de a perceber. Creio que a crítica que Saramago fazia ao mundo contemporâneo era maculada por uma ideologia envelhecida. O mundo mudou, a Esquerda mudou e o autor insistia em criticar o Capitalismo por sua capacidade de nos alienar de nós mesmos, como se não fôssemos capazes de perceber esse fato.
Por outro lado, já advertimos aos nossos leitores no artigo de Maio: não acreditamos que romances devam provar tese alguma. Vou economizar os argumentos para me reportar aquele artigo.
Na época, entramos na Viagem do Elefante com todos esses senões e até com alguma má vontade, pensando: pronto, lá vem ele com seus parágrafos intermináveis, seus diálogos sem travessões e suas teses do século passado.
Qual não foi minha surpresa!
Pareceu-me que o autor havia reencontrado o prazer de escrever que contamina seus leitores. O romance é ótimo! Há bastante ironia, há muito ceticismo, porém parece que neste, Saramago não quer provar nada. É simplesmente literatura. Se o leitor quiser que extraia suas teses da narrativa.
Eu, pessoalmente, tenho a minha: em A Jangada de Pedra, Saramago, sentindo-se desconfortável com a inevitável integração européia, na qual Portugal, assim como a Espanha, entraria pela porta dos fundos, fez a Península Ibérica se soltar do Continente Europeu e flutuar na direção da América do Sul, em busca de uma integração com os países periféricos do sul. Agora, o Elefante caminha para o centro do continente e há uma advertência no livro que não passou despercebida ao articulista: “a norma de que o mais lento de uma caravana será aquele que marcará o passo, e portanto a velocidade do avanço.”
É preciso dizer mais?
Sim. É preciso dizer mais e Saramago silenciou. Confesso envergonhado que me faz muita falta sua pose de farol.
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Celso Gomes da Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1960. É advogado e pós-graduado em Filosofia. Em 2017 publicou o romance A gruta de Calipso, pela Editora Macabea.
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