HORAS
Na instituição as horas são linhas. Férreas convenções temporais. De manhã não segui a norma. Permaneci na hospedaria. Cama jangada dignos trapos quentes. São a vida. A negação doce e animalesca das imposições. Chego tarde com orgulho. Entro na cápsula como um infiltrado e visto a pele de sereno figurante. Um paciente que não é fácil decifrar. Pouco para o exterior. Só as raras sessões de livre palavria medicante me interessam. De resto busco salas vazias. O desprezo pelo real fraudulento. Não respeito a engrenagem e escondo estratégias que a maquinaria não pode controlar. Sei que a directora é um coração bom. Mas não ia gostar se soubesse do afastamento a que voto as actividades gerais. Pouco importa. Gosto de algumas palavras dela. Mas dou-lhes outro uso. Sonho com o tempo que partilhamos na hospedaria. O nosso vinho na lareira é um festim sem necessidade de ornamentos. É a música primordial dos lábios. Fogo vinho nas cores dos olhos. Prazeres que bailam no labirinto dos corpos. Assim vivo o silêncio íntimo nestes pisos ruidosos. Retendo o suor da noite e a sonoridade da tua pele.
Sou aqui um desterrado. Quer dizer um ser que revela uma camada e fios soltos. As linhas visíveis são traçadas para vestir o fantasma. Que vai fruindo momentos de encontro consigo mesmo.
FRAGMENTO
Um fragmento de tempo. Entre papelada e burocracias. Ouço o trompete de Jon Hassel. Nórdico e árabe. Longínquo e do outro lado da rua. Estranho e limpo.
Suave tarde despida lentamente. Olho solitário os corpos os passos e as vozes.
Este local é uma caixa de rumos. Um nó de vias. Cabeças mundo com suas histórias frágeis. Olhos múltiplos em busca de molduras. Anéis de formatação.
E eu um ser escrevente nas entrelinhas do absurdo.
Um homem em acrobacias na teia das palavras invisíveis.
Uma singular música intocável.
Um duelo irreprimível.
CRIMES
Pedem-me aqui o registo criminal. Ordenam à instituição que ordene. Querem saber dos crimes. Nada saberão. Olham os outros em folhas carimbadas e pensam ver. O que os cega. É o chiar da maquinaria para usurpar um pouco de finança e endurecer os sublinhados. A bem de uma doença moral e dos valores infectados. Concedo-lhes uma esmola desprezível.
E visto a gabardina para me lançar na noite. Ao teu vinho!
RADIAÇÕES
Inclemente este desvario mental. Vírus auditivos e radiações oculares entorpecem os arames cerebrais e desafiam a pentelheira neuronal. Não evito a dissimulação. Caminho aéreo pelos frequentados corredores. Procuro uma cura sonora e um compartimento vago. É o vazio que desejo. Nele encontrarei palavras sonoanalgésicas. Flores heréticas. Relaxantes voos negros. Onde cravo as garras íntimas no livre ser. Sons inauditos e gramáticas imprevistas refazem a voz.
Uma droga sugada nos reservatórios alcoólicos do eu. Neste escritório ébrio cheiro ainda o teu verniz. É um cerimonial de morfina a ligação de frases para os teus tecidos nocturnos.
Vamos continuar a acender velas na cozinha. A oficina de eléctrodos encantados. Há ópios e heterodoxias nas nossas vestes terrenas. Assim erramos na mecânica de tirar de dentro. Múltiplas partituras do invisível.
E eu a deambular no sentido do teu equinócio.
Na instituição consegui tempo roubado. A criminosos encartados responder com lâmina sagaz. Um bicho não catalogado faz o seu ritual.
São estes os beijos e gestos que coloco docemente na fórmula do tempo.
O nosso lacre a queimar.
ENFERMARIAS
O que eu precisava era de ir para a enfermaria. Onde se ouvisse música de folhas na ventania ou o transe sonoro do rebanho nos montes. Que houvesse cheiro a hortelã. E vista para um luar rosa. O som de Satie e lençóis limpos.
Ou então o silêncio a escuridão. E um remédio para a limpeza do olhar.
Mas aqui não se olha para enfermidades menores. A rotina envolve as profundezas invisíveis ou as marcas oficiais. Não há desvios. Nem nas análises nem nos seres. Todos os comportamentos estão pendurados em cabides. Saio da zona das radiações. Viro-me para nós. E digo no invento das artes vivas faremos o que não soubermos. Não documentados teremos ousadia. Um prazer sem ordens e amarras. A celebração do instável. Um desenlace. Quer dizer um enlace.
Na rebeldia e na vontade as nossas artes serão livres.
Tenho visto os adornos que deixas no escritório. Sente-se o teu toque na hospedaria. Melhora a luz. Brilha a madeira. As chuvas e os ventos encontram boas mantas nas frestas das janelas. Há copos e especiarias. Um bailado onde nasce todos os dias um lugar. Uma feminina musicália acaricia os objectos e as horas. Oficinal e medicinal a tua arte de fazer momentos.♦
(Continua na próxima Edição)
♦♦♦
Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!
You must be logged in to post a comment.