Era para além do desejo e da vastidão de sentimentos inúteis. Ia às aulas daquele professor porque, sem sequer o escutar, conseguia chegar a um êxtase.
Nas aulas, as hastes de um pendor lúbrico toldavam-lhe a mente.
Absorta em manusear cada gesto, cada momento, cada palpitação, não contava a pulso a sua postura na sala.
Os colegas, esses, indiferentes, ora mergulhavam nos telemóveis ou preenchiam gatafunhos em cadernos ou folhas .
Não era a primeira vez que sentia este brilho na alma. No secundário estivera absorta pela professora de filosofia. Mas tudo passa com o tempo.
Sabia que este professor era casado. Tímido. A voz ecoava baixo e em monotonia desamparada.
O horário de atendimento aos alunos ali estava, no site.
Iria? Falar com ele após a aula, nunca. Saía sempre apressado.
Era velho. Se calhar já tinha os seus quarentas e muitos…
Cabelo preto e uns poucos brancos.
Alto.
Óculos vítreos.
Bárbara ousara falar com a maior amiga sobre este arrebatamento.
Liliana percebia . Mas, adiantava,
- Escusas de pensar muito nisso. Esses homens têm a vida deles muito arranjadinha. Quando muito, no final do semestre, e não são todos, curtem uma rapidinha…
Bárbara recusava-se sequer a ousar tocar nele. Era tão frágil, tão menino apesar da muita idade.
Precisava de ser protegido face a uma sociedade cruel e matreira.
-Não engravides dele. Essa gente está-se nas tintas.
-Nunca. O meu amor por ele vai muito para além.
Bárbara tentava colecionar mais informações sobre o homem. Vivia na zona de Caxias. Mas passava grande parte do tempo no Campus.
Alguém dissera que o vira num determinado café da Linha.
Não pretendia falar com ele. Apenas vê-lo.
Após muita indagação lá se orienta nos horários quotidianos do homem. Um café onde era visita regular.
Era um ser simples. Passeava o cão sempre às mesmas horas ao fim de semana.
A mulher, alto cargo numa multinacional, raramente era vislumbrada.
Bárbara refletia que afinal o bebé dela, o menino, estava muito desprotegido. Ninguém tomava conta dele. A cabra da mulher queria lá saber.
A pureza dos pássaros nas mãos de mulheres frias e distantes.
-As mulheres definitivamente não prestam-
Tinha um filho de um relacionamento anterior.
Era domingo, o dia preferido. Bárbara estudava o plano ao pormenor. As horas a que dava o passeio com o cão. Tudo.
Agarrava-se ao volante do carro com a convicção dos ilimites.
A inundação dos sentimentos era perclara e dúbia.
Não havia trânsito. Ainda estava tudo a dormir.
Ele levantava-se cedo, tinham-lhe dito.
Se ao menos soubesse a morada. Mas ninguém conhecia ao certo.
Chegara ainda de manhãzinha.
O céu claro. Uma temperatura agradável.
Devia ser aquele café.
Era. Relativamente pequeno.
Ficaria dentro do carro.
Ao fim de uma boa meia hora vê com excitação um cão gordo e velho com o professor, calções e t-shirt. Prende com a trela o cão numa árvore. E entra no café.
Ela estava como se o universo escaldasse dentro do seu próprio corpo.
Pensou: e se raptasse o cão?
Só por um dia?
Seria impossível. O cão era pesado. Depois alguém poderia reparar.
O professor entretido no café parecia falar com outras pessoas.
Ela saiu do carro. Pôs uma cabeleira postiça. E galgou uns metros até ao cão cansado e lento. Olhou para o animal. Ele num olhar de viés reparara na figura ao que após, desinteressado, volvia o interesse por um outro cão mais longe.
Ela chegou à trela. Ofereceu ao cão um naco de bife de lombo bem passado. Ele comeu refastelado. Ela inteirava-se que o professor continuava entretido.
Bárbara pega na trela e lentamente o cão desliza até ao carro.
Aí ,com um outro bocado de carne com osso, mesmo adequado, conseguiu captá-lo para o assento do seu lado. Certificando-se que ninguém reparava, arrancou.
O cão mordia com apetite mais aquele petisco.
(ela sentia música e metais no corpo. Os sonhos eram imaculados e prósperos)
Chegada a casa sorriu com a libido acesa para o canino. Recolhido, o cão agora dormitava.
Bárbara eufórica sabia agora que as colinas se alcançam para além de chuvas de areia.
O despojamento era apenas um episódio entre outros.
♦♦♦
Cecília Barreira é Professora de Cultura Portuguesa Contemporânea na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É investigadora integrada do CHAM-Centro de Humanidades. Publicou na Cordão de Leitura os livros de Poesia, Desvarios e Erros Meus (2018) e Voando Sobre um Ninho Fêmeo (fev. de 2019). Iniciou a sua atividade poética em 1984 com o livro Lua Lenta (Europress). É ensaísta e, de momento, cruza a História da Cultura com a Filosofia e a Literatura nos séculos XIX e XX.
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