O PROFESSOR – por Cecília Barreira

Série “La Casa de Papel”

Era para além do desejo e da vastidão de sentimentos inúteis. Ia às aulas daquele professor  porque, sem sequer o escutar, conseguia chegar a um êxtase.

Nas aulas, as hastes de um pendor lúbrico  toldavam-lhe  a mente.

Absorta em manusear cada  gesto, cada momento,  cada palpitação, não  contava a  pulso a sua postura na sala.

Os colegas, esses, indiferentes, ora mergulhavam nos telemóveis ou preenchiam gatafunhos em cadernos  ou folhas .

Não era a primeira vez que  sentia este brilho na alma. No secundário estivera absorta pela professora de filosofia. Mas tudo passa com o tempo.

Sabia que este professor era casado.  Tímido.  A voz ecoava baixo e em monotonia desamparada.

O horário de atendimento aos alunos ali estava, no site.

Iria? Falar com ele após a aula, nunca. Saía sempre apressado.

Era velho. Se calhar já tinha os seus quarentas e muitos…

Cabelo preto e uns poucos brancos.

Alto.

Óculos vítreos.

Bárbara  ousara falar com a maior amiga sobre este arrebatamento.

Liliana percebia . Mas, adiantava,

  • Escusas de pensar muito nisso. Esses homens têm a vida deles muito arranjadinha. Quando muito, no final do semestre, e não são todos, curtem uma rapidinha…

Bárbara recusava-se sequer a ousar tocar nele. Era tão frágil, tão menino apesar da muita idade.

Precisava de ser protegido face a uma sociedade cruel e matreira.

-Não engravides dele. Essa gente está-se nas tintas.

-Nunca. O meu amor por ele vai muito para além.

Bárbara tentava colecionar  mais informações sobre o homem. Vivia na zona de Caxias. Mas passava grande parte do tempo no Campus.

Alguém dissera que o vira num determinado café da Linha.

Não pretendia falar com ele. Apenas vê-lo.

Após muita indagação lá se orienta nos horários quotidianos do homem.  Um café onde era visita regular.

Era um ser simples.  Passeava o cão sempre às mesmas horas ao fim de semana.

A mulher, alto cargo numa multinacional,  raramente  era vislumbrada.

Bárbara refletia que afinal o bebé dela, o menino, estava muito desprotegido.  Ninguém tomava conta dele. A cabra da mulher queria lá saber.

A pureza dos pássaros nas mãos de mulheres frias e distantes.

-As mulheres definitivamente não prestam-

Tinha um filho de um relacionamento anterior.

Era domingo, o  dia preferido. Bárbara estudava o plano ao pormenor. As horas a que dava o passeio com o cão. Tudo.

Agarrava-se ao volante do carro  com a convicção dos ilimites.

A inundação dos sentimentos era perclara e dúbia.

Não havia trânsito. Ainda estava tudo a dormir.

Ele levantava-se cedo, tinham-lhe dito.

Se ao menos soubesse a morada. Mas ninguém conhecia ao certo.

Chegara ainda de manhãzinha.

O céu claro. Uma temperatura agradável.

Devia ser aquele café.

Era. Relativamente pequeno.

Ficaria dentro do carro.

Ao fim de uma boa meia hora vê com excitação um cão gordo e velho  com o professor, calções e t-shirt. Prende com a trela o cão numa árvore. E entra no café.

Ela estava como se o universo escaldasse dentro do seu próprio corpo.

Pensou: e se raptasse o cão?

Só por um dia?

Seria impossível. O cão era pesado. Depois alguém poderia reparar.

O professor entretido no café parecia falar com outras pessoas.

Ela saiu do carro. Pôs uma cabeleira postiça.  E galgou uns metros até ao cão cansado e lento. Olhou para o animal. Ele num olhar de viés  reparara na figura ao que após, desinteressado, volvia  o  interesse por  um  outro cão mais longe.

Ela chegou à trela. Ofereceu ao cão um  naco  de bife de lombo bem passado.  Ele comeu refastelado.  Ela inteirava-se que o professor continuava entretido.

Bárbara pega na trela e lentamente o cão desliza até  ao carro.

Aí ,com um outro bocado de carne com osso, mesmo adequado,  conseguiu captá-lo  para o  assento do seu lado. Certificando-se que ninguém reparava, arrancou.

O cão mordia com apetite mais  aquele petisco.

(ela sentia música e metais  no corpo.  Os sonhos  eram imaculados e prósperos)

Chegada a casa sorriu com a libido acesa para o canino.  Recolhido, o cão agora dormitava.

Bárbara eufórica  sabia agora que as colinas se alcançam  para além de chuvas de areia.

O despojamento era apenas um episódio entre outros.

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Cecília Barreira é Professora de Cultura Portuguesa Contemporânea na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.  É investigadora integrada do CHAM-Centro de Humanidades. Publicou na Cordão de Leitura os livros de Poesia, Desvarios e Erros Meus (2018) e Voando Sobre um Ninho Fêmeo (fev. de 2019). Iniciou a sua atividade poética em 1984 com o livro Lua Lenta (Europress). É ensaísta e, de momento, cruza a História da Cultura com a Filosofia e a Literatura nos séculos XIX e XX.