A ambigüidade no título deste pequeno artigo é deliberada. Sua construção confunde, ou melhor, complica três possibilidades: ele pode referir-se a gente que lê e escreve mal; a gente que mal lê e escreve; e, por omissão do parêntese, aos atos de ler e escrever em geral. Também há nele uma pontinha de provocação: afinal, é bastante provável que, nos dias de hoje, semelhante título saiba ao leitor não apenas ambíguo, mas francamente antipático. Sim, há gente que pouco se interessa pela leitura e pela escrita, e gente que, embora pratique rotineiramente as duas atividades, interpreta mal o que lê e não consegue dar ao seu pensamento uma forma, senão elegante, ao menos fluente e precisa; mas apontar a essas pessoas um dedo acusador não resultaria numa espécie de elitismo excludente que nenhum bem pode fazer a elas e à sociedade?
Que o leitor se tranqüilize: não haverá aqui dedos em riste. Assim fosse, que seria de mim? Não sou exemplo para ninguém, seja em estilo, seja em correção. Conhecendo as limitações de meu engenho, tento compensá-las com esforço, mas o resultado obtido está sempre aquém do empenho investido; permaneço dependente dos dicionários, cujo número apenas aumenta, como um bebê do seio materno; sequer escrevo consoante ao mais recente acordo ortográfico de nossa língua e, desse modo, sou alguém que, por decreto oficial, lavrado em cartório e registrado em oito vias, escreve errado. Mas desde muito cedo, e ao longo de muitos anos, aprendi ao menos uma coisa: ler é o que basta para aprender a escrever com um mínimo de proficiência. Quem habitua-se a ler, já nem digo grandes autores, o que seria extraordinário, mas bons autores, e acima de tudo, quem lê com atenção, torna-se capaz de escrever com suficiente correção e clareza. Não creio que eu esteja exprimindo um pensamento original; há mesmo, parece-me, um consenso a respeito do tema. O aprendizado da escrita depende, fundamentalmente, do aprendizado da leitura. Assim, este deverá ser o foco principal desta breve investigação: o que significa ler?
Ler significa prestar atenção ao outro, conceder-lhe a palavra, dar-lhe ouvidos. Ler implica, ao mesmo tempo, uma concentração do espírito e uma abertura ao outro; quem lê, seja um texto, uma figura ou as nuanças do rosto amado, perscruta em seu objeto os signos e o sentido, o corpo e a alma, o atual e o virtual. Mesmo ler a si próprio é abrir-se a um outro, pois não se entra duas vezes no mesmo rio; a rigor, não se entra no mesmo rio sequer uma única vez.
Só aprende a ler bem, portanto, quem se abre ao outro, e com rigor suficiente para atentar aos pormenores que entretecem a sinuosidade de seu discurso. Vale notar que a generosidade que facilmente reconhecemos nessa abertura caracteriza igualmente o rigor: pois se “dar ouvidos” não significa prestar atenção, não significa grande coisa. E se porventura o leitor se der conta, ao longo desse processo, de que não está a ler as palavras do próprio escritor, mas as de um tradutor, poderá sentir-se encorajado a aprender a ler mais uma vez, desta feita na língua usada pelo escritor. Assim, no processo de conhecer outros homens e de aprender novas línguas, o leitor vai transformando, na linguagem do biólogo estoniano Jakob von Uexküll, um meio ambiente (Umgebung) que lhe era indiferente num mundo próprio (Umwelt). É claro que a leitura será sempre seletiva, e por uma razão incontornável: é impossível dar ouvidos a todos, é impossível aprender todas as línguas, é impossível fazer nosso mundo próprio coincidir com a totalidade do meio ambiente. Entretanto, o que realmente importa não são os limites que a finitude impõe, mas o movimento de abertura pelo qual, lendo e escrevendo, dou atenção ao outro; movimento esse que, ao menos virtualmente, me põe em contato com o todo da humanidade, presente, pretérita e futura, e mesmo com o todo da criação.
O que significa (mal) ler e escrever? Paradoxalmente, o problema que estou tentando estabelecer desde o início não é de ordem literária e não pode ser compreendido nos termos de uma cultura puramente livresca. Há gente que não lê, ou lê mal, porque possui uma deficiência neurológica, psicossocial, cognitiva ou de qualquer outra ordem. Há gente que, por circunstâncias de vida, sequer teve oportunidades para instruir-se. Há gente, enfim, que simplesmente optou por modos de vida — formas de produzir a própria existência e de integrar-se à sociedade — que não passam, ou passam apenas marginalmente, pelo uso da palavra. No entanto, à medida que vamos pondo à parte as exceções, percebemos claramente que, por via de regra, ler pouco e ler mal são sintomas de uma indiferença em relação ao outro. Lê pouco e lê mal quem pouco se importa em dar ouvidos aos outros, quem não está minimamente interessado naquilo que os outros têm a lhe dizer, quem não acha que valha a pena esforçar-se para perceber o que o outro diz. Assim, o problema que temos diante de nós não é somente lingüístico, cognitivo ou educacional, mas demanda um esforço de compreensão que envolve, por exemplo, a ética, a filosofia e a política.
Este é o primeiro de uma série de artigos, e não irei encerrá-lo com respostas, mas com algumas interrogações. Em que se transforma a política, essa arte de escutar o outro, quando o político apenas dá ouvidos ao seus cúmplices, usando os demais cidadãos como meros instrumentos para a realização de seu projeto de poder? Como caracterizar uma sociedade onde se multiplicam os profissionais da escuta, pois nela todos falam e ninguém ouve? O problema da abertura e do fechamento (da indiferença e, no limite, do ódio ao outro) concerne apenas aos indivíduos? Ou poderá ele afetar culturas e até civilizações inteiras? Em que medida os algoritmos das redes sociais, que tendem a produzir grupos encerrados em si mesmos, serão capazes de produzir, simplesmente por criar essas clausuras opiniáticas, focos de intolerância cada vez mais radicais? Por que há tantos analfabetos funcionais no Brasil, país que conseguiu, apesar das dificuldades, universalizar o acesso à educação formal? Será que as deficiências que os próprios professores gostam de chamar de “sistêmicas” e “estruturais” bastariam para explicar o formidável fracasso da educação brasileira? Terão as crianças e adolescentes de hoje compreensão de que dar ouvidos apenas aos coleguinhas, aos artistas pop e aos “influenciadores digitais” da hora pode não ser o bastante para torná-las aptas a orientar-se num mundo cada vez mais complexo? Não pretendo responder essas perguntas tão cedo, mas suponho que os leitores que me acompanharam até aqui terão prazer em ensaiar suas próprias respostas.
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Francisco Traverso Fuchs descobriu que o tabaco não torna em fumaça as mágoas, e trocou-o pelo chimarrão. No entanto, devido aos muitos anos de tabagismo, sofre de lapsos de memória relativos à mais recente reforma ortográfica. Ousou traduzir As Leis Sociais, de Gabriel Tarde, foi expurgado e tardiamente descobriu (por que claudica?) o Brasil. É mestre em filosofia pela UFRJ, mas prometeu roubar o fogo e tornar-se filósofo.