MARÍLIA SEM DIRCEU, MARÍLIA COM DIRCEU** – por Danyel Guerra

 

A juventude é uma doença

que se cura com o tempo”   

George Bernard Shaw

Ao descerrar as cortinas da janela, devassando o olhar para o belo horizonte, Maria Doroteia dissipa num ápice a boa disposição com que saltara da cama. Imaginava que a luz de um sol radiante seria portadora de bons auspícios. A visão de uma manhã brumosa, nebulosa, umedecida por gotículas de orvalho, precipita-lhe súbita ansiedade. O outono impõe sua lei. E uma espessa lubrina* já atapeta, em tons cinzentos, o caminho do agreste inverno.

Como os caRiocas, esta mineira também não gosta de dias nublados. Mas quem gosta?! Além do mais, o nevoeiro tem o impertinente condão de avivar em sua lembrança a imagem, ainda nítida, de um esperado Desejado.

A escassos metros, envolto no drapejado de lençóis e cobertas do leito, repousa um livro, páginas abertas numa das estâncias do canto “mais doce, alegre e deleitoso” da epopeia. As artimanhas do aleatório não poderiam insinuar aconchego mais propício.

Oh! Que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava! (1)

Não, hoje não vou visitar titia. O clima não está nada convidativo. Fico por aqui, lendo, fazendo umas arrumações nas velharias, decide, apertando o cinto do penhoar* azul violetado, enquanto se aproxima de um escrínio de porcelana, que costuma usar como pesa-papéis. Antes de levantar a tampa, pega numa folha e escreve uma solitária frase.

Ao encarregar Chiquinho da entrega da mensagem, lembra ao moleque que deve ser veloz como Mercúrio. Isto, apesar do escravo não trazer calçadas sandálias aladas, nem coisa que se pareça. Lacônico, o recado tem como destinatário o tenente-coronel dos auxiliares Manuel Teixeira de Queiroga, um buliçoso homem de negócios que mora mesmo em frente da casa da tia Ana Cláudia, à Ladeira da Praça, no centro de Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto.

Na sede da Capitania das Minas Geraes não é só de manhã que uma névoa, tingida de chumbo, inibe a aparição da luminosidade solar. Nas minas, veios, córregos, riachos e ribeirões, haurido o ouro, a autenticidade cede o passo à contrafação. Do mesmo modo, nas relações humanas, quando a falsidade suplanta a verdade, a hipocrisia e a intriga emudecem a franqueza e a lealdade, a insídia tende a impor sua supremacia.

Espalhados pelos corifeus da maledicência, os boatos escalam as precipitadas ladeiras do Pilar de Ouro Preto. Subindo ágeis as calçadas e descendo sem freio morros e outeiros, boatos ciciam que, há mais de um ano, Maria Doroteia apostara suas fichinhas amorosas num idílio secreto com um reinol*.

Reinol que, sublinhe-se, o ex-noivo de Doroteia, o juiz Tomás “Dirceu” Gonzaga, apelidou de “Roquério” e destratou, com irrisória verve, n’ As Cartas Chilenas. Quando escreveu tão jocosos versos, o lírico vate, tornado cronista satírico, parecia estar adivinhando a proeza que o arguto contratador congeminava, armado dos trejeitos de um D. Juan provinciano.

Se certezas intuísse, o poeta não hesitaria certamente em soltar a furiosa Megera no caminho do mal-ajambrado* rival. Na realidade, enquanto o bardo Dirceu padecia, como um Prometeu, as agruras do cárcere, o lisboeta, encostado ao parapeito da janela de seu sobrado*, vestia a casaca do galante. E insistia, persistia em cortejar a ex-nubente, sempre que a formosa subia ou descia as escadas da casa da tia.

Mas que ninguém o acuse de ser um fauno depravado. Nos seus viçosos vinte e poucos anos, a moça já não se encontra em estado de graça. Afinal, Dorô está na idade em que na mulher, o fulgor da juventude começa a se volatizar, como depurada fragrância exposta ao flagelo da ventania.

Ela tem que aproveitar o dia, a tarde, a noite e a madrugada, enfim, gozar o carpe diem aprendido nos carmes* que o pastor Dirceu lhe dedicara. Todavia, tal como de Nefertiti, dela arriscaria dizer que o mito a dotara de todas as virtudes. Mesmo a de se ter resguardado dos ímpetos da lascívia, se tornando uma casta, fiel até à morte, em tributo e respeito ao primeiro amor. É dessas amenidades que se geram, nutrem, crescem e se agigantam as legendas, em especial as românticas.

Em plantão permanente, as línguas da fofoca não se cansam de cochichar que a senhorita soubera da publicação de Marília de Dirceu ao relançar o olhar para um livrinho, abandonado ao acaso, em cima do criado-mudo* da cama de Queiroga. Ao abri-lo, leu embevecida uma das liras que Tomás António lhe dedicara, em carta prenhe de emocionada afeição, nos tempos desditosos da prisão, onde continuou a tecer, com fios de seda, sua (Doro)teia de sedução…

Mal durmo, Marília, sonho
Que fero leão medonho
Te devora nos meus braços (…) (2)

Pelo visto, o reinol Queiroga não é somente o proprietário dos melhores cavalos da vila. Aparenta também cultivar estimáveis hábitos de leitura, isto se não passar de um mero acumulador de livros, para emoldurar estantes e impressionar as visitas num alarde de postiça erudição.

Nos poemas do desafeto, o sôfrego Roquério talvez procure aprimorar os requintes da conquista. Ancioso por arrebatar, de vez e para sempre, o coração da donzela, o “fero leão medonho” afina sua voz para melhor cantar a formosura de Marília, perscrutar seus “olhos belos”, beijar a “testa formosa”, afagar os “negros cabelos.”

Não foi, de certeza, por esquecimento que o pedante rendeiro ocultou a Doroteia a aquisição de um exemplar do livro. Piorando o quadro, foi devido a uma distração sua que a desejada soube do regresso a Vila Rica das arcádicas e pré-românticas liras. O deslize por pouco não comprometeu seus planos. A moça ficou mais que despeitada. Quase revoltada, não apreciou nada ser  (des)tratada como uma menina suscetível, afeita a crises de volubilidade juvenil.

O que em definitivo a desiludiu foram os receios e a insegurança de Queiroga, como se a visão das pastorais de Dirceu, em letra de impressão, nela reavivasse as recordações do malogrado romance com o desgraçado ouvidor.

De súbito, uma forte pancada de vento sacode as janelas do quarto, arrancando Doroteia destes intrigantes pensamentos, trazendo-a de novo à soturna realidade. Abre por fim a boceta e depara com o anel de ouro e diamante, presente do agora degredado na longínqua Moçambique. Sua atenção se dirige, porém, para uma folha de papel, dobrada em quatro, onde Tomás escrevera um soneto dedicado a ”ilustríssima Condessa de Cavaleiros, D. Maria José de Essa e Bourbon.”(3)

A excelentíssima senhora era a venerada esposa de D. Rodrigo José de Menezes, governador e capitão-general das Minas Geraes, filho do famígero Marquês de Marialva. Encharcado de reverente louvação, o poema celebra a memória da mítica Inês de Castro, a cuja linhagem a condessa se ufanava de pertencer. O soneto(4) terá sido declamado num dos saraus que D. Rodrigo, inchado de prosápia, promovia no palácio. Foi a primeira vez que a então mocinha ouviu comentar os talentos poéticos do garboso ministro, vizinho do lado da tia Ana Cláudia, na Casa do Ouvidor.

Maria Doroteia julga convencer-se de que simplesmente obedecera a um impulso, quando resolveu vasculhar nas obscuras galerias do túnel do tempo, lembranças tão antigas de Dirceu. Não por acaso, durante a noite, ao se recolher, ela buscara encontrar o son(h)o, folheando Os Lusíadas. Ao passar pelo Canto III, sentiu-se de modo inelutável, atraída para a leitura do episódio de Dona Inês de Castro.

É no afã dessas rememorações, que um esbaforido Chiquinho a põe em desassossego, clamando que traz recado urgente do Sinhô Queiroga. Basta a Doroteia se inundar da clarividência de uma Sibila para se tornar sabedora do que Manuel lhe quer revelar com tanta presteza. Um saber em indiferença tornado. Lacrado, o sobrescrito lacrado continuará. Doroteia cerra, ríspida, as cortinas, inundando o quarto de uma recatante penumbra. Embora contrariada, se angustia ao escutar sua intuição garantir que tinha sido formal e oficialmente destronada no coração do trovador. Não tanto por outra mulher mas, o que é bem mais incômodo, por outra musa, virgem e intocada como se fosse uma sacerdotisa de Vesta.

Determinada, recusa cair no precipício de uma depressão sentimental. Afrouxa o cinto do penhoar, afasta, resoluta, as cortinas, abre a janela para confirmar se a névoa se tinha dissipado. O Pico do Itacolomi, imponente e soberano em dias de sol luminoso, envolve-se ainda num manto de nuvens grávidas de chuvisco. Apesar do cenário adequado, o Desejado não voltará nesse dia. Nunca mais voltará.

Lá fora, o ecoar rumorejante das águas de um riacho é abafado pela alegria da algazarra de uma turma de meninas. Sem se importarem com a cor da pele, a loura Anselma, a morena Joaquina, a mestiça Benedita e a negra Rosário pulam empolgadas numa maré* jogada em frente do Chafariz de Marília, à Ponte dos Suspiros.

Bom dia, D. Maria Doroteia! Como vai?, saúda Joaquina, voz maviosa de patativa, “as tranças pretas pousadas sobre os ombros infantis”. E Dorô corresponde com o claro enigma de um vibrante e sonoro alerta. Bom dia, Marília…. Não se esqueça querida, você tem encontro marcado com Dirceu!

(**Marília é o criptônimo arcádico de Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão, noiva e musa de Tomás António Gonzaga, o poeta Dirceu, nascido em Miragaia, Porto (Portugal), a 11 de agosto de 1744.)

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Notas
1 - Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IX, estância 83
2- Tomás Gonzaga, Marília de Dirceu, 1ª parte, lira XXI
3 - Tomás Gonzaga, Marília de Dirceu, 3ª parte, soneto VI
4 - Atualmente, é convicção adquiria que o soneto foi escrito a duas mãos, com o camarada árcade  Cláudio Manuel da Costa, que não seria também nada “coxo”, no que tange à prática da poesia do encômio.

*Glossário

lubrina – neblina
penhoar – robe
reinol – habitante do Brasil colonial, nascido no reino de Portugal
mal-ajambrado – vestido sem elegância
sobrado – moradia de dois ou mais andares, típica do Brasil colonial
carmes-poemas
maré – jogo da macaca, amarelinha

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Danyel Guerra (aka Danni Guerra) nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História Universal da Infâmia pela FLUP. É jornalista nas horas (mal) pagas e autor literário nas horas com vagas.

Publicou os livros ‘Tomás Gonzaga-Em Busca da Musa Clio´’, ‘ Amor, Città Aperta’, ‘O Céu sobre Berlin’, ‘Excitações Klimtorianas’, ‘O Apojo das Ninfas’, ‘Oito e demy’, ‘Fernando de Barros-O Português do Cinemoda’ e ‘Os Homens da Minha Vida’.