INTERIORES
Encerrado sem céu na métrica do tecto. Sinto-me na cadeira. Quem inventou as paredes achou o mundo demasiado grande. Há solenidade no gesto de fechar uma janela, traindo as luzes, traduzindo a poeira. Na sala humedece-se a tarde, nada mexe, e a música no aparelho é surda.
Gosto de interiores. Protegido do clima, observo as cristaleiras sem futuro. O corredor desagua ali, sem ruído, como se morresse na largura da sala. Respiro ligado à máquina de escrever, mas a porta range. Nada entra, são assim os barulhos interiores. A poltrona afunda-me lasciva e muda.
Não há verdadeiramente luz, só amarelos irradiando de cima que pousam nas rendas e nos pratos da mesa imensa. Livros aspiram a sua modéstia, lêem-se uns aos outros com a vidraça da estante embaciando tudo. Há móveis lacrados, tapetes (não tenho a certeza) e o buda adiposo e triste na mesinha de café. Interiores.
Aprisionado no presente deste lugar, no indicativo perfeito. Lembro-me que há, talvez, uma lua feroz lá fora, mulheres com olhos imensos, de cabelos embriagados, cavalos saltando luas, e logo desisto de lembrar.
Encontro leveza no gesto de fumar, atirando o fumo para a lareira. E os interiores protegidos dos olhos, implodindo de memórias e de vinhos finos, de cadeiras estofadas? Na sala repousa o tempo, como um álbum de fotografias ou um vaso de açucenas.
Mesmo que o sol nasça, os interiores têm esta coisa irremediável, fatal com naturezas mortas na parede, e gatos no sofá.
Os velhos retratos que parecem sorrir do tempo. Sorriem irónicas as faces a preto e branco, lívidas. Labirintos tão simples e sensíveis. Interiores. Mesmo se o coração é viajante, dobramo-nos e a sala de estar é um destino, um porto, um cansaço.
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NÃO
Disseste meio-termo ou meio-dia e abalaste o meu coração. Mas não. Trouxeste para a conversa os ecos do dia e as rugas do mapa, com um caminho de salvação. Em vão. Lírico e coloquial, abri um livro de que só conheço o prefácio e falei dos maus sentimentos em literatura. Quis perder-me, mas não ainda. Nunca finda.
Sim o verso é sempre histórico, escreve-se sem pensar e num mundo impensável. Mas não te comoves. A via é estreita, agitas a mão quando dizes coisas temporais. Chove. O meu coração começa, cafeína, melancolia, qualquer coisa que lhe dê coragem e vigília.
Leio a crónica de Fernão Lopes, o Mestre de Avis no Porto. Essa fala de cores e de gestos fortes não te responde. Ao menos o meu coração espera. E a tua mão, mas não.
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UM DIA
Um dia a lua vai criar uma sombra só para mim. Numa dessas noites de gatos, noites de estrelas pousadas, a sombra será um presente lunar. E os vastos braços da sombra quebrarão o mar, repartirão as ondas. Serei um homem com amparo de sombra e luz de pedra, com faróis esperando-me como um rei no exílio. Um dia a lua irá quebrar todas as promessas e dar-me a sombra que me conduzirá entre pátios e ruelas, como um mendigo, como um mapa, como névoa, como rei deposto e imenso.
Bernardino Guimarães nasceu no Porto, num distante mês de Novembro. Poeta vivo felizmente, divagante entre letras e activista ambiental, radialista e outras coisas intermitentes e talvez inúteis.
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