HARATINES – por Jonuel Gonçalves

                                             

3º Episodio – Idrissa

Mesmo acostumado ao  deserto desde o teu nascimento tu sabes que ele pode ser  solidão como mais nenhuma outra paisagem, digam o que disserem sobre as grandes solidões das grandes metrópoles nas quais  pode-se ficar louco mas  aqui é pior, é corda bamba constante e queda ao mínimo descuido, ou seja, a água perdeu-se, estragou-se ou apenas acabou, o velho caminho das estrelas foi varrido pelo vento de areia furioso ou este vento de areia levantou-se antes de poderes montar abrigo ou ainda o camelo caiu de esgotamento, os pneus do carro acabaram uns após os outros ou, mais ainda, nos últimos tempos foste visto ao longe pelos predadores ferozes de duas ou quatro pernas e as balas estão muito poucas. Lawrence da Arábia escreveu um ótimo livro sobre pilares da sabedoria mas espalharam umas visões ecológicas no oposto da realidade criadora do livro (e do próprio Lawrence) para motivar turistas e assim os desertos – ou pelo menos os menos mexidos pelo ser humano – mostram uma cara lá para fora e outra para nós aqui dentro. Ao Saara falta ser bem mexido pelo ser humano, não acreditem nessas conversas de natureza intocada, a natureza intocada pode matar e aqui enfrentamos muitas ameaças de morte. Apesar de nascido entre minério de ferro, dunas altas e o mar, em Nuadibu  quando criança ia na escola a pensar nas paisagens verdes das ilhas tropicais ou das montanhas geladas do Alpes e olhava á minha volta, além da miséria nem uma sombra, nem um riacho, nem nenhuma daquelas lojas coloridas e luminosas  filmadas pelas televisões de longe e repassadas aqui como se fosse para nos sacanear, mal tratar ou então chamar. Pode ser. Muitos se sentem chamados e vão, alguns chegam mas são metidos em quase campos de concentração, quer dizer, já estão com sorte se pensarmos nos que deixam o mundo no deserto, no mar, sei lá…fodem-se. Mas pelo menos arriscaram. O chamado da paisagem não é o único a movimentar pessoas no deserto para além da vida rotineira na areia. Entre gente dos desertos parece que nos reconhecemos a quilómetros, como dizia Malraux sobre gente da mesma tribo. Até foi assim quando conheci João Baptista, não sabia se era angolano, namibiano ou português, porém ao ouvi-lo falar tive aquele impulso de lhe perguntar se tinha vivido muitos anos ou talvez quem sabe até nascido em algum deserto e tinha sim, no deserto do Namibe. Porra nem gostei de ter acertado porque meses antes tive o meu primeiro grande acerto por pressentimento num pequeno mercado de Nuakchot ao ver  um rapaz  durante quase uma hora rondando as lojas, as mesas ou as esteiras no chão, rondava, disfarçava, olhava um pouco assustado mas não muito, isso significa hábito perante o risco, quero ver quem sabe disso melhor que eu. Acabei por ir lhe falar sem ter como não lhe assustar no primeiro minuto mas em seguida acalmou até porque a fome era muita, quem sabe eu era mesmo aquilo que eu dizia e pediu-me uns uguias. Ia lhe passar os uguias e evitar que ele acabasse preso por algum pequeno roubo, a pior razão para ser preso por aqui, só que bateu logo outro pressentimento e daí para cá a  minha vida tem sido assim: vamos lá que se foda, é movimento em frente se me espatifar sim senhor foda-se, caso contrário terei diminuído muito a solidão e outras merdas. Nem custou muito pressentir, um negro jovem na Mauritânia mal vestido às voltas no mercado de carne, peixe e legumes, estudando como esticar o braço, além de ser obviamente Haratine era um Haratine a fugir de alguém, provavelmente um dos muitos ainda submetidos ao servilismo para não dizer da escravatura doméstica, tão indecente como as outras escravaturas. Indecente só não, é pecado também, ninguém venha ensinar-me o Corão porque fiz a escola corânica junto com a outra e muitas vezes depois da prece da sexta feira fico a discutir com um grupo de irmãos e todos chegamos à mesma conclusão.

Nem demorou dois dias e o segundo pressentimento confirmou-se naquele amontoado de casas a cair e tendas, onde me mandaram ver as condições para meter lá uma escola nem que fosse numa tenda maior e o Haratine do mercado viu-me, correu para mim e disse que entre Haratines temos de nos ajudar, pediu mais uguias e apontou uma casa prolongada com lona. Fui lá e lá estava a moradia dele com mais uma dúzia de iguais, provavelmente todos fugidos da mesma indecência e todos a viver de roubo, esmolas ou, mais raramente, da ajuda alimentar que ajuda muitos estrangeiros a conseguir emprego naquelas agências especializadas em expedir sobras para países como o nosso e nós aceitamos porque é melhor comer  sobras dos ricos em vez de apedrejar cães, gatos e raposas do deserto para tomar conta de restos daqui mesmo.

Desde então nunca mais deixei de trabalhar com Haratines em fuga tal como pressenti no mercado. Estávamos aí por 1991, imaginem. Até hoje porra e não diminuiu, tá na mesma. Pedi ajuda a dois colegas daqui, fui a Dakar para aquele encontro sobre processos de paz em África, falei com dois amigos senegaleses e conheci o João Baptista no encontro. Ele falava muito da Namíbia, independente há cerca de um  ano e aproveitou-se dalguns dias disponíveis pra vir aqui conhecer o Saara, coisa de ver  semelhanças ou diferenças com o deserto dele lá muito a sul, acabou por ver aqueles bandidinhos Haratines também, fomos lá na toca deles junto com os dois colegas daqui e na volta a Dakar levou umas ideias de trabalho para discutir com os dois senegaleses meus amigos faz tempo, portanto, estava formado o nosso grupo. Ele voltou a Dakar na rota de Angola via Lisboa, foi daí que fiquei baralhado sem saber de qual dos três países ele era e lembrei-me do meu pai contando a dúvida quando a Mauritânia ficou independente, tendo passado  dias a decidir se seria mauritaniano, senegalês porque vivamos em São Luís do Senegal de onde os franceses administravam a Mauritânia ou então se arranjava maneira de ficar francês. Ficou cidadão mauritaniano porque era o mais fácil, isso passou pra minha mãe e pra mim e meus irmãos e anos mais tarde quando rebentou a guerra ali na fronteira ele arrependeu-se da escolha. Já se tinha arrependido antes, ao proibirem venda de bebidas alcoólicas aos mauritanianos, bastava ser senegalês ou maliano já podia comprar e beber em público. Fomos de novo para São Luís, agora como refugiados mas nada de conseguir cidadania senegalesa, já não aceitavam e ficamos sem nenhuma porque o governo daqui passou a nos considerar estrangeiros e dizia que nunca mais íamos voltar. Enganaram-se porque voltamos anos depois quando os dois governos fizeram acordos  e eu entretanto  até tive tempo de completar os meus estudos na Universidade Cheick Anta Diop, matriculado com uma folha emitida pelo Alto Comissariado da ONU para os Refugiados  e  ao fazer a primeira viagem à Gâmbia comprar mercadoria para ajudar meu pai na loja em Dakar, nosso sustento durante aqueles anos, levei um documento com várias folhas e capa verde chamado Título de Viagem, já era progresso em relação a uma folha só com aquela fotografia fosca, mas também servia para ajudar as polícias a suspeitar da gente. Porra, essas coisas pelo menos eu não pressentira, não há motivo para superstições de antever ou adivinhar ou ser avisado pelo sobrenatural. Mesmo assim, até hoje, prefiro não ter pressentimentos.

Sem pressentimentos também em Rosso do lado mauritaniano por onde regressamos depois da guerra vi a Fatou Seck, outra ex da Cheick Anta, conversamos rápido dessa vez cada um voltou ao círculo das suas famílias, ali permanecemos uma semana e nos procuramos outra vez e outra e mais outra porque não havia muita gente com quem fosse interessante conversar e o interesse em conversar ligou nós dois. Ela era escandalosa, incomodava muito os outros pois viam nela uma mulher incapaz de ficar no seu lugar, por exemplo, numa oração de sexta-feira ajoelhou-se logo atrás do amontoado de homens, todos olharam e disseram para ela sair dali senão a oração seria amaldiçoada por Allah e Seu Profeta, eu ri e fomos embora os dois, ajoelhamos a uns duzentos metros, mandaram-nos recuar mais, fomos para trezentos, ainda não estava longe e nos quatrocentos  metros deixaram-nos em paz e rezamos os dois. Confesso: antes de rezar disse “vão se foder”, ela ouvi e riu. Oração de qualquer religião devia começar assim a rir de alguma coisa.

Deram-nos emprego no Liceu de Rosso, a minha família voltou a Nuadibu, a dela instalou-se em Kaedi e com ela ficou uma tia, sem dúvida tomando conta talvez por minha causa. Mantivemos três anos de muita cumplicidade, fodiamos sem lhe tirar a virgindade porque nós nunca casaríamos, isso estava nas evidências de ambos, portanto não havia motivo para lhe estragar um bom casamento.  Fui ao casamento dela em Bamako, o marido era comerciante maliano de grande loja com conta no banco, não um mísero naar e depois disso só lhe vi cinco anos depois em Nuackchot, tendo nós aproveitado os negócios dele para lembrar Rosso e aí sim fodemos como Deus manda, Bissmilah, Deus não é sádico para nos dar coisas dessas e em seguida mandar ficar quieto em continência. Nem sádico nem estúpido porque ninguém ia obedecer até porque a grande divisão no seio da humanidade, determinante de comportamento, humor, talento, simpatia, respeito, honestidade, saúde, inteligência, é entre quem fode bem, quem fode mal e quem não fode nada. Não tem limite e eu vou comer mulher até morrer e quanto mais elas queiram me comer melhor, sim senhora pode dizer que me come é um direito seu e só lhe fica bem, Fatou Seck, por exemplo, mesmo naqueles tempos de Rosso antes durante e depois não se calava e dizia desde vou te comer até cada vez gosto mais de te saborear. E eu ria como ri naquela sexta feira antes da oração, só continuo curioso sem saber se o marido tem outras esposas, mas ela nunca tocou nisso então também não toco e nem conto isto á toa. Conto porque foi numa das idas a Nuakchot encontrar-me com ela que encontrei aquele rapaz no mercado. Quando digo foder faz a diferença, faz até nos acontecimentos mais inesperados e marcam a vida da gente. O meu trabalho de ajuda aos meus patrícios Haratines e este nosso hoje muito solicitado grupo tem link com a Fatou Seck nua e ela nem sabe. Também nunca lhe toquei nesse assunto, havia assuntos sempre imediatos e urgentes a resolver em tempo curto, refiro-me a estar juntos de dia, discretíssimos sem levantar suspeita alguma nos vizinhos, algo difícil até em Nova Iorque quando ocorre mais de duas vezes, agora imagine-se em Nuakchot. Estivemos nisso uma ou duas vezes por mês durante cinco anos e valia duplamente a pena vir de Rosso a Nuakchot para isso e, finalmente, vendo com os olhos de hoje, até serviu de treino para outras tarefas lançadas pelos links da vida. Fatou Seck acabou por sair da minha vida à medida que lhe aumentava o número de filhos e deixou de vir à Mauritânia. Ainda me avisou que tinha ficado muito gorda, atributo apreciado por grande parte dos homens tanto aqui  como no Senegal Mali Gâmbia e outros – pra mim e outros com eu tanto faz  gorda ou magra – e da forma como escreveu fiquei com a impressão dela dizer aquilo significando riqueza ou no mínimo boa vida em Bamako, ponto final em tudo o resto. Ok qual é a dúvida? O futuro de 90% das mulheres africanas e talvez 75% global é engordarem, cuidarem das crianças, aceitarem a rotina por longos anos até algumas já muito tarde chegarem à conclusão de afinal se terem fodido no balanço geral. Até as feministas em campanhas separadas dos homens negando que as lutas ou são unificadas ou não avançamos, por isso o sistema gosta dessas divisões, até elas engordam e umas pedem empregos ás outras e estas do alto da sua gordura em peso e dinheiro aproveitam arranjando assim quem tome conta dos filhos, lave a casa, faça a comida e vá às compras. Exatamente como fazem  as poderosas Bidane com as Haratine, sem feminismos nem lhes saberem o significado. É essa merda que me chateia, essa cegueira ou esse mercantilismo e não é só no feminismo é também no racismo. É isso de justificar com essa coisa de identidades coletivas, mulheres dum lado e homens do outro, negros aqui e brancos aculi e querem nos convencer que isso tá certo e é bom e é natural e é divino.  Ná, nem pensar. No nosso clube podemos até ser poucos mas somos homens e mulheres, haratines e bidanes, negros e brancos, dos desertos ou savanas longe daqui e até misturados de ilhas aqui perto. Tem gente a nos criticar por isso mas têm é raiva de não conseguirem fazer igual ou então querem seguir o caminho das gordas ricas que transformaram as gordas pobres em criadas. Porque nesta caminhada já vimos muita gente indignada revoltada falar mal de tudo, mas à mínima oportunidade querem ser patrão ou patroa, pelo menos, não faltando quem queira ser chefe ou até presidente e, como não mudam nada de profundo, mudam-lhe os nomes e dizem chefa e presidenta. África já viu senhores absolutos mudarem nomes de países, mandarem as pessoas mudar os próprios nomes, mudar as roupas de acordo com essa coisa das identidades e enquanto fica tudo entretido assim os mandões ou mandonas vão direto ao assunto e ficam gordos e gordas de tanta tanta tanta riqueza. Só se vêm fodidos ou fodidas quando se levantam aqueles vendavais de gente e correm com eles, aí fogem, choram, dizem que o mundo é injusto, lhes assestaram golpe baixo. Bem feito e nós rimos dos ladrões vergonhosamente a delatarem-se entre eles, perseguirem-se entre eles, roubarem-se entre eles.

Golpe baixo mesmo fez a polícia contra aquele rapaz do mercado, o Abdoulaye Sarr como ele diz chamar-se, as pessoas aqui e por aqui à volta muitas têm vários nomes, umas á toa, outras os pais até lhes registaram várias vezes porque estava difícil encontrar o primeiro registo. Sem problema. Um dia destes eu estava como muitas vezes faço nas vindas a Nuakchot, sentado na praia perto da velha central de dessalinização de água a pensar na vida de olhos perdidos nas ondas e nuns barcos ao largo, quando apareceu um rapaz colega do Abdoulaye naquela casa esfarrapada onde ao longo destes anos fui uma dúzia de vezes mas nem reconheci este companheiro dele, afinal vinha ali com uma linha e anzol todas as semanas segundo começou por me dizer e disse mais umas coisas até chegar onde queria, ou seja, meu senhor lembra do Abdoulaye? Pois é foi preso e agora talvez nos venham buscar também e estamos fodidos, porque primeiro a polícia acusou-lhe de ladrão de mercado, depois ladrão de peças de automóveis e como não tinha provas de  nada chamou-lhe de ajudante da Al Qaida  no rapto não sei de quem e de espalhar ameaças ao Paris-Dakar que agora corre na Argentina ou no México, não sabia, só sabia que se fosse  praqueles lados  melhor teria sido ir na Jamaica por causa da boa música. Á noite falei com um amigo do ministério da Justiça e fiquei em Nuakchot mais quatro dias, a tempo de confirmar os receios do companheiro da linha e anzol: tudo preso e até acrescentaram três conhecidas deles, de situação na vida igual à deles desde a nascença, acusadas de prostituição antes do interrogatório, antes mesmo de lhes perguntarem os nomes, como as polícias preferem em todo o mundo quando prendem uma mulher. Voltei a falar com o amigo da Justiça e ele disse-me que o governo andava chateado com tanta agitação e tanta imoralidade pública e ainda por cima o tribunal civil ia julgar de novo um blogueiro blasfemador e muita gente pede que lhe seja mantida a pena de morte como manda a Charia, até querem fazer uma manifestação por isso amanhã aí na rua, então por tudo isso era melhor eu me manter um pouco afastado senão começam a ver conspiração haratine e as coisas ainda ficam piores para eles. Afastei-me e deixei quase tudo nas mãos desse meu amigo bidane gente decente. Quase porque a história do blogueiro Cheick Ould Mohamed Ould Mkhaitir ou Mohamed Cheick Ould Mohamed (como eu disse aqui temos muita gente com dois nomes) eu tinha de avisar o João Baptista também autor de blog e os dois tinham se conhecido na segunda vinda do João aqui.

Ould Mkahitir ou Ould Mohamed foi condenado à morte em 2014 sob acusação de apostasia devido a uma postagem no blog dele, tendo a pena sido confirmada em 2016 embora com mudança da acusação de apostasia a descrença ou algo assim, é difícil traduzir a palavra árabe ridda. Os advogados e os grupos dos direitos humanos conseguiram do Supremo a anulação desses julgamentos em Nuadibu e abertura dum novo em Nuakchot. O João é blogueiro mais antigo, deve ter aberto o dele aí pelo ano 2005 se não me falha  a memória e logo no ano seguinte a Aminata pediu-lhe em Dakar se ele podia publicar fotos contrárias aos fanáticos religiosos que querem fechar as mulheres em casa ou se saírem tem de ser com todo o corpo coberto porque corpo feminino é pecado é tentação para os homens é afronta. Publicar essas fotos aqui em qualquer parte do Sahel é arriscar-se a prisão ou assassinato e o João lá longe tá fora do alcance dos fanáticos. Aminata não segue totalmente a linha daquelas gringas exibidoras de seios na rua com palavras de ordem sobre os direitos das mulheres, mas acha boa ideia celebrar o corpo da mulher como Deus fez e o João concordou entusiasmado, ia já publicar uma fotografia de mulher negra semi nua de costas, mas Aminata não deixou. “Só depois de saíres de Dakar”. Ok, ele publicou ao chegar a Luanda e as amigas da Aminata divulgaram sorrateiramente, milhares viram e acharam lindo, menos os fanáticos que tentaram bloquear o blog em três países oeste africanos sem conseguirem.

Esse sucesso no ataque ao falso puritanismo dos fanáticos medievais entusiasmou-nos a todos e não só às amigas da Aminata, daí o João ter prosseguido e insistido na publicação de fotos assim, quer dizer, erótico bonito embora muita gente ache que  ele devia ir mais longe  e mostrar tudo o que Deus nos pôs entre as pernas ou até vídeos de ação completa, a fim de deixar os fanáticos mais velhos com ataques cardíacos ou complexos de impotentes, mas ele preferiu manter tal como estava o blog jotabap, nome dele mal disfarçado, ganhou audiência aqui pelas imagens pois os textos eram em português, só entendiam os bissau-guineeses ou os caboverdianos e estes nem precisam das fotos, lá no país deles cada um vê o que quer. Mas não somos apenas nós do Sahel a termos porcos e canalhas com merda na cabeça e na boca, no ocidente tem uns iguais a estes que passam por cima das criações divinas e decretam pecado sobre o corpo humano, ou porque o corpo deles tá mais fodido que pele de elefante velho ou porque não passam de punheteiros e punheteiras. Teve até um alto dirigente cristão na Europa a propor casamentos sem fodas e o facebook quis proibir esculturas eróticas históricas, orgulho da humanidade e de grandes museus. Assim o blog jotabap prossegue a caminhada, mandei-lhe as últimas sobre o Ould Mkhaitir ou Ould Mohamed e no dia seguinte elas lá estavam seguidas de apelo à solidariedade urgente. Rolei as postagens para trás e duas semanas antes ele tinha publicado uma foto de casal a fazer amor ao longe.

Voltei para Rosso, atravessei o rio para o Rosso senegalês e apanhei um car rapid para São Luís conversar com a Fatou Ndiaye  e lá soubemos que o tribunal tinha baixado a condena do Ould Mkhaitir ou Ould Mohamed para dois anos de prisão, ele já tinha cumprido mais de três, tinham de lhe dar liberdade e sem dúvida ele ia precisar fugir, talvez por aqui e juntar-se à família que tinha bazado pá França depois de centenas de ameaças de morte. Os fanáticos e as fanáticas fizeram cenas de bué histeria no tribunal, saltavam como bodes, espumavam, babavam pelos cantos da boca, há dúvidas se era baba ou merda, esmurravam as paredes e gritavam  “o Profeta foi insultado, nós o vingaremos” enquanto isso o réu e os advogados saíram escoltados pela polícia, não voltei a ter notícias de Ould Mkhaitir ou Ould Mohamed mas cerca de um mês depois o bidane meu amigo do ministério veio a Rosso e contou-me que os rapazes e as três mulheres  tinham sido libertados após aceitarem voltar para casa dos antigos donos e todos voltaram, talvez fujam de novo mal vejam porta aberta. As mulheres foram examinadas por mulheres da polícia: duas eram virgens, a terceira disse ter sido desvirginada pelo dono a quem ela chama pai e depois rezaram em paz a rogar por benção. No último dia do ano cristão de 2017 o jotabap publicou uma linda foto de mulher nua com as pernas cruzadas e Fatou Ndiaye desejou-me de São Luís bom ano novo pelo wattsapp. Antes de desligar perguntou se eu tinha alguma pista das três mulheres presas, libertadas e devolvidas à casa dos antigos donos. Não tinha mas fui procurar.

Glossário:

Haratines – é designação geral para os negros da Mauritânia, descendentes de escravos e alguns ainda sob escravidão. Bidanes  – são os mauritanianos brancos.
Uguia – é a moeda da Mauritania.
Naar – é comerciante informal.

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Jonuel  ( de José Manuel ) Gonçalves economista angolano, atualmente no Brasil concluindo pesquisa pós doutoral sobre  ascensão e crise de economias emergentes dos dois lados do Atlântico Sul. Vários livros publicados com edições em Angola, Brasil e Portugal, ficção e não ficção. Em Portugal, não ficção: “Franco Atiradores”, “E se Angola tivesse proclamado a independência em 1959?”; romance: “A Ilha de Martim Vaz”.