DOSSIÊ A CARGO DE FLORIANO MARTINS – “Surrealismo a palavra mágica do século XX”

Surrealismo é a palavra mágica do século.

César Moro

Ao começar a preparar este dossiê me veio à tona uma indagação que não quero deixar por menos: como seguir uma ortodoxia que postula a liberdade total? Em conversa com Zuca Sardan, ele me diz: A liberdade total é não tentares impor tuas ideias na cabeça dos outros. E seres um toureiro na finta aos donos da verdade. Deixe os dois ouvidos abertos e alertas. Um para deixar as palavras entrar, e outro para deixar as mesmas palavras sair. No caudal das palavras que chegam, haverá talvez uma ou duas raras pepitas. Guarda-as, mas não digas nada ao orador. Este sentido de liberdade não faltou ao Surrealismo, embora tenha sim faltado a seu regente, André Breton. Não tanto pela imposição da própria palavra, mas antes pela surdez em relação a muitas palavras (aqui incluindo todas as palavras de quaisquer outros idiomas que não o francês). Ato praticamente isolado, embora tenha causado imenso tumulto na formação original do grupo, sobretudo em face de suas indevidas expulsões. Não afetou, por outro lado, a expansão do movimento e sua vazante mágica de viagens por todo o planeta.

A propósito das expulsões, ao conversar com Claudio Willer, ele me observou que Jean Schuster certa vez comentou que na expulsão de Max Ernst, em 1951, Breton foi voto vencido; assim como naquele da execração de Michel Carrouges, conduzida por um Pastoreau que depois abandonou o grupo. Em suma, Breton não seria tão sectário e autoritário assim, e muitas decisões foram coletivas. Mas, sem dúvida, surrealismo difere de um ambiente pluralista como o da Beat Generation, que abarcava desde o reacionarismo de Kerouac e o niilismo de Corso até o esquerdismo algo ortodoxo de Ferlinghetti. Mesmo assim, o Surrealismo sobreviveu às suas pequenas idiossincrasias, sendo até hoje fonte inesgotável de imensos criadores.

Acerta plenamente o peruano César Moro (1903-1956), ao afirmar que surrealismo é a palavra mágica do século. Sua maior utopia radica em um dos três pilares de sustentação: se resultou magnificamente na poesia e no amor, algo ficou devendo na liberdade, uma nesga de ambiguidade, posto que este conceito requer aceitar as opiniões divergentes. Ou, como acertadamente defendia René Magritte, a liberdade é a possibilidade de ser e não a obrigação de ser. Recordemos ainda os dois outros pilares: amor e poesia. O primeiro deles tão multifacetado que abriga infinitos modos de ser. René Crevel assim o defendia: o amor deixou de tentar situar-se além do bem e do mal, pois, simplesmente, o amor faz do mal um bem e do menos um mais. Já a poesia, como recorda Aldo Pellegrini, é a linguagem do homem como essência, é a linguagem do inexpressável no homem, é conhecimento ao mesmo tempo em que manifestação vital, é o verbo em sua qualidade de sonda lançada nas profundezas do homem.

Defendo que no ambiente cultural, onde naturalmente se inclui o domínio artístico, dois foram os fenômenos mais vultosos que influenciaram a cartografia espiritual de todo o planeta e até hoje se mantêm plenamente atualizados, em estado perene de convulsão: Surrealismo e Beatles. E entre ambos se evidencia alguma confluência, cabendo frisar o particular interesse de Paul McCartney pelo que seu biógrafo Barry Miles chama de proto-surrealismo. Paul destaca ainda a influência que teve em seu universo criativo a patafísica de Alfred Jarry, lembrando que chegou mesmo a fazer referência a ela em “Maxwell’s silver hammer”, gesto que, segundo Miles, sintetizava a abordagem de Paul em relação à vanguarda e as maneiras pelas quais ele incorporava em seu trabalho nos Beatles as ideias novas que ia encontrando. Vasto território de afinidades entre ambas as vanguardas, sem esquecer o modo de criação compartilhada das canções assinadas por Lennon e McCartney.

Quero aqui dar ressonância a dois aspectos envolvendo o Surrealismo: seu marco inicial e o modo bastante singular como imagem poética e plástica encontraram uma dimensão alquímica em muitos surrealistas. Um terceiro aspecto de imperativa ressonância diz respeito à expansão do movimento, tanto no plano geográfico quanto estético. Deste último ponto venho tratando em duplo volume dedicado ao movimento, sob o título geral de Viagens do Surrealismo, ousada aventura de investigação sobre os caminhos traçados pelo Surrealismo na poesia do século XX. Disposto em dois amplos volumes, o livro esquadrinha criação e ambiente cultural. Um primeiro volume, em suas 930 páginas, reúne uma mostra vultosa da poesia surrealista, seus antecedentes e distintos herdeiros. São 161 poetas de 38 países, abrangendo todos os continentes. O segundo volume, ainda em preparação, compartilha estudos críticos, enquete e documentos. Para ter acesso ao primeiro volume basta clicar aqui no próprio título: Viagens do surrealismo, 1 – A criação. O segundo volume terá por título Viagens do surrealismo, 2 – Atlas, com publicação prevista para final de 2019, como parte de uma agenda nossa de comemorações do centenário do Surrealismo.

Apego-me ao marco inicial registrado no calendário de 1919, considerando pelo menos duas ocorrências naquele ano: a edição da revista Littérature (Aragon, Breton, Soupault) e a realização dos primeiros exercícios de escritura automática na criação a quatro mãos de Les champs magnétiques (Breton, Soupault). Na série de entrevistas radiofônicas que deu André Breton a André Parinaud podemos encontrar menção a esta dupla ocorrência. Sobre a revista Littérature, diz ele que, mesmo quando esteve muito minada pelo espírito “Dadá”, não deixava de permanecer relativamente fiel a sua forma inicial. Os artifícios tipográficos que foram a principal galanteria de Dadá e de 391 não desempenharam nela papel algum. Breton copiou do próprio punho e publicou em Littérature a íntegra do livro Poésies de Lautréamont. Sobre a segunda ocorrência, o poeta continua: o que é muito significativo e requer que lhe prestemos atenção de uma vez por todas é que em seus números de outubro e dezembro de 1919, Littérature publicou, sob minha assinatura e a de Soupault, os três primeiros capítulos de Les champs magnétiques. Indiscutivelmente se trata da primeira obra surrealista (de modo algum dadá), uma vez que é fruto das primeiras aplicações sistemáticas da escritura automática. Considerando as distinções de espírito entre os movimentos Dadá e Surrealismo, acerta Sérgio Lima ao falar em acolhida deste em relação àquele e não simples adesão. E o próprio Breton bem antes já o confirmara, ao dizer que é de todo inexato, e cronologicamente incorreto, apresentar o surrealismo como um movimento proveniente de Dadá, ou ver nele o ressurgimento de Dadá no plano construtivo.

O aspecto mais caro à presente edição diz respeito ao plano alquímico em que as imagens plástica e poética encontraram lugar para a relação entre ambas atividades criativas, o mais longe possível do território da ilustração. No chileno Ludwig Zeller (1927) é tão expressiva essa operação alquímica que podemos dizer que lemos as suas colagens na exata proporção em que vemos os seus poemas. E ambos trafegam na mesma zona temática. Já o brasileiro Zuca Sardan (1933) tanto adentrou o labirinto dessa fusão que seus poemas e desenhos se entrelaçam em uma mesma página, já de todo impossível de separá-los. Iguais e intrínsecas analogias nós encontramos entre o poema e a fotografia, no japonês Kansuke Yamamoto (1914-1987), ou entre o poema e o vídeo experimental na ucraniana Maya Deren (1917-1961) ou, ainda, entre poema e desenho, no português Nicolau Saião (1946). O tema tanto me chamou a atenção que decidi a ele dedicar este dossiê, buscando em distintos países e épocas aqueles criadores cuja sensibilidade alcançava um estágio além de quaisquer limites preestabelecidos. Lembro-me de um entendimento de Max Ernst, no sentido de que a arte não é produto de um só artista, mas sim de muitos. É, em seu mais alto grau, o produto de um intercâmbio de ideias. Lembrança que atenta que o mesmo se passa no território dos gêneros.

Em meu livro Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América, recordo trecho de uma entrevista que deu Breton a Jean Duché, em que afirma ter sido no continente americano onde a pintura parece haver lançado seus mais belos feixes luminosos com atraso: Ernst, Tanguy, Matta, Donati e Gorki em Nova York; Lam em Cuba; Granell na República Dominicana; Frances, Carrington e Remedios no México; Arenas e Cáceres no Chile. Volto a recordar tal observação em face do que a mesma é fruto do desconhecimento dos três outros idiomas falados na América (português, inglês, espanhol), o que acabou por impedir em Breton – diga-se que por sua própria decisão – o conhecimento, e consequente afinidade, da imensa poesia existente no continente americano, acabando por relacionar-se unicamente com aqueles poetas que falavam francês, a exemplo do martiniquense Aimé Césaire e do peruano bilíngue César Moro.

Insisto neste tópico apenas para retomar a ideia de liberdade e seu conflito em um ambiente ortodoxo. Poderia finalizar recordando axioma de Tristan Tzara: a ausência de sistema é também um sistema, porém o mais simpático. Uma boa paráfrase seria: a liberdade total é também uma regra, porém a mais simpática.

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SURREALISMO A PALAVRA MÁGICA DO SÉCULO XX

Dossiê a cargo de FLORIANO MARTINS

Cumplicidade editorial: Revista Athena (Portugal) e Agulha Revista de Cultura (Brasil)

Índice geral

01 | 1896-1966 | França | ANDRÉ BRETON

02 | 1898-1978 | França | VALENTINE PENROSE

03 | 1903-1956 | Peru | CÉSAR MORO

04 | 1904-1987 | França | ALICE RAHON

05 | 1906-1999 | Reino Unido | EMMY BRIDGWATER

06 | 1910-1997 | Argentina | ENRIQUE MOLINA

07 | 1914-1987 | Grécia | MATSI CHATZILAZAROU

08 | 1914-1987 | Japão | KANSUKE YAMAMOTO

09 | 1917-1961 | Ucrânia | MAYA DEREN

10 | 1920 | Portugal | CRUZEIRO SEIXAS

11 | 1925-1988 | Bélgica | MARIANNE VAN HIRTUM

12 | 1927 | Chile | LUDWIG ZELLER

13 | 1929 | Portugal | ISABEL MEYRELLES

14 | 1933 | Brasil | ZUCA SARDAN

15 | 1934-2011 | Cuba | JORGE CAMACHO

16 | 1936 | República Checa | ARNOST BUDIK

17 | 1944 | Brasil | LEILA FERRAZ

18 | 1946 | Portugal | NICOLAU SAIÃO

19 | 1953 | Gales | JOHN WELSON

20 | 1961 | Chile | ENRIQUE DE SANTIAGO