ENRIQUE SANTIAGO – CHILE – (1961)

O Surrealismo encontra no Chile um de seus vasos internacionais mais pulsantes e renovadores, de que são exemplos desde a vitalidade esplêndida de Rosamel del Valle (1901-1965), passando pelo grande marco em torno do grupo Mandrágora, em especial com a grandeza estética e o caráter de Enrique Gómez-Correa (1915-1995), as atividades concentradas ao redor do imenso articulador que é Ludwig Zeller (1927), a formação do grupo Derrame, até a destacada presença de Enrique de Santiago (1961). Poeta, artista plástico, ensaísta e agitador cultural. Autor de livros como Frágiles tránsitos bajo las espirales (2012), Elegía a las magas (2014) e Bitácora de un viaje ontológico (2018). Neste último, em seu prólogo o poeta aclara: Minha ação poética está baseada no Uno, no indivisível, de modo que as palavras adquirem uma multiformidade, que as torna mais profundas, mais côncavas e mais convexas, pois assim as vejo, e assim devem ser expostas. Estas não apenas estão compostas de linhas ou formas, mas há também nelas algo invisível que lhes é, ao mesmo tempo, próprio e não, e em tais versos há uma superposição desses elementos que realizam a tarefa simbólica de dilucidar suas proporções fenomenológicas. Deixo assim que ela se expresse por si mesma, que dialogue a partir de sua própria hermenêutica, com sua própria paráfrase ontológica e com a mudez estrondosa que a rodeia, em uma e mil alegorias ou nenhuma – quando o alegórico não está contido no qualificável e reconhecível – onde tudo é tão real precisamente por não sê-lo. Igual reflexão se aplica também à sua pintura, colagem e desenho. Enrique de Santiago vem dedicadamente cuidando da memória do Surrealismo em seu país, graças à publicação de livros e curadoria de exposições, mas, sobretudo, na preparação, ainda em curso, de uma História do Surrealismo no Chile. [FM]

O IMINENTE FULGOR NA JANELA

Falo contigo do centro de minha existência,
de onde é possível ver a paisagem antiga de minha alma,
essa que mostra que as aves visitaram suas zonas
deixando profusos rastros de plumas.

Sou o homem que armazena e resgata as fragrâncias do princípio,
para assim recordar-lhe os cheiros extraviados tanto no presente quanto naquele tempo esquecido do éter.

Tantos anos se passaram desde aquela época,
que cheguei a ser a soma de todas essas cargas ósseas.

Um dia, sobre nossos suores, fomos silenciosa multidão astral,
dirigindo-nos ao centro de duas causas comuns,
para então conhecer a essência das áreas insignes do desejo,
aquelas que se estenderam generosas, em tua geografia desnuda daquele ano quando caí em ti por surpresa.

Hoje tudo ascende com pavor alterando o signo,
é aí onde aprendi sobre as horas verticais e áridas que se oferecem sem clausura,
sem névoa debandada que as mortifique,
sem alturas ou precipícios,
apenas com a suave superfície de teus riscos florais,
fazendo-me chamar por teu nome;
acaso albergado pela noite e a pressa oculta que blasfema,
selvagem condição que após bambolinas,
aguarda com suas enormes ofertas celestes e extensos pandemônios que martelam com persistência o lábio insone,
assim estendes a permanência,
a qual alentas com teus halos urbanos,
imprevistos e tíbios nas ondas transcendentes e sonoras,
como a estridência de teu beijo.

ANIMA MUNDI

A mãe terra exalava o perfume da redenção
enquanto o homem inútil e em seu curso desmembrado
auscultava a noite sem sombra ou nome,
quem sabe para ganhar objetos enferrujados,
no ponto médio de seu abismo fecal,
com o vazio que deixa o temor
e assim nomeia a si mesmo por entre os rostos sem fala
esse dia em que as bodas químicas ficaram preparadas
sem o achado para tuas células óticas
quando as folhas do bosque se precipitam lentas
e em meus ouvidos chega o estrondo do beijo terráqueo
que é um som para ser poeira ocre na memória solar
no final dos tempos
com seu princípio circular no mistério designado,
enquanto são assassinadas crianças do terceiro mundo
para fabricar brinquedos que não eram para elas.

Antes de saber do céu e dos deuses
ela aparece desde um princípio domando os acordes do silêncio
pois conhece a chave para amar em uma paragem adormecida
e lambe as vozes perpendiculares das águas
como rios que surgem dos carbonífero
pois sabe como ofertar o ventre
para engendrar o mundo.

A VERTICALIDADE SURPREENDIDA

O alento criador do bosque
submerso sob teu nome
com seus descendentes etéreos
de plumagem embalada pelo vento
em suas esquecidas vozes setentrionais
mãe do desejo
e da rebeldia
maré curadora da argila
em esporádicas notas aladas
com lágrimas das cavernas
que dão esquecimento à ferida no sonho.

 

SENTENÇA EM SUA HORA

A leveza de tua pupila me ensinou a olhar mais à frente
esse lugar onde nos compreendemos
uma estância de vazio e plenitude
onde há espaço suficiente para roçar teu pelo.

Nada se acaba, apenas um seguir dando voltas em uma espiral,
a mando dos sonhos vetoriais,
que descansam na lua que empina os estames,
como os nomes que esqueci,
o meu próprio,
e o nome de meu destino,
meus números anotados em um dorso de meu cérebro,
e minha respiração.

Um conjuro sobre um sepulcro,
e uma incipiente litania
como uma hora murcha,
música adequada para estas horas,
que abrem caminho para danças debaixo das notas do cosmos,
uma vez mais,
como sempre,
sobrevivendo
à espera da planetária volta seguinte.

Para lá do Xibalba,
o sonho,
uma viagem até as entranhas de teu nome
com a tua pele arcaica
exsudando o mistério
e a luz do abissal
aquele oculto às marés cotidianas
sob o segredo das plêiades.
A antiga voz surgida da separação das águas,
o de cima e o de baixo,
como pálido amanhecer do homem,
sem a exalação primordial
vaga pela superfície
buscando uma alta morada,
para descolar da matéria.

CENTRÍFUGA MEMÓRIA

O ciclo eterno que move as almas
sob as montanhas
e as raízes do fogo
o resplendor do olho insone
que abre o magma do segredo
a varre as dores do sol que arde,
pois se soubesses quando assovia a ave invisível
erias o que esconde a minha palavra
impronunciável desde o abismo lunar
pois é filha da folhagem etérea que a oculta.
razão certa do oceano astral
e sua barca
que às vezes é meu navio
abraçado pela tormenta
e pela brisa
ambas provêm do mesmo princípio
dos contrários
como eu e vocês
como tu
antes de tua estrela
vapor de sílex
sob o negro desígnio
com sua hora subterrânea.

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 Poemas traduzidos por Floriano Martins. Obra consultada: “Anima Mundi” pertence ao livro Elegía a las magas (Santiago: Editorial Varonas, 2014). Os demais são inéditos e foram enviados pelo Autor.

Sugestão de vídeo:

1. El Dadaísmo. Entrevista a Enrique de Santiago, conducida por Miguel Moreno Duhamel

https://www.youtube.com/watch?v=brCMaNrkDWI

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SURREALISMO A PALAVRA MÁGICA DO SÉCULO XX

Dossiê a cargo de FLORIANO MARTINS

Cumplicidade editorial: revista Athena (Portugal) e Agulha Revista de Cultura (Brasil)

Índice geral

01 | 1896-1966 | França | ANDRÉ BRETON
02 | 1898-1978 | França | VALENTINE PENROSE
03 | 1903-1956 | Peru | CÉSAR MORO
04 | 1904-1987 | França | ALICE RAHON
05 | 1906-1999 | Reino Unido | EMMY BRIDGWATER
06 | 1910-1997 | Argentina | ENRIQUE MOLINA
07 | 1914-1987 | Grécia | MATSI CHATZILAZAROU
08 | 1914-1987 | Japão | KANSUKE YAMAMOTO
09 | 1917-1961 | Ucrânia | MAYA DEREN
10 | 1920 | Portugal | CRUZEIRO SEIXAS
11 | 1925-1988 | Bélgica | MARIANNE VAN HIRTUM
12 | 1927 | Chile | LUDWIG ZELLER
13 | 1929 | Portugal | ISABEL MEYRELLES
14 | 1933 | Brasil | ZUCA SARDAN
15 | 1934-2011 | Cuba | JORGE CAMACHO
16 | 1936 | República Checa | ARNOST BUDIK
17 | 1944 | Brasil | LEILA FERRAZ
18 | 1946 | Portugal | NICOLAU SAIÃO
19 | 1953 | Gales | JOHN WELSON
20 | 1961 | Chile | ENRIQUE DE SANTIAGO