Cidade
Primeiro a neblina. A ponte nem se vê, a gente desaparece. Escadas de pedra, memórias de alguém, vida que se move sem ao menos um eixo. Somem-se antes do mar. Vasos, esquinas, desvãos, desvarios, coisas surdas. Farto de paisagens, tudo belo ao longe, como sem rugas, o fio do horizonte prendendo o tornozelo.
Pensei em ti ao chegar. Pensei em partir. Parto sempre um pouco quando chego, sabes. Deixo de ficar e penso em ti quando já nem me lembro. Primeiro as mãos no parapeito. Lembro-me tão bem. Os olhos como luzeiros entre os barcos. Seria bom esperar por ti. Esta cidade, a névoa sobe a cavalo, do rio até à ponte e o mar desaparece e a gente some-se. Este vapor azul da cor dos navios, esta pedra líquida, verde dos limos e rumor da água.
Primeiro a manhã mais clara quando cheguei depois de tanto. Não havia tempo. Pensei em te esquecer e era fria a hora, e bela a ponte que entrava súbita na neblina.
Teia e Memória
Tecia a teia com paciência e seda. Existia naquele minúsculo movimento. Desenhava uma cortina diáfana ao longo da janela. Desconfio que a aranha tecelava o silêncio. Padrões geométricos, obstinados rigores, obedecendo a artes não escritas vindas de quando o tempo ainda nem tinha sido inventado. Um mantra sem gestos, quem sabe uma celebração, integridade contida numa obra só. A teia crescia e à noite, quando o frio movia a fenda breve da janela, a aranha deslizava pela sua criação. Imaginava eu que talvez ela pedisse ao universo um pouco mais de vida para que tudo se cumprisse–e a vida estava nela e cumpria-se no mistério de a aranha estar ali e fazer aquilo. Trabalho tão fino como rendas, como o amor, como cabelos suaves, obra tão longa como a noite é longa. Inútil, como inúteis são todos os gestos, belo a seu modo, terrível de tão inevitável e desmedido.
Daquela tela de silêncio, teia leve e intrincada, creio que a ínfima aranha podia esperar a lua. Essa pedra de gelo furando o céu preto.
Uma vez a lua veio e deteve-se. Claramente a vi no enleado da teia e do vidro atrás do cenário. Astro menor preso naquela arquitectura sem sons. A aranha invadiu a brancura brilhante e passeou-se nas suas solidões. Aranha da lua plena, gravidade, criatura e criadora por instantes. Podia agora morrer, deixar da teia evanescente recordação.
Olhei o céu e lembrei-a. Insecto cósmico e final, sua teia de silêncio, sua vida breve, pequena, escondida–que numa noite assaltou o céu e a lua e luziu para sempre.
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Bernardino Guimarães nasceu no Porto, num distante mês de Novembro. Poeta vivo felizmente, divagante entre letras e activista ambiental, radialista e outras coisas intermitentes e talvez inúteis.
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