O Vestido da Marilyn.
Quero um vestido como o da Marilyn.
Quero um vestido de roda para rodopiar e mostrar as minhas pernas.
Quero rodar à volta de mim e cair nos braços da leveza…
Amparada no espírito demente, que só quer a minha insanidade.
Invisível a todos com o meu vestido de roda, eu rodo e rodopio e ninguém vê as minhas pernas.
Leva-me a dançar. Já tenho o vestido como o da Marilyn para rodopiar. Esqueci-me de te dizer que não sei dançar, apenas sei rodopiar. O meu pai tentou-me ensinar: colocava os meus pés em cima dos dele e dançava desajeitadamente – ele era um péssimo dançarino. Mesmo assim, quero que me leves a dançar. Leva-me a um desses lugares onde as pessoas dançam e não parecem robots. Um lugar onde a música toma conta dos corpos e os deixa abandonados à melodia alegre e vibrante. Um lugar de gente feliz. Quero mover os lábios, fingindo conhecer a letra da música dando prazer à boca, de cantar o amor dos outros. Depois de fingir que sei dançar, leva-me a casa para prolongar a dança no meu travesseiro e adormecer, pensando que sou a rainha da pista e de todos os palcos do mundo.
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De vez em quando…
De vez em quando vens me visitar com esses passos que não pisam chão nem provocam aviso à entrada. Não achas que demoras demais neste corpo que te rejeita todas as vezes que o procuras?
Faço-te um exorcismo e envio-te para as profundezas do Inferno para que assem todas as moléculas do teu ser.
Estás agora comigo, cheia de petulâncias, achando-te uma óptima companhia, fazendo de mim alguém sem préstimo.
A vida não flui para estes lados lamacentos; apenas estagnou numa via sem saída.
Vejo-me a correr descalça, sem norte e desnorteada. Corro e fujo da mancha negra que me persegue sempre que tento subir a ladeira, mas fico-me pelo início – a mancha já está a descer. Implacável, unida nos seus braços cruzados, compacta… não dá para distinguir os seus membros, que de tão unidos, formam a mancha negra. Caminham lado a lado, ombro com ombro, cabeça levantada e descem a ladeira. E eu fujo. Refugio-me na minha desgraça.
Continuo a correr. Os pés já me doem. As pernas começam a ceder ao cansaço. Sento-me no meio da vastidão do nada e vejo-a – a mancha que se aproxima a passos de soldado. É melhor deitar-me e fingir que me tinjo da cor da estrada. Ouço os passos. Certos. Ritmados. Está perto. Tão perto. Fecho os olhos. Não quero ver. Espero que não me veja. A sombra tão sombria quanto a mancha, deita-se em mim sem pousar no meu corpo, e leva com ela os passos ritmados.
Continuo deitada, da cor da estrada, estendida e fundida. Não consigo libertar-me. Não consigo mexer a cabeça. Quero correr. Não quero ser estrada. Quero ser o corpo que corre. Quero ser as pernas que fogem. Quero ser os braços que se agitam como bandeiras da liberdade. Corram, porra. Corram!
Já se passou tanto tempo. Nem dei pelo tempo passar. Aqui entranhada nas entranhas da estrada, adormeci. Tinha tanto sono! Dormi tanto que fiquei com espaço a mais no meu esqueleto.
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Morre…
Morre para que eu possa renascer.
Morre para que eu possa caminhar em almofadas brancas.
Morre para que eu possa abrir os braços e rodopiar de embriaguez.
Morre para que eu possa sorrir até dobrar o riso.
Morre para que eu possa olhar em frente sem olhar sempre para trás.
Morre para que eu possa pensar em ser grande.
Morre para que eu possa dar o passo.
Morre para que eu possa fazer das cinzas o meu arco-íris.
Morre…
Amélia Azevedo é originária da Afurada, onde trabalha como responsável pelo Pólo de Leitura da Afurada da Biblioteca Pública Municipal de Gaia. Nasceu em 1967. Dinamizou inúmeras iniciativas culturais, destacando-se os grupos “Os Pioneiros da Afurada” e “As Varinas da Afurada”. Criou a página de Facebook “As Figuras da Minha Terra” e, em 2017, editou uma obra baseada nessa sua recolha de vivências da Afurada.
Texto lindíssimo, leve mas cheio de conteúdo, cativa o leitor.
Obrigado.