New York era linda no Natal, com flocos de neve cintilantes, coloridos, alegres, refletidos nos seus milhares de espelhos cristalinos. Lojas repletas de luxo e beleza, esperando outro 25 de Dezembro. Como todos os anos, como todos os tempos.
Noite da véspera, quando famílias reuniam-se no calor das casas habitadas por imensas árvores verdes, enfeitadas em guirlandas prateadas e piscando mais que estrelas no céu.
Nessa noite iluminada pela cidade.
Mesmo Vênus, rainha esplendorosa no firmamento, retirou-se calada para sonhar com outras vidas, quem sabe outros Universos.
Porém, o cenário sempre conhecido, esta vez possuía estranho segredo.
O menino caminhava sozinho, passo a passo feito ser invisível, sem nenhum olhar ou pergunta de qualquer outro ser humano. A noite chamada plena de amor, de fato tornava-se plena de exclusão. Um fechar de portas a todos que estivessem fora da Santa Ceia ou alguma Missa do Galo, afinal deveriam ser ímpios e infiéis. Homens de pouca fé no Deus supremo da bondade.
Até igrejas e templos sagrados, após inúmeros rituais e bênçãos aos privilegiados, trancaram entradas e saídas. Missão cumprida, os sabores e cheiros do paraíso também era para eles, representantes legais da felicidade na terra. Pater Noster, perdoai nossos pecados.
Antes de iguarias divinas e vinhos espantosamente caros.
O menino seguia andando, gelado no mundo real, onde não existem renas e duendes encantados, ou Charles Dickens para realizar conversões milagrosas. Mas isso ele sabia, sempre soube, não mais havia ilusão nos olhos castanho-esverdeados. Talvez nunca houvesse existido.
Somente uma tristeza profunda, indelével, intocável, seca de lágrimas doloridas, seca de lágrimas que sabem aliviar.
Seca.
Ele tinha destino certo, derradeiro. Não seguia pela noite sem motivo, lábios e mãos arroxeados, pés ameaçando quebrar mil pedaços, lancinante dor de cabeça. De repente suspirou fundo no peito mal coberto.
Aquela. Finalmente aquela loja.
Ainda decorada com pacotes cheios de fitas, chuvas de papel dourado, pinheiros flutuando luzes, e…brinquedos. Sim, brinquedos. O seu brinquedo.
Sabia que nunca mais o veria, nunca mais além desta noite.
Paz na terra aos homens de boa vontade. Todos deviam ser felizes hoje, décimo-primeiro mandamento. Ele era todos….assim última oportunidade de ajuda transcendental através daqueles inumeráveis santos que ele nunca lembrava os nomes. Muitos, muitos homens e mulheres levantando olhos maravilhados para o céu, orando preces e mais preces nas gravuras dos livros. Afinal qualquer um deles podia fazer este milagre, era pequeno, bem pequeno. Talvez houvesse esperança. Colou o rosto na vitrine pintada e olhou, o desejo palpitando cada nervo do corpo, cada respirar pesado de gelo.
Olhou para ele.
Era um magnífico pierrôt, bordado de seda e lantejoulas, sem nenhum plástico mal acabado, porém de fina porcelana cor da pele. Modelo único, fácil sabê-lo obra artesanal e não produto seriado Made in China, templo mundial de baixos preços e abuso infantil. Para sorriso natalino dos homens de boa vontade.
Seu pierrôt, vestido feito príncipe, tocava sem parar um pequeno violino em fina madeira. Música dos anjos celestiais, mais melodiosa que todos os sons da sua vida. Fur Elise, embora ele ainda não soubesse.
Apenas via os olhos costurados do pierrôt.
Do outro lado, dentro da loja, aquele pierrôt estranho e diferente sabia nunca mais ver o menino.
O seu menino.
Na manhã seguinte toda mágica seria desmanchada e perdida no armazém dos brinquedos rejeitados, repletos de poeira e vergonha. Os brinquedos eram bem mais realistas que os seres humanos, porque não existia santos e paraísos , nem paz na Terra aos brinquedos de boa vontade.
Havia somente uma escolha, um tempo maior ou menor, onde pequenos companheiros brincavam e brincavam com eles, até chegar o tempo das coisas sérias.
E terminassem esquecidos em velhos armários e baús de madeira. Com sorte.
Ou somente…despedaçados.
O pierrôt lamentava não poder falar e contar isso ao seu menino, ao menino que fizera essa escolha há muitas semanas, muitas, desde a primeira em que ele havia chegado nesta loja. E vinha todos os dias colar o rosto na vitrine olhando para ele, seu brinquedo desejado, sonhado, admirado.
Mas que ele não podia comprar, sabido pelos dois nos exatos primeiros minutos. Porém a diferença entre o mundo dos homens e o mundo dos brinquedos era que os primeiros ainda esperavam presentes do Altíssimo, assim chamado, e os segundos não esperavam nada.
Mas nesse caso, nesse caso, fora de todas as regras, ele também esperou ousando sonhar, pois de maneira exatamente igual, havia escolhido seu menino.
Um erro. Porque hoje terminava o sonho de ambos e sequer conseguia acenar um breve adeus. O menino parecia pensar em ficar ali, parado, até a neve encobrir seu corpo. Até o fim. Isso ele não podia deixar, não podia. E silenciosamente implorou ajuda aos brinquedos mais próximos dele, implorou com toda força.
De repente a prateleira onde estava uma maravilhosa bailarina girando sem parar pareceu ceder, fazendo-a bater no violino imutável de Fur Elise. Que fora do ângulo perfeito seguiu tocando, mas cada vez atravessando um dos olhos do pierrôt, pintados de preto. A tinta escorrida, a costura desfeita, foram suas lágrimas para o menino.
As lágrimas de um brinquedo que não podia chorar.
O menino entendeu. E lentamente deslizou uma lágrima pelo rosto inteiro. Uma única lágrima.
A lágrima de um menino que não podia chorar.
Virou as costas, entrando na noite escura.
O pierrôt seguiu chorando, até o fim.
Pelos dois.
Fûr Elise.
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Angela Pieruccini, Psicóloga
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