HOMENAGEM AO ABISMO
Quando abrimos a caixa esquecida atrás do sofá havia uma deriva dentro dela.
Um termo sem fim que há muito não se ouvia. Um clima seco que evitava nossos corpos.
Não importa. Ali estava a sombria figura, como um nó solitário na tarde.
Desatamos levemente os olhos para o encontro com o improvável.
Tudo amarelado pelo bocejo do dia e preguiçosamente os instantes roíam os movimentos.
Colocamos nossa cumplicidade em frente à caixa e soltamos um riso frouxo.
Ali estava ela, lentamente desatando seus membros, como se nada soubesse de tempo e espaço.
Ao entreabrir os olhos de suas conchas surgiam pequenos buquês de nuvens e logo descobrimos que o nevoeiro improvisado era impossível originar-se de apenas um par de olhos.
A sua pele era toda uma miríade de olhos, um estranho casulo de luminosidades cujo primeiro amanhecer era banhado em névoa.
O leque apavorado de encantamentos fechou-se por dentro do que desacreditávamos. Daquele jeito estremecido.
Adivinhamos as imensidades mareadas que se precipitavam sobre os pelos hirsutos que moram nos escândalos da tez inédita do acaso. Esculturas entalhadas em sândalos cínicos.
Espessuras retorcidas de uma deusa arranharam nossas íris esverdeadas, gotejando aromas do precipício em que nos entregaríamos.
Não era fácil entrever o que se passava. O horizonte a todo instante mudava de sítio, desnorteava qualquer fonte de assimilação.
Mesmo os nossos corpos começaram a detalhar ângulos até então desconhecidos.
Um seio era uma cuia emborcada, o avesso de um quarto minguante, uma semente extraviada após o incêndio no celeiro da memória.
Tu levavas a mão ao seio e me olhavas como se eu jamais houvesse estado ali.
Ao se desfazer o nevoeiro a caixa simplesmente havia se liquefeito.
E a enigmática figura assumia um enxame de formas que se espalhavam ao nosso redor.
Segurava o seio e rogava tua mão para nosso baile maior. A lua que traguei se acendia por toda a casa e dentro de mim, ramalhetes.
Pulsações cobriram nossos sonhos de raízes gozosas e pedaços delicados do corpo que se rompeu.
Na verdade, somos cacos de vidro espalhados em peles de palavras. Uma palavra mais. A palavra basta para nos afogar no sofá ou em nossos braços ferventes.
E não dizíamos nada enquanto as fendas se multiplicavam e me sorrias dentro de um tango que despia a sala de tapetes e móveis.
O que aquela caixa havia doado aos nossos braços era um frêmito que nos desfolhava como fotogramas delineando cada passo da dança.
A cena toda estava nua e os olhos fincados por nossa pele se entranhavam como um jogo de espelhos.
Tu podias me ver no centro de teus gemidos. Eu identificava a umidade das sombras que ias deixando a cada acorde da música.
Minha boca encharcada de sedas como indizível amoreira. Casulos se acolchoavam em nossas línguas-mariposas por dentro da dança incandescente que rastreávamos com pés decifrando o entardecer.
A vida era um espreguiçar delicado no meio de ti, despertando os laços jamais solúveis entre teus dedos melíferos e honestos que me comoviam como uma letra a repetir-se no silêncio deixado por teu beijo.
ENIGMA PROVISÓRIO
a que corta a que abre a que empurra a que quebra e a que deflora
ninguém deu por aquela visita silenciosa pisadura na fruta do tempo
a minha é sempre tua outra que passou tratou de entrar a tua sempre fia
há a que finge sem que alguém a perceba e a mais velha cujo nome só ouvi uma vez
o rasgo foi profundo no vestido bicolor que maquiava o inverno
e a abertura fez sangrar centelhas corrosivas no bico da noite
pé na porta do esquecimento flashes opacos das vozes roucas as dissonantes
o coro das dobradiças tetos deslizantes vapor denunciando o perfil de quem entra
uma delas toma chá de coca a outra sorri ao abrir uma gaveta de fotos
quem esqueceu o que havia indagado não confessa em silêncio dobra seus lenços
depois de lambuzá-los com o batom roxo do desmantelamento e lençóis para os despachos
choque no dedo no momento de quebrar segredos alheios um grito ao trinco amedrontado
o voo atarantado de corvos sobre ideias de quem se estremece estapafúrdia fé no desencontro
a cor escura do beijo atribuído à inocência tão doce quanto a visão que salta de um olho a outro
costura de miragens que vão pousando no centro do olhar de cada uma
cinco fagulhas soletram o desejo com uma letra repetida casarão de sonhos
atordoados pela fresta escancarada como pinça para pétalas ao chão de concreto
manso é o farfalhar das árvores sobre o calafrio das maldições acordadas nas noites derradeiras de junho
que lacrimejam entre peitos descobertos os repetidos lamentos
lamento não estar aqui lamento não saber quem sou lamento por não regressar
que não me possas ver lamento que te doa tanto os cinco degraus confessam
a chaga dos rituais o obscuro pasto de sangue as contas enfeitiçadas da volúpia
o medo enramado pelas dobradiças mais gastas a febre mineral da memória
corta abre empurra quebra deflora os meus sinais espalhados por tua carne
é tudo o que te peço agora que sejas carne de minha carne orgasmo multiplicado
pelas palavras que deslizam no tobogã incandescente dos rosários imantados.
QUASE UM SEGREDO
os olhos correm de um lado para outro
buscando a imagem esquiva um beijo passeia por teu lábio sem descobrir onde estás
havia um silêncio guardado bem aqui
quase ninguém o escutara até que se foi
o oco do silêncio é o mesmo oco da floresta
incendiando o hiato espatifado como cristais nunca recolhidos numa sala de ser
reflexos retorcidos como os da árvore anterior quase aqui
quase em mim quando mal te vejo e já não estás
os metros de enigma deixados para trás
acentuando o pecado que esquecemos de cometer antes que a noite se pusesse a rosnar
os galhos refletidos em tua nudez
quase um segredo recostado nas linhas de minha mão
♦♦♦
Beatriz Bajo (São Paulo, 1980). Poeta, diretora-geral da Rubra Cartoneira Editorial, revisora e tradutora. Autora do livro de poemas “Sobre nossas línguas a carne das palavras” (Patuá, 2017).
Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, editor e tradutor. Dirige a Agulha, Revista de Cultura e a ARC Edições, N Brasil.
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