Desenho de Athena@ Paulo Ferreira da Cunha
O Mito é o nada que é tudo
Fernando Pessoa, Mensagem
1.Um Projeto Cultural
Não haverá certamente melhor nome para uma revista de cultura que o de Athena. Para mais uma revista eletrónica, em que o pensamento e a arte se associam naturalmente, indissoluvelmente, à ciência e à técnica. Assim como Athena simboliza a aliança perfeita das mãos e do espírito[i].
Não é a primeira de seu nome entre nós, mas tem nobre ascendência. Com efeito, saiu pelo menos uma publicação em Portugal com esse título, revista de arte com prestigiadíssima colaboração, e dirigida por Fernando Pessoa e Ruy Vaz. Contudo, lançou escassos cinco números, entre os anos de 1924 e 1925, mas não chegaria a durar um ano[ii]. Hoje (além do mais, que é muito) até o suporte eletrónico parece ser garantia material de muito maior longevidade e, evidentemente, de muito mais vasta difusão. Além disso, esta Athena, como a Athena original, mítica, transcende o escopo da revista de Lisboa.
São incontáveis as utilizações de imagens da deusa em realizações culturais. Só para dar um exemplo: o Vocabulário filosófico de André Lalande, pelo menos numa das edições que possuímos[iii], embora não tenha verbete para Athena, não deixa de ostentar na capa uma fotografia de uma escultura que a representa. Um exemplo entre incontáveis que seria possível colher.
De qualquer forma, a invocação cultural a Athena só pode ser coroada de êxito e cumulada de bênçãos, porque é um resgate da Cultura clássica em tempos de ameaça, sub specie “barbárie civilizada”[iv], mas ainda assim barbárie. Ao remeter-se, logo no título, para a fonte helénica[v], é de água lustral redentora, das regiões matinais da Civilização, que se pretende recobrar forças e contribuir para a urgente renovação, um novo Renascimento, em lugar de retrocessos sombrios e ameaçadores que parecem animar alguns.
2.Em Demanda da Deusa Athena
Athena, a deusa (todos o sabem), é uma entidade de grande relevo no panteão olímpico, que os Romanos viriam a metamorfosear em Minerva, à maneira própria do seu génio assimilador.
No universo sincrético da Cultura (mas não no especializado estudo mitológico), para mais em tempos de crescente transculturalismo como os nossos, de algum modo se fundem e se equivalem as duas divindades. No domínio do comparatismo, Platão assinala uma deusa egípcia, em Sais, Neith, que seria com Athena identificável[vi]…
Padroeira de várias cidades de “Atenas” (e de outras ainda – não se sabendo se deu ela nome às cidades, se vice-versa), é associada imediatamente ao saber (e à sabedoria), às artes e às ciências, e um pouco também à justiça (bastaria o elenco dos seus inúmeros epítetos para abarcar a imensidade das suas funções). Ela é, nos nossos dias, sobretudo um símbolo dessas dimensões da vida e do pensamento. O culto que a ela se presta é o culto laico da diuturna luta pela Civilização e pela Cultura[vii].
Porém, se acaba por ser um arquétipo, não é fácil descer ao pormenor sem entrar no detalhismo anedótico do que poderá ser visto como petite histoire, à falta de análises mais profundas que sondem o mais denso e esotérico simbolismo.
Ninguém melhor que Homero para exprimir a dificuldade em falar de Athena: “É duro, oh deusa, para um homem mortal conhecer-te encontrando-te, mesmo sendo muito sábio, porque tu te ligas a todas as coisas”[viii]. Na verdade, vários autores, sem entrarem em grandes polémicas sobre a deusa, que a isso não se presta, pela relativa escassez de lendas, não deixam de fazer jus à polissemia e multiplicidade de interpretações míticas de que já tinha falado Bachelard[ix].
Com maior ou menor ênfase, posta ora nos aspectos mais altos do espírito, ora nos mais populares do fazer e até do trabalho[x] (mas sem esquecer nunca a pluralidade de funções e atributos da deusa), conflui-se em geral para uma muito alargada competência desta divindade. Na simbologia tal se se traduz no já referido facto de o seu animal ser a coruja, Homero ter assinalado que teria “olhos de mocho”, estar armada de elmo, lança e uma espécie de escudo de um tipo só usado também pelo próprio Zeus, pai dos deuses (a égide, espécie de couraça de pele de cabra), etc..
Segundo contam versões parciais (ou sintéticas) do mito, a deusa teria nascido adulta, vestida e armada da cabeça de Zeus. Em rigor, o mito é mais complexo: não se trata de verdadeira e própria “partenogénese”, mas de “cérebro hospedeiro” do pai dos deuses. Athena estava já concebida por Métis, sua primeira esposa (cujo nome tanto pode significar Prudência, para alguns a rainha das virtudes[xi], ou perfídia: frequentemente a mitologia helénica nos mostra a ambiguidade das coisas, o que é muito enriquecedor, como lição, se for aprendida). Ora Zeus, aconselhado por deuses mais velhos, pré-olímpicos, Urano e Gaia (que profetizaram que um filho de Metis destronaria o pai), acabaria por engolir a deusa grávida. E assim, além de atalhar a possibilidade de uma futura deposição, incorporaria também toda a sabedoria da deusa.
Athena vem assim a nascer não propriamente como criança criada sem mãe (embora haja quem localize um mito antigo em que seria filha apenas de sua mãe), que é a tentação de originalidade de grandes poetas, como Ovídio, e que Montesquieu acabaria por afixar no frontispício do seu De l’Esprit des Lois: prolem sine matre creatam[xii].
Mas todas as peripécias que rodeiam o seu nascimento lhe dão uma aura de autonomia e de domínio do cerebral e do racional. Porém, não se lhe deve dar uma conotação racionalista, antes, como assinala Paul Diel (que infelizmente a não estuda expressamente na sua obra prima de interpretação psicológica dos mitos), ela é símbolo da “inspiração intuitiva”[xiii].
3.Um Mito de Síntese
Nem sempre tem sido posto em relevo que Athena é deusa de conciliação, e de união dos contrários (coincidentia oppositorum), em alguns aspetos. Uma deusa verdadeiramente de todos, na sua Cidade.
O primeiro é a união entre trabalho manual (ela é deusa de uma multidão de artes e ofícios, desde o ferro à olaria, à tecelagem, à construção naval, às que hoje chamaríamos artes plásticas, mas na época era artes como as demais…) e trabalho intelectual. A questão é apenas usar os meios técnicos de acordo com a sabedoria.
Um outro aspeto de relevo é que, sendo guerreira, Athena não é belicista, mas protetora. Si vis pacem para bellum (“se queres a paz, prepara a guerra”) foi lema cunhado nos tempos clássicos (atribuído a Vegécio, Publius Flavius Vegetius Renatus). Seria certamene essa a razão de todos os seus atributos visíveis. E não é por acaso que o Centro Cultural do Exército, em Madrid ostenta um brasão com esse lema, rodeando uma figura de Athena, ostentando o respetivo elmo.
Um episódio, precisamente o do prélio pelo apadrinhamento da cidade que depois se viria a chamar Atenas, revela bem as preferências da deusa, que sendo armada e vitoriosa (e tendo dado ao nascer um grito de guerra temível) acabaria por presentear a cidade nada mais nada menos que com a oliveira da civilização agrícola, já em si promessa de luz e de paz. Ao contrário do seu rival Poseidon, que preferiu dar à Ática um menos apreciado presente: espetando com força sobre-humana no solo o seu tridente, o deus dos mares fez jorrar do solo da acrópole um lago de água do mar. A diferença entre água salgada e a oliveira da paz, do azeite e da luz é significativa.
Athena é verdadeiramente “interdisciplinar” (ou já “pós-disciplinar”, como na teorização epistemológica audaciosa mas exacta de Gonçal Mayos[xiv]). Partilhando a forja com Hefaístos (donde sairia a beleza de Pandora, por exemplo), a guerra com Ares, e até a justiça com o próprio Zeus[xv], não deixa de, apesar do seu ar grave, poder ter também condomínio de alguns atributos com Afrodite[xvi].
Mas possuiria ainda uma especial qualidade, que certamente deriva de sua mãe Metis (e da sua ambivalência entre prudência e perfídia): a astúcia[xvii]. A astúcia pode ser uma sensibilidade intuitiva de guerreiro ou de comerciante para se não deixar enganar, mas certamente será também aquela “colaboração do demónio” (depois dirá “participação demoníaca”) de que falava André Gide nas suas quinta e sexta conferência sobre Dostoievski como sendo indispensável para toda a obra de arte.
Embora o demónio possa ser, naturalmente e apenas, o daimon grego, uma divindade interior que é também força anímica, são estas expressões fortes e com conotações muito negativas para dizer, certamente, (pelo menos assim o queremos interpretar, pro domo) que o Pensamento, as Artes e as Letras não são ingénuo ofício.
Athena parece-nos ser assim a perfeita padroeira de uma revista que olha nos olhos o público com frontalidade, com o olhar segundo da coruja reflexiva (a que, para Hegel[xviii], levanta voo pela noite), e sem falsas ilusões, desde logo da alienação. É precisa sabedoria, ciência, indústria – e também muita astúcia – para fazer Cultura na nossa complexa, arriscada e massiva sociedade da informação.
São Paulo, COPAN, 1.º de maio de 2017
[i] Para retomar, com ligeira adaptação, o título da bela lição de LOPES, Óscar – As Mãos e o Espírito, reimp., Porto, Campo das Letras, 2007 (1.ª ed., 1958).
[ii] GARCEZ, Costa — Atena. Revista de Arte, in “VELBC – Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura”, vol. II, São Paulo / Lisboa, Verbo, 1964, col. 1721.
[iii] LALANDE, André — Vocabulaire technique et critique de la philosophie, 9.ª ed., Paris, Presses Universitaires de France, 1962.
Há uma trad. port. de Fátima Sá Correia, Maria Emília V. de Aguiar, José Eduardo dos S. Torres e Maria Gorete de Sousa, coord. de António Manuel Magalhães, Vocabulário – técnico e crítico – da Filosofia, Porto, Rés, s.d., 2 vols. (esta com capa encadernada, sem a imagem referida).
[iv] OTTONELLO, Pier-Paolo — La Barbarie Civilizzata, Génova, Edizioni dell’Arcipelago, 1993.
[v] WEIL, Simone — La Source Grecque, Paris, Gallimard, 1953, trad. port. de Filipe Jarro, A Fonte Grega, 1.ª reimp., Lisboa, Cotovia, 2014.
[vi] PLATÃO – Timeu, 21 e).
[vii] DEACY, Susan – Athena, Londres, Rotledge, 2008; NEILS, Jennifer (ed.) – Worshipping Athena. Panathenaia & Partenon, Madison, The University of Wisconsin Press, 1996.
[viii] HOMERO – Odisseia, XIII, 312-313.
[ix] BACHELARD, Gaston – Prefácio a Le Symbolisme dans la mythologie grecque, de Paul Diel, Paris, Payot, 1966, trad. port. de Roberto Cacuro e Marcos Martinho dos Santos, O Simbolismo na Mitologia Grega, com Prefácio de Gaston Bachelard, São Paulo, Attar, 1991, p. 9.
[x] Nisso confluem, por exemplo, o nosso antigo manual do Liceu e uma obra de referência mais moderna, aliás traduzida por um prémio Nobel: LAGO, Fins do / DINIZ, Maria José – História. 3.º ano, Pré-História, Antiguidade Oriental e Clássica, s.l., Porto Editora, Emp. Lit. Fluminense, Liv. Arnado, s.d., p. 147; BONNARD, André – La Civilization Grecque, trad. port. de José Saramago, A Civilização Grega, Lisboa, Edições 70, 2007, p. 152 ss..
[xi] LAUAND, Luiz Jean – A arte de decidir: A virtude da Prudentia, in “Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC”, vol. 2, julho – dezembro de 2003, p. 314 ss.. Ed. online: http://www.esdc.com.br/seer/index.php/rbdc/article/view/54/54 (última consulta em 1 de maio de 2017). E ainda PIEPER, Josef — Las Virtudes Fundamentales, 4.ª ed. cast., Madrid, Rialp, 1990.
[xii] MONTESQUIEU — De l‘Esprit des lois, ed. de Victor Goldschmidt, Paris, Garnier-Flammarion, 1979 (ed. orig., Genebra, 1748).
[xiii] DIEL, Paul – Le Symbolisme dans la mythologie grecque, Paris, Payot, 1966, trad. port. de Roberto Cacuro e Marcos Martinho dos Santos, O Simbolismo na Mitologia Grega, cit., p. 42.
[xiv] MAYOS SOLSONA, Gonçal – Empoderamiento y Desarollo Humano. Actuar Local
y pensar Postdisciplinarmente, in Postdisciplinariedad y Desarrollo Humano. Entre
Pensamiento y Política, ed. de Yanko Moyano Díaz / Saulo de Oliveira Pinto Coelho /
Gonçal Mayos Solsona. Barcelona Red, 2014.
[xv] Sobre a Justiça no Pai dos deuses olímpicos, LLOYD-JONES, Hugh — The Justice of Zeus, ed. revista, Berkeley, Los Angeles, London, University of California Press, 1983.
[xvi] DEACY, Susan – Athena, Londres, Rotledge, 2008.
[xvii] Idem, ibidem.
[xviii] HEGEL [Georg Wilhelm Friedrich] — Prefácio do autor a Grundlinien der Philosophie des Rechts, trad. port. de Orlando Vitorino, Princípios da Filosofia do Direito, 2.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1976.
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Paulo Ferreira da Cunha – Professor Catedrático e Director do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (em licença a seu pedido para trabalho internacional). Professor de Direito Internacional na graduação e de Teoria do Direito na Sociedade da informação no Programa de Mestrado em Direito da Sociedade da Informação da FMU. Bols. da Funadesp na Fadisp. Do Comité ad hoc para a Corte Constitucional Internacional. Licenciado, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Doutor pela Universidade Paris II, Agregado pela Universidade do Minho, Pós-Doutor pela Univ. de São Paulo, autor de mais de 100 livros, um dos quais Prémio Jabuti.