Imagem @ José Boldt
Servia para dormir, para comer, para conviver, para amar, para sonhar, mas havia nela um monstro que tinha um olho esquisito no meio da testa. Este ser sobrenatural estava destinado a habitar a casa, à qual se apoderara por configuração de terrenos. É que ele não queria ali ninguém e o edifício branco impunha-se na terra que chamava sua, com as suas formas rectilíneas, com os seus labirintos interiores, contra a sua vontade de que tudo ali fosse apenas terra para cultivo de não se sabe o quê. Ele podia ouvir os inquilinos a tocar guitarra, viola baixo ou cajon, podia vê-los a pintar, a ouvir música, a rir à gargalhada com os amigos, durante um churrasco no jardim, mas não podia rir-se com eles, nem alimentar-se dos figos sumarentos que se ofereciam à colheita, amontoados na árvore malfadada, em Setembro. Ele afogava, aflito e confuso, as suas mágoas nas cervejas que eram emborcadas durante as madrugadas de insónias ou de festas, e nas substâncias ilícitas, consumidas, por entre a vegetação recém-plantada ou sob um arbusto de flores vermelhas. A criatura ia absorvendo as energias dos moradores com uma avidez malfeitora, como se nunca tivesse amado ninguém e tão pouco a si mesmo. Não gostava de harmonia e calma sob a lua numa noite de Verão, nem de um beijo à chuva, dado sob a pérgola repleta de trepadeiras roxas no Inverno.
Um a um, foram todos desaparecendo daquele espaço, criado de raiz, como ramos que se tivessem encostado às margens de um rio escuro e cheio de lama. A sinistra figura – vira-a uma senhora vidente – era tacanha e mesquinha. Cheia de inveja, roía-se no seu íntimo por constatar a existência de gente, dentro dos limites da propriedade que só para si reclamara. A posse toldara-o tanto, que dominava a vida de todos, na sua cegueira de malquerer, para que o seu desejo mais infame – o da destruição – vingasse. Então, quando os donos queriam gravar uma canção no estúdio, desligava ligações, orquestrava ruídos, incutia zumbidos nos ouvidos. Sempre que alguém conseguia ser feliz, ele zangava-se, e logo fazia com que um conflito grave sucedesse, ou uma discussão, ou um evento inesperadamente triste. Ele permaneceria ali, segundo o prognóstico da vidente, alimentando-se da esperança que tinha e que era a de que todos dali fugissem, sem pressa de voltar, sem vontade de regressar ao assombrado modo, no qual as relações dos moradores, sem excepção, descambavam. [que quereis dentro do meu sono negro de vigília aflita?] A voz sugava-nos com a cor de um pântano. Tecia enigmas dentro das nossas vozes, sussurrava desassossegos com odor a poeira e podridão. Secava ao sol um lençol branco e ondulava pela noite. [Hão-de sair os fantasmas]. Era a voz de uma noite extinta e ancestral que gritava dentro de nós e que queria sobressaltar as madrugadas com o seu assobio de terror. Não sabíamos onde pousar as cabeças se as almofadas se contorciam de insónias no derrame das visões. Acordávamos cansados, com dores nas nucas, nas costas. Acordávamos com o retumbar de passos nas sombras espessas que formavam os pesadelos. A criatura tomava-nos por bonecos facilmente manipuláveis, de pinturas sorridentes e corpos afunilados em trajes soltos e coloridos. Éramos os fantoches dos seus jogos que orquestravam a sinfonia dos seus dias de vingança. [- Vês ali a cadeira pintada com um olho no meio do assento?]. Quando descíamos as escadas, ele descia atrás de nós com uma espécie de sonambulismo invisível. Encarregava-se de vigiar felicidades. Nós estávamos a tecer a brancura do silêncio, mas não tínhamos noção de que havia ventos ferozes e contrários à emancipação de um sentido puro. [ – que pureza podia existir nas nossas vidas manchadas?].
Degustei um vinho oferecido. Ansiava a paz em concreto. Já não pensava no amor. Não tinha as mãos dadas contigo. Tínhamos desistido de contracenar neste cenário. Cada um imaginava o seu lugar idílico. Eu baixava a cabeça sobre alguns poemas e remexia as minhas entranhas com desabafos impróprios para uma escrita sóbria. Tu tocavas canções sem propósito nenhum, senão ouvir-te a ti mesmo, dentro do teu continuado alheamento. Estávamos atormentados e sem um único conselheiro terapêutico. A terapia era a distância. Urdíamos distâncias como quem afasta das suas raízes mais fundas toupeiras cegas. Porque era importante o desapego, o arranque dessas coisas profanas que irrompiam por nós como campos infecundos, sem uma única flor, nem sequer um cardo. [ – o que tinha ficado nos nossos dedos magoados?]. Os nossos beijos sabiam a mágoa. Tínhamos tanta tristeza nos olhos, que nos confundiam com mendigos e loucos. Deambulávamos por vertigens de incessante abismo e devagar íamos descendo uma escada em caracol ao som de uma contagem decrescente. [ – que noite transtornada querias dentro dos meus olhos?]. Não pude entender-te. A criatura circundava-nos sem que a figueira se mexesse. O desassossego dos três grossos troncos eram o mau prenúncio das folhas, que rodopiavam em dias ventosos, que escancaravam janelas. Deixámo-nos ir no temporal. Tu pedias que voltasse, depois de ter decidido cortar o caminho atormentado com uma renúncia. Davas-me a tua palavra de amor, tão despida, que quase cria em vê-la a inundar-me como a luz que habitualmente entrava em casa nos dias claros. [ – pode uma luz ser a constituição de uma existência?]. Segurava-me à minha barra de teimosia, ensimesmada numa crença: havia de me libertar e libertar-nos a todos. Havia de quebrar o encantamento. Havia de erguer as minhas mãos ao alto para dizer uma oração só minha, que ainda não tivesse sido dita ou escrita. Havia de inventar dias novos, sem o abandono, sem o descontentamento. Havia de prescrever a minha presença naquela casa que nos guiava para o abismo. [ – pode um abismo dissolver a esperança?].
Comi um pedaço de pão, e sorvi a última gota do vinho. Este corpo, este sangue há-de ser meu, e de quem a ele por bem vier.
Atordoou-me a singularidade do momento, como quem não espera surpreender-se com nenhuma coisa rara. Um pedaço é um pedaço. Que coisa estranha ser pedaço…que coisa estranha…areias, folhas, ramos, ventres, sementes…e todos somos pedaços de tudo e dentro de tudo e acima e abaixo de tudo. E o tudo é o todo que nunca compreendemos.
A casa sonhava consigo mesma. Desenhava-se por arquitecturas fora, transgredia a plataforma dos objectos. Pairava no ar e assomava aos nossos olhos com a forma de círculo que abandonara logo à nascença.
Dois meninos, na fotografia, sorriam na sua inocência. Era ali Verão e estavam felizes como flores acabadas de despontar. A casa movia-se num redemoinho lento, acima do tanque seco. Começava uma história nova de cada vez que pousava e se ouvia cantar o melro que nos visitava. Os pardais seguravam pedaços de pão nos ramos do limoeiro que chorava. Chorava porque estava no seu canto acostumado, mas sem frutos. Os meninos continuavam a sorrir na fotografia. O melro esventrava o último limão, violentamente, e de súbito se erguia num voo rápido para lá do jardim. A confusão tomava conta das imagens doces. A confusão ressequia as sebes e o marmeleiro derrubado e melancólico. A fotografia tinha caído em pedaços e todo o caos se tinha apoderado da estabilidade dos pardais. O melro debatia-se com uma minhoca no bico. O cão ladrava incessantemente e parecia querer salvar-nos de um naufrágio que se confundia com as sirenes de uma ambulância que passava em sobressalto. Tínhamos medo e eu decidi olhá-lo de frente com um dos pardais, e com a fotografia que queria salvar dos escombros. A ruina estava no colo, nos nossos braços cansados, na tórrida desolação e no cansaço que nos descamava a pele. Já não tínhamos como dantes a ginástica dos gatos. Eles acabavam por morrer na estrada, ou envenenados. Os carros eram os assassinos mais próximos e o maior deles era feroz como um comboio de alta velocidade. O limite. Uma distância sem fronteiras. A incerteza dos dias futuros. A nostalgia de uma casa sem habitantes.
[ – pode uma distância ser a salvação dos mortos?]
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Marília Miranda Lopes é autora de obra repartida pela poesia e pelo teatro. Escreveu, entre outros textos publicados em revistas e antologias portuguesas e estrangeiras, “Geometria” (Poesia, 1998), “Framboesas” (Teatro, 1996), “Templo” (Colecção Tellus, nº10, 2003), “Duendouro – Era uma vez um rio…” (Afrontamento, 2007), “Castas” (Q de Vian Cadernos, Galiza, 2012) e “Victorianas” (Labirinto de Letras, 2015). É professora de Português do Ensino Secundário.
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