Haverá entre a Poesia e a Ciência diálogos possíveis?
I
POIESIS – substantivo, género feminino – traduz acção de fazer e é concebida em quatro tempos distintos, a saber:
- criação (como oposição à praxis);
- acção de compor poesia (reportando-nos à inteligência);
- arte da poesia;
- obra poética.
POIEMA – substantivo, género neutro – “o que se faz” – isto é
- obra;
- “produção” de poesia, de poema, de versos isolados;
- ficção;
- acção de fazer a obra.
II
“Ciência e Poesia. Haverá entre a Poesia e a Ciência diálogos possíveis?” – questiono primeiro, para reafirmar depois, que as diversas acepções de POEMA nem sempre são muito precisas, e, em muitos casos, confundem-se com o conceito de POESIA, muito embora e, de um modo geral, POEMA seja entendido como uma das expressões possíveis da POESIA.
Consideremos, então, algumas definições, normalmente, aceites:
- obra literária em verso;
- obra literária em prosa, mas de estilo poético;
- arte de escrever em versos;
- maneira de versejar própria de um autor ou de um determinado estilo;
- o que desperta o sentimento estético do “belo”;
- actividade linguística que procura criar com a linguagem um estado psíquico de emoções estéticas.
Neste último caso, a língua transcende a função de meio de comunicação, para tornar-se, ela mesma, objecto de comunicação, servindo de matéria-prima para a obra de arte literária.
Destarte, a aplicação artística de uma língua torna-se espontânea, e, encontra-se em todos os tipos de sociedades, mesmo as mais rudimentares, quer na sua vida material, quer espiritual.
Como expressão linguística, o poema tende a organizar-se em frases ritmadas, com base na entonação, no número de sílabas, na distribuição mais ou menos regular, ou até mesmo irregular, das sílabas acentuadas, tornando-se, assim, numa série de versos.
Para o poeta e diplomata mexicano Octavio Paz
– “o poema” é uma palavra semanticamente instável, que se vincula, pela etimologia e por natureza, à poesia, e, o poema é uma composição literária de índole poética, isto é, “um organismo verbal que contém, suscita ou segrega poesia” (sic).
A conexão ortodoxa entre poema e poesia implica, ainda para o referido poeta, um juízo de valor, ainda que de primeiro grau, porque todo o poema encerra poesia, e vice-versa, e, assim, sistematicamente, a poesia identifica-se com o poema.
A correlação, no entanto, observa-se, apenas, como tendência histórica, já que “existem poemas sem poesia”, e a poesia pode surgir (e porque não?) no âmbito da estrutura formal de um romance ou de um conto, de modo que muitos Autores consideram que um poema pode ser estruturado não apenas em versos, mas também em prosa.
O mesmo Octavio Paz, numa forma assaz poética, acresce: “[…] o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, colectiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tenha nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana!”
Então, que conexão existe entre poesia e poema?
Será que se confundem?
Aristóteles dizia que “nada há de comum, excepto a métrica, entre Homero e Empédocles e por isso, chama-se poeta ao primeiro e filósofo ao segundo”.
E, de facto, assim é.
Nem todo o poema contém poesia, do mesmo modo que há poesia sem poemas. Mas é no poema que a poesia se recolhe e/ou se revela, plena.
É lícito perguntar ao poema pelo ser da poesia, porque o poema não é apenas uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a Poesia e o Ser.
Por excelência, o poema é um organismo verbal que contém, suscita e emite poesia.
Logo, forma e substância são a mesma coisa.
Algumas teorias da literatura, mais redutoras, pretendem reduzir a géneros, a vertiginosa pluralidade de um poema. No entanto, esta pretensão, em nosso entender, padece de uma dupla insuficiência:
1º – Porque reduz a poesia a umas tantas formas – épicas, líricas, dramáticas [então, e, como muito bem pergunta Octavio Paz – que continuará a acompanhar-nos neste ensaio – o que faremos com os romances, os poemas em prosa ou, por exemplo, Os Cantos de Maldoror (de Lautréamont) ou Nadja (de Andre Breton)?]
2º – Todas as actividades verbais, para não abandonar o âmbito da linguagem, são susceptíveis de mudar de signo e transformar-se em poemas, pelo que as classificações mais tradicionais e mais fechadas podem tornar-se demasiado redutoras.
Cada poema é um ser único, especial e irrepetível.
A única característica que os poemas têm em comum consiste em serem obras humanas, como o quadro de um Artista Plástico ou a cadeira de um Marceneiro.
São, no entanto, obras diferentes, porque entre os poemas não há uma relação de causa e efeito, como se verifica com os instrumentos de trabalho.
Eis-nos chegadas ao cerne do presente ensaio. Ao seu título: “Diálogos com a Ciência – Haverá entre a Poesia e a Ciência diálogos possíveis?”
Como realidades distintas, todavia, comunicáveis, claro que sim. Ambas pressupõem o outro. Quem lê.
Todavia, técnica e criação, utensílio e poema são realidades distintas.
Cada poema é um objecto único, criado por uma “técnica” que morre no instante da criação.
Além disso, aquilo que se pode chamar “técnica poética” não é transmissível, porque não é feita de receitas ou de fórmulas, mas sim de invenções e subtis jogos com a linguagem que servem, essencialmente ou tão só, o Poeta.
Na construção formal de um poema, exploram-se as possibilidades da linguagem em geral e de uma Língua, em particular:
- no som;
- nas palavras;
- na associação de ideias;
- na construção de versos – utilizando-se o ritmo, a harmonia, a rima, a assonância, a aliteração, as figuras de estilo ou as figuras de sintaxe
Para Jean Cohen, por exemplo, um poema deve ser breve, limitado e obediente a certos requisitos formais, visto traduzir-se numa “técnica linguística de produção de um tipo de consciência que o espectáculo do mundo não produz ordinariamente”.
Por outro lado, Antonio Quilis define o poema “como um contexto linguístico no qual a linguagem, tomada no seu conjunto de significante e significado, alcança uma nova dimensão formal, que, segundo a vontade do poeta, realiza-se potenciando os valores da linguagem através do ritmo”.
O poema é feito de palavras, seres equívocos que connosco brincam e que, sendo cor e som, também são significado, do mesmo modo que um quadro também será um “poema”, se for algo mais que uma mera linguagem pictórica.
Para além de ser palavra, o poema constitui-se na História, sem deixar de transcender a própria História, na medida em que todo o poema se manifesta num determinado tempo, numa certa realidade, num preciso contexto social.
Para alguns, o poema é a experiência do abandono. Para outros, do rigor e da alteridade, porque cada um procura algo no poema, algo que, no entanto e sem o saber, traz dentro de si.
O poema é de facto, uma possibilidade aberta a todos, independentemente do Ser, mas que só toma corpo, quando encontra um Leitor ou um Ouvinte. Há, assim, uma característica comum a todos os poemas, sem a qual nunca haverá POESIA – a comunicação.
O poema é, ainda, mediação, porque graças a ele, o tempo original – “pai dos tempos” – intervêm no momento em que se alimenta a si próprio e transmuta o homem, e, assim, a leitura de um poema mostra uma enorme similitude com a criação poética, como nos afirma a poeta brasileira, Sílvia Regina Pinto, “O poeta cria imagens, poemas. o poema faz do leitor imagem, poesia, pois é via de acesso ao tempo puro, imersão nas águas originais da existência. A poesia não é nada senão tempo, impulso rítmico perpetuamente criador”
Vejamos como exemplo, as duas primeiras estrofes do ‘metapoema’ “Motivo”, de Cecília Meireles:
Eu canto porque o instante existe
E a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.
Irmão das coisas fugidia,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
No vento.
Há, no entanto que levar em linha de conta que o tempo do poema não tem nada a ver com o tempo cronológico.
Comumente, diz-se – “o que passou, passou”.
Para o poeta, porém, o que passou volta a materializar-se.
Senão vejamos –
“o poeta – disse o centauro Quíron a Fausto – não está amarrado pelo tempo”.
e este responde: “Aquiles encontrou Helena fora do tempo”.
“Fora do tempo? Melhor, no tempo original”.
Destarte o poema, inicialmente, um arquétipo, converte-se quando alguém repete os seus versos, cuja função é recriar o tempo.
Vejamos um pequeno exemplo poético dessa questão temporal, destacado do Cancioneiro, de Fernando Pessoa:
Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
nessa minha infância
que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
fui-o outrora agora.
Deste modo, o poema é uma totalidade encerrada dentro de si mesma, cuja unidade não é o sentido ou a direcção significativa, mas sim o ritmo, havido não apenas como medida, mas, fundamentalmente, como visão do mundo, e, assim, Moral, Política, Técnica, Filosofia, enfim, tudo o que chamamos Ciência tem as suas raízes no ritmo…
Recorremos, mais uma vez, ao Cancioneiro de Fernando Pessoa:
No piano anónimo da praia
tocam nenhuma melodia
De cujo ritmo por fim saia
todo o sentido deste dia.
Partindo de tais pressupostos e à laia de conclusão, não há a mais pequena sombra de dúvida que a Ciência e a Poesia, se bem que pertencentes à mesma busca imaginativa do Homem, se encontram ligadas a domínios diferentes de conhecimento e de valor.
O poema cresce da intuição criativa, da experiência humana singular e do conhecimento do Poeta.
A Ciência, por seu lado, gira em torno do fazer concreto, da construção de imagens comuns, da experiência compartilhada e da edificação do conhecimento colectivo sobre o mundo circundante. Tem como vínculo, ao contrário do poema, representar o comportamento material. Mais do que a leitura poética, tem a capacidade de permitir a previsão e a transformação directa do entorno material.
Mas – em tudo há sempre um MAS – as aproximações entre a Ciência e a Poesia, se vistas dentro do mesmo sentimento do mundo, revelam-se riquíssimas, porque a criatividade e a imaginação têm em comum o “húmus” com que se nutrem.
Além disso, as incertezas de uma realidade complexa que podem transformar-se em versos, também podem ser representadas por formas matemáticas.
Nos tempos actuais, em que a Ciência e a Tecnologia impregnam a nossa Cultura e o nosso quotidiano, o poema pode parecer um anacronismo, do mesmo modo que as muitas pequenas verdades científicas constituem uma abordagem incompleta e limitada do mundo.
Há, todavia, um aspecto, no que concerne ainda ao poema que gostaria de destacar.
Respeita à métrica e ao ritmo.
Não são a mesma coisa. O ritmo é inseparável da frase – não é composto só de palavras soltas, acentos e pausas, de imagem e sentido – e apresenta-se como uma unidade indivisível e compacta que constitui o verso.
A métrica, pelo contrário, é uma medida abstracta e independente da imagem.
Esta distinção é assaz pertinente, porque inibe chamar poemas a um grande número de obras que, por pura inércia, ainda constam como tais nos Manuais de Literatura, ao contrário de outras, como Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, ou El Jardín de los Senderos que se bifurcam, de Jorge Luís Borges, para só referir estas duas, que deveriam ser classificadas como poemas, porque nelas a prosa nega-se a si mesma e as frases não se sucedem obedecendo a uma ordem conceptual ou narrativa, mas são, tão só, presididas pelas leis da imagem e do ritmo.
Como curiosidade quase a finalizar, eis dois pensamentos de Friedrich Schlegel:
Há tanta poesia, e, no entanto, nada é mais raro que um poema. E isto inclui a enorme quantidade de esboços poéticos, estudos, fragmentos, tendências, ruínas e materiais.
E ,assim como uma criança é na verdade alguém que se tornará um homem, um poema é apenas um produto da natureza que se tornará obra de arte.
E agora sim, a terminar este meu ensaio, uma provocação, propositadamente, lançada a todos os leitores de Athena, e, inserida no dicionário de Joseph Shipley:
– qualquer composição em verso – e nenhuma que não o seja – é sempre definida, seja ela boa ou má, poema, por todos os que não possuem outra forma de a classificar.
Bibliografia Consultada:
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia, 1983;
COHEN, Jean. Structure du langage poétique: 1966;
CUNHA, Celso. Gramática do Português Contemporâneo, 3ª ed., 1972;
MATTOSO CÂMARA Jr., Joaquim. Dicionário de Linguística e Gramática, 11ª ed., 1984;
MEIRELES, Cecília. Obra Poética, 1958;
PAZ, Octávio. O Arco e a Lira, 1982;
PAZ, Octávio. Signos em Rotação, 2ª ed., 1976;
PESSOA, Fernando. Obra Poética, 1983;
QUILIS, António. Métrica Espanhola, Barcelona :2ª ed. corrigida y aumentada, 1985;
SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, tradução de Victor-Pierre Stirnimann, 1994;
SHIPLEY, Joseph. Dictionary of World Literature, New Jersey: Littleford, Adams & Co.
Nota: Texto lido em Fevereiro de 2010, num Ciclo de Conferências intitulado “Diálogos com a Ciência”, na Reitoria da Universidade do Porto.
Imagem destaque: Lourdes Ximenes
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