DA ADOLESCÊNCIA E DA JUVENTUDE – EDITORIAL POR ARTUR MANSO

DA ADOLESCÊNCIA E DA JUVENTUDE. EQUIVOCOS E OMISSÕES

Recentemente ocorreram quatro episódios sobre a vida dos adolescentes a iniciar a juventude, que alarmaram os frequentadores das redes sociais e consumidores de séries, o novo entretenimento de quase todos. Falo de Adolescence (2025), Adolescência em português, dos criadores Jack Thorne e  Stephen Graham, e realização de Philip Barantini. O enredo gira em torno de Jamie Miller (Owen Cooper), um estudante inglês de 13 anos que é preso por ter assassinado uma colega da escola. A trama, só por si, não traz nada de novo porque jovens assassinos de seres humanos da mesma idade ou de idades diferentes, são constantes ao longo da história da humanidade: no passado, no presente e no agora. Nos primórdios da internet tal como a conhecemos, e ainda longe das redes socias, mesmo que em contexto diverso, já tinha sido adaptado ao cinema (1990) o romance ficcional de William Golding, O deus das moscas (1954), onde é descrito, o inaudito grau de crueldade entre os jovens em situação limite. Entre outros exercícios cinéfilos, veja-se também o filme de Hector Babenco, Pixote, a lei do mais fraco (1980) onde se pode conferir todo o tipo de violência dos mais jovens, mas essencialmente, um quotidiano dentro dos centros educativos juvenis onde a violência física e verbal entre todos, as crianças e jovens que deveriam ser cuidadas, e os cuidadores descuidados, onde apenas vigora a lei do mais forte, no confronto constante físico e verbal, com mortes à mistura, de uns e outros: os que devem ser educados e aqueles que deveriam educar. Estranhamente este ambiente que era tolerado nos centros de reinserção juvenil, migrou, como se observa na referida série, para o ensino universal e obrigatório, sendo agora quase normal em qualquer escola, de qualquer ciclo, em qualquer lugar. Portanto, a nova realidade sob o signo da internet e redes sociais, e os grupos que por aí pululam para levar os jovens instáveis a abraçar ideários extremistas e anti humanos é só mais um passo na concreção da maldade inerente à comunidade humana. Estes movimentos seguem na linha de outros igualmente perversos e violentos ligados a organizações sociais e religiosas de culturas ocidentais e não ocidentais, que também foram bem sucedidos no recrutamento de fieis às suas causas sem o recurso ao ciberespaço. Para nos situarmos, convém, portanto, referir que a crise da sociedade e da escola que a integra já não é de agora, apenas as circunstâncias mudaram, nada mais. O que se segue é a posição sobre o tema de quem há mais de 50 anos se dedica a aprender e a ensinar.

O que há, de novo, na adolescência e na juventude num mundo global onde a violência está presente no quotidiano de cada um, nas notícias, nos écrans, na família, no bairro e agora na internet com expoente máximo nas redes sociais? A que se deve tanta histeria acerca dos impulsos mais básicos dos seres humanos? Precisou o mundo ocidental de ver uma infeliz trivialidade, que sendo um comportamento limite, se repete em todos os tempos e lugares, para questionar a evolução tecnológica e o pouco sentido que se encontra nas comunidades escolares? Talvez sim, porque se estes comportamentos não são novos, o facto de agora, quando ocorrem, envolverem adolescentes e jovens em idade escolar exageradamente obrigatória até aos 18 anos ou aí perto, é recente.

A ser assim, convém esclarecer alguns equívocos que se prendem com os padrões ocidentais de educação e do conceito que se passou a fazer da adolescência e juventude que nunca foram bem entendidos e agora encontram-se sobrevalorizados. As crianças, os jovens e os adultos são, por natureza, egoístas, interesseiros e egocêntricos. A diferença está que na situação de adultos, cada ser humano pensa naquilo que diz e faz, antecipando as consequências, enquanto as crianças e os jovens agem emotivamente, sem se preocuparem com o desfecho dos seus atos que em idades mais precoces, nem sequer estão em condições de avaliar. Era bom que as crianças fossem os seres puros e simples tal como são apresentadas desde os textos bíblicos “deixai vir a mim as criancinhas porque delas é o reino dos céus” (Mateus, 19, 14) ou a criança como protótipo do bom selvagem que Rousseau (1712-1778) elogia. No primeiro caso Novalis esclarece que a criança dos Evangelhos não é a criança mimada dos tempos modernos, os pequenos tiranos, mas que aí se apresenta o espírito indistinto da infância. No segundo caso, Rousseau valorizando as caraterísticas próprias de infância, que não são as de um adulto em potência, também adverte: “Toda a maldade procede da fraqueza; a criança, porque fraca, é má; dai-lhe forças, torná-la-eis boa”. Por sua vez, Jean Cocteau na ficção As crianças terríveis (1929) começa por falar dos “instintos tenebrosos da infância. Instintos animais, vegetais, cujo exercício é difícil de surpreender, porque a memória não os conserva mais que a recordação de certas dores e porque as crianças se calam quando os adultos se aproximam. Calam-se e retomam ares dum outro mundo. Esses grandes comediantes sabem eriçar-se, de repente, de picos como um bicho ou armar-se de humilde doçura como uma planta, sem nunca divulgarem os ritos obscuros da sua religião. Sabemos apenas que ela exige artimanhas, vítimas, julgamentos sumários, terrores, suplícios, sacrifícios humanos.”

Compete, portanto, à sociedade e nela à escola atenuar a maldade das crianças educando-as livremente para a partilha, o respeito, a autonomia responsável, o acolhimento do diferente. Se as sociedades continuarem a forçar a educação escolar das crianças nos moldes pré definidos e facciosos atuais, o cenário descrito na referida série só irá piorar porque a criança sentir-se-á cada vez mais fraca, será mais maliciosa, porque a sociedade e a escola não a ajudam nem a estimulam no caminho da bondade, da compreensão e da partilha que precisa de trilhar. Este poderá ser o melhor dos mundos possíveis como sustentava Leibniz (1646-1716) e parodiava ou contrapunha o enciclopedista Voltaire (1694-1778) no escrito Cândido ou do otimismo (1758), com o terramoto de Lisboa de 1 de novembro de 1755 à mistura, mas não é, nunca foi, nem será, o mundo ideal, seja porque for. Vejam-se as oportunas e contundentes considerações que o poeta e crítico Charles Baudelaire (1821-1867) teceu ao estado de natureza, onde, entendia só haver abusos e crimes da pior espécie. Fora do mundo construído pela humanidade baseado em valores, normas, regras morais e respeito de uns pelos outros, reina apenas a barbaridade, o terror e a morte, argumentário suficientemente exposto em A invenção da modernidade (Relógio D’Água, 2006). Com o mesmo sentido, mas com uma profundidade mais próxima da essência da poesia, Guerra Junqueiro no volume póstumo Ensaios espirituais (2025), refere: “Só a dor infinita produz o amor absoluto […]. O perfeito vive do imperfeito, como a chama vive do combustível. O mal é a condição do bem, o erro a condição da verdade, o crime a condição da virtude”.

A civilização e a cultura são o resultado de atos violentos ou da limitação da violência no agregado social, de uma consideração pessimista da condição humana, porque mesmo no registo mais benigno de Rousseau e do Evangelho cristão, a falta está sempre presente. Terão sido de Jesus as seguintes palavras: “Não pensem que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois eu vim para fazer que o homem fique contra seu pai, a filha contra sua mãe, a nora contra sua sogra; os inimigos do homem serão os da sua própria família”, Mateus 10, 34-36. Sei que a passagem continua com um referente teológico, mas isso não apaga estas primeiras linhas que devem ser lidas e meditadas em contexto social e escolar laico porque efetivamente traduzem as características básicas da organização social. Séculos antes, Hesíodo no Mito das Cinco Idades já referia que a quinta Idade, aquela que era a sua e continua a ser a nossa, a raça de ferro, era uma raça de homens que têm “as fontes grisalhas. O pai não será igual aos filhos. Nem estes a ele. Não haverá amor entre irmãos, como era antigamente. Aos pais logo que envelheçam eles os desonrarão, insultá-los-ão com palavras duras. Honrarão antes o criminoso e o insolente. A justiça será a violência e a vergonha não existirá” (cf. Hesíodo, Trabalhos e dias, 109-200). Desde aí até à realidade atual, onde nas palavras de Jorge Amado, as crianças aprendem no ventre materno onde “se fazem psicanalisar para escolher cada qual o complexo preferido, a angústia, a solidão, a violência”, a condição humana, na sua essência, tem sido uma perda contínua e acentuada, sem naturalmente estar em causa o reconhecimento efetivo dos enormes progressos no mundo ocidental no reconhecimento de uma igualdade social efetiva: das crianças, das mulheres, das raças, das minorias de qualquer proveniência.

Mais perto de nós, olhemos os desenhos animados, momentos lúdicos da educação dos mais novos no ideário de Walt Disney (1901-1966) que promove os contos infantis de todas as tradições. E o que temos aí? Fábulas em torno do bem e do mal passadas às crianças e aos jovens onde impera a violência e o triunfo sobre a mesma, exponenciadas pelas mais recentes sagas dos super heróis dirigidas ao universo juvenil: Super homem, Batman, Mulher maravilha, Homem aranha, Capitão américa, Thor, Volverine… Há de facto por parte das sociedades e das culturas a perceção de que o processo natural da vida é violento, competindo a cada um relativizá-lo e empenhar-se efetivamente para que o bem, a verdade e a paz triunfem, mesmo que a espaços. Tal desiderato não é fácil porque até os hinos nacionais de praticamente todos os países são bélicos, apelos constantes à luta de uns contra os outros, do duro triunfo de cada povo sobre os seus adversários. Nenhum é de inclusão, todos são de fragmentação e se mais não houvesse, num mundo perfeito, não há barreiras entre uns e outros porque no princípio o mundo era uno, habitado pela mesma Humanidade.

E se os gregos antigos já se queixavam que o mundo não tinha salvação porque os indivíduos em idades jovens apenas diziam disparates e agiam despropositadamente, referindo os educadores que cada criança e jovem devia ser tratado como se fosse um pau torto, tendo os mais velhos, com a educação prestada, que os endireitar, a que os modernos acrescentaram, veja-se por exemplo John Locke (1632-1704), a imagem de crianças e jovens como uma espécie de tábua em branco onde os ensinamentos do dia a dia devem ser fixados: ciência e conhecimento, normas e regras de vida, do fazer e do agir. A violência gratuita entre os mais novos sempre foi uma realidade, mesmo a verbal e a de género. Classificar uns e outros e umas e outras de feios e feias, cromos e cromas, anões e escadotes, esqueléticos e anafados, narigudos, orelhudos, etc, infelizmente foi e é uma prática social tolerável. A diferença agora é que as designações locais passaram a globais, o que demorava tempo a saber-se e muitas vezes só quando estava resolvido se tonava público, é, agora, pré anunciado para todos e em todo o mundo sem qualquer pudor e sentido de responsabilidade. A juventude sabe que as consequências pelos atos que anunciam e de facto praticam, serão nulas ou quase: os direitos da infância e da juventude atenuam a quase totalidade das transgressões. Sempre foi consensual que a infância e a juventude são fases complicadas da vida, alheadas, ainda, de um saber, de uma experiência e de uma vivência, que permita distinguir com clareza o bem e o mal. E hoje como ninguém parece distingui-lo, desde os pais, aos professores, passando pelos políticos que nos governam e aqueles que dirigem as igrejas, a situação não melhora, antes pelo contrário: passamos todos a habitar na era dos coitadinhos!

Os jovens hoje passam muito tempo ou quase todo o tempo isolados? Isso não é verdade, porque o convívio dos jovens com os mais velhos sempre foi reduzido. Uns e outros sempre se separaram entre eles, os mais novos, na sua solidão, nos quartos ou outros aposentos, ou em qualquer lado com quem quer que fosse mais próximo das suas idades. E estavam muito mais horas isolados numa espécie de autogestão, porque a escola não era obrigatória e a que havia, por norma, só ocupava uma parte do dia: ou a manhã, ou a tarde. Sim: não tinham computadores nem smartphones ligados a todo o momento a tudo e a todos. Mas esta nova realidade até proporcionou muito mais tempo de convívio e presença de uns com os outros do que nos tempos idos, mesmo que agora haja a particularidade de estarem sentados na mesma sala, na mesma mesa, no mesmo restaurante, todos os membros de uma família, que escolhem entreter-se na proximidade ausente uns dos outros, porque todos permanecem em silêncio a olhar o ecrã que têm à frente: o pai não sabe o que a mãe está a ver, esta não imagina o que o pai está a escutar e os filhos, em atitude mimética veem e ouvem o que querem e lhes apetece, todos eles de headphones nos ouvidos.

Ora se a escola pretende moldar as crianças e os jovens a um certo estilo de vida e a uma determinada interpretação da realidade, como pode a sociedade, as famílias e as pessoas permitir uma internet negra ao serviço das crianças e jovens? São os pais que devem vigiar as crianças? Em parte, sim, em parte, não. E como o podem fazer quando as crianças crescem sem compreender bem a quem pertencem?: se ao pai, se à mãe alternadamente; se contra o pai ou contra a mãe na maior parte dos dias; se como seres em crescimento a que apenas se provê o conforto mínimo e as necessidades básicas? Se seres vagantes entre uns e outros, seres em confusão entre laços de toda a espécie: daqueles que por natureza são os seus; dos que apenas lhe pertencem por afinidade; dos que têm que partilhar sem desejar ou querer. E nesta confusão, vem ainda o Estado decretar no espírito da lei o superior interesse da criança, que devia apenas consistir no bom senso e na obrigação estrita de cada criança ser cuidada e protegida por todos: família, sociedade, Estado. O resto é entretenimento porque se sabe, recorrendo aos dados das ciências, que até uma certa idade a criança toma as decisões de forma egoísta e emocional, sem perceber nem antes nem depois de as tomar, as reais consequências dos seus atos. Este período acontece até à designada, na terminologia antiga, Idade da Razão, que é a idade em que cada membro da espécie humana, de forma livre, consciente e racional está em condições de avaliar as consequências dos seus atos, distinguir o bem e o mal, e assumir a responsabilidade pela sua conduta, qualquer que ela seja. A idade da razão, durante séculos, era apontada próximo dos 7 anos.

Os tempos mudaram, é certo. Mas os seres humanos continuam a nascer e a desenvolver se exatamente da mesma maneira. Na generalidade, nascem ou com um corpo biológico e fisiológico masculino ou feminino que desenvolvem ao longo do tempo. Sob o signo da cultura woke que se tem tornado quase lei de Estado, o que fazem as sociedades e as escolas? Começam desde o inicio a confundir questões de natureza com apropriações de cultura. Não se escolhe ser masculino ou feminino: nasce-se, genericamente, feminino ou masculino. O género nada tem que ver com o preconceito que se instalou de que sendo neutros na infância, então, quando na adolescência as naturais transformações fisiológicas e biológicas trouxerem a cada um o interesse sexual, a vontade, o desejo e o prazer de partilhar o corpo com o corpo de outrem, possam escolher sem preconceitos, para a satisfação dos instintos carnais, seres de um ou outro género. Essa escolha não tem nada a ver com a educação: haverá sempre exceções, mas por norma, como bem narra o mito do andrógeno que Platão expõe em O banquete, 189d-193e, narrativa semelhante à de outras culturas e civilizações sobre o mesmo assunto, inicialmente, os seres humanos encontravam-se unidos por troncos esféricos e ao tentar invadir a residência dos deuses, o Olimpo, Zeus castigou-os cortando-os ao meio, fazendo de um, dois, representando cada um metade de um todo de que se encontra afastado, mas que afincadamente procura a outra parcela. O desejo pela união é aqui representado pelo Amor. Quando se encontravam unidos uns seres eram femininos, originados da terra, outros masculinos, originados do sol, o andrógeno (que participa de ambos) originado da lua, é o único originariamente heterossexual. Os que foram cortados de Andróginos sentem atração por mulheres, os que foram cortados de Andros sentem atração por homens e mulheres e os que são cortes de Gynos sentem atração por outras mulheres. Era apenas isto que se transmitia a uns e outros. Mas a contemporaneidade não tendo que fazer a tantos intelectuais e eruditos que as suas escolas certificam, passou a desprezar as grandes narrativas porque são ilusórias, mesmo que integradoras, e apostou na compartimentação do conhecimento, onde para justificar o investimento feito na formação dos novos fazedores da ciência, passa a alimentar as ideias mais disparatadas e contraditórias sobre tudo e mais alguma coisa.

Também não me parece feliz a associação que a série e aqueles que a seguiram fazem do conceito incel no que diz respeito à teoria dos celibatários involuntários, associando o crime cometido à ideia de rejeição amorosa, neste caso, da figura masculina. Tentar convencer um jovem de 13 anos a alimentar comportamentos de rebaixamento e discriminação sobre o universo feminino, é algo que ao que parece abunda pela internet. Coisa diferente é associar um crime de um adolescente em transição, com a ideia de que as mulheres não gostam dele e dificilmente conseguirá uma relação física com elas, restando-lhe o celibato, a ausência de relações sexuais, que não deseja nem quer. Ora isto é um disparate porque os jovens, mesmo com a liberalidade sexual atual, iniciam, por norma, a sua vida sexual algum tempo depois dos 13 anos, e, na verdade, para ter sexo, hoje como sempre, é só preciso ter algum dinheiro e comprar momentos de prazer com alguém que livremente lhos disponibilize.

Se as mesmas constatações se repetem ao longo dos tempos por gente diversa e atenta, com a maciez dos adultos face àqueles que têm por obrigação educar, com a assunção de direitos sem lhes associar os deveres intrínsecos, com receio do principio da legalidade que prevalece sobre tudo e sobre todos, que sobrepõe o autoritarismo à autoridade, o que esperam das crianças e dos jovens que cedo se apercebem que dificilmente os seus atos lhes irão acarretar consequências graves? Veja-se o exemplo da frequência escolar: sob o princípio da autoridade e do respeito devido a uns e a outros, alunos e alunas que não acatassem os seus deveres básicos, como o respeito aos professores, aos colegas, ao restante pessoal escolar, bem como a frequência de aulas, eram rapidamente excluídos da escola e da frequência escolar. Agora, com a escolaridade obrigatória até aos 18 anos e com a liberalidade legalmente instalada na relação pedagógica, os meninos e as meninas sabem que podem ser mal educados e desrespeitosos com os professores e professoras, como sabem que ter mais ou menos faltas às aulas para nada interessa. Num caso e noutro, a legalidade exige que a escola os retenha por lá até aos 18 anos. Assim sendo, é natural que os professores e as professoras que para nada contam nestes procedimentos se ausentem por completo do processo educativo. Estão ali como uma espécie de guardadores de meninos e meninas que se revezam várias vezes por dia cumprido as diretivas de quem lhes paga, porque precisam de ganhar dinheiro para suprir às despesas. Nem os políticos e muito menos quem dirige as escolas, que na generalidade são mais intransigentes que os políticos de quem dependem, fazem o que quer que seja para lá de satisfazer os caprichos dos meninos e das meninas: sejam quais forem, eles e elas terão sempre razão. Os professores e as professoras tornaram-se os tiranos que a atualidade já não consente e as crianças e jovens, neste entretanto, fazem o que querem e como querem, porque sabem que os seus atos poucas ou nenhumas consequências adversas lhes irão acarretar. Shakespeare pronunciava-se assim, ou fazia dizer a uma das suas múltiplas personagens: “a desgraça destes tempos é que os loucos guiam os cegos” e Dostoievski (1821-1881) mais perto de nós e já inserido nas mudanças da modernidade relevava que “a tolerância chegará a tal ponto que as pessoas inteligentes serão proibidas de fazer qualquer reflexão para não ofender os imbecis”.

Não resta qualquer dúvida que as correções feitas, e bem, em assuntos de impacto universal que têm que ver como a sociedade se organiza e se estrutura, foram e continuam a ser da maior urgência e utilidade e devem obedecer ao respeito absoluto por todos os seres humanos independentemente do sexo, raça, religião, condição social, formação, etc: “Não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos são um”, refere-se em Gálatas, 3, 28.  Devemos ter presente que este é apenas um ideário a perseguir e que jamais será conseguido. Basta lembrar que no tempo da escravatura pelas novas terras da América os escravos e escravas quando eram alforriados, tornados cidadãos livres de pleno direito, esmagadoramente iam comprar outros cidadãos e cidadãs seus iguais, que submetiam à mesma escravatura de que tinham padecido, na ignorância de que permitir os mesmos direitos e exigir idênticos deveres a todos e a todas, é condição fundamental para uma sociedade mais justa. Mas confundir assuntos essenciais com opiniões e formas de vida particulares que acabam por se impor unilateralmente à imensa maioria que se torna silenciosa e compactua com o que não conhece e que os ignorantes certificados lhe transmitem, a coisa já é outra. A mudança, qualquer que ela seja, requer apenas simplicidade e bom senso, nada mais, pois como refere o matemático e filósofo Bertrand Russel: “A boa vida é aquela que é inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento”.

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Artur Manso, nasceu nos idos de 1964, pelo outono, ao cair das folhas, na aldeia transmontana de Izeda. Professor universitário que ao longo do tempo se tem dedicado à aprendizagem e ao ensino de pequenas coisas sob o signo da estética e da ética, do lugar que nos cabe no mundo e de como a beleza nos pode tranquilizar.

UM CONTENTAMENTO DESCONTENTE – EDITORIAL por Danyel Guerra

 

Diogo, a criança que calou a arma com a flor. Da autoria do fotógrafo Sérgio Guimarães.

UM CONTENTAMENTO DESCONTENTE

“Há uma justa medida em todas as coisas; E existem certos limites” Horácio

 

I– Às 24 horas do próximo dia 24 de abril terminam as celebrações populares e institucionais do cinquentenário do levante cívico-militar que, sem efusão de sangue, vibrou o golpe de misericórdia na ditadura estadonovista de Salazar e Caetano, O vermelho, vibrante, só era visível nos cravos que floriram no cano das  metralhadoras.

Ao longo desses 365 dias de comemorações, nem sequer o mais otimista aos Drs. Pangloss da classe política dominante  se extenuará na entoação de hosanas às virtudes, conquistas e realizações  do regime abrilista,  como se Portugal estivesse vivendo num mundo leibniziano, como se os portugueses  estivessem próximos de atingir o zênite da prosperidade econômica, da justiça social, tributária e eleitoral,  das liberdades individuais, da isonomia e da equidade jurídicas, do bem-estar coletivo a que têm direito enquanto cidadãos de um país democrático, onde o estado de direito se alça como firme e bem fundada trave-mestra.

Julgo que só um paladino inebriado por etílicas bebemorações ousará afirmar que está sendo alcançada a harmonia da desejada triangulação dos três “D” inscritos no programa do Movimento das Forças Armadas (MFA). Continuar a ler “UM CONTENTAMENTO DESCONTENTE – EDITORIAL por Danyel Guerra”

CEM ANOS DEPOIS DE ATHENA – por Rui Lopo

CEM ANOS DEPOIS

Por motivOs que não interessa agora referir, em 2017, fui impelida a criar uma Revista que queria de literatura, poesia, cultura e artes. Um projecto aberto às novas gerações que não tendo possibilidade de publicar tanto quanto gostariam, pudessem aqui ser acolhidas. Como refere Fernando Pessoa, na Mensagem, no poema dedicado ao português mais empreendedor de todos os tempos, o Infante D. Henrique, “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”, neste caso já pôde sonhar uma mulher, que com o apoio de outras mulheres e também de alguns homens, originou este projecto que intitulou, acompanhando o fio do tempo, Athena.pt, porque agora outros empreendedores de vários continentes, ditaram não ser o papel o único meio de publicação e difusão, disponível, a todo o tempo, a toda a hora, no mundo inteiro. A revista Athena surgiu em Outubro de 1924 em Lisboa sob a direcção de Fernando Pessoa, contou com cinco números, e esta nossa, bem mais modesta, já vai nos trinta números, na altura em que a Athena original faz cem anos.
Agora no final de 2024, ano de comemoração do centenário, este jovem projecto, conta e situa o historial da publicação original, pela pena de Rui Lopo, a quem agradeço a generosidade do ensaio em torno da sua fundação e vida breve. Sabemos ser quase impossível, sejam quantos forem os anos da nossa publicação, igualar o rasgo criativo de Fernando Pessoa, mas também não aspiramos a isso: apenas a fazer pequenas coisas na senda do sonho pessoano. O resto, a Deus graças.                                                                              Júlia Moura Lopes                                                                                                                                                        http://athena.pt


CEM ANOS DEPOIS DE ATHENA

I

O Modernismo como Vontade e Representação

Uma revisitação lúcida suscitada pelo centenário do modernismo que a partir de 2015 se assinalou, tomando como ponto simbólico de referência a publicação de Orpheu em 1915, assume que as revistas marcam a constituição de grupos e movimentos de ruptura histórica de ampla repercussão. Isto é, mais que assinalar uma obra ou um autor, são os encontros de autores entre si incoincidentes que nos fazem repensar a operatividade de considerar a história cultural a partir da ideia de geração e da quase contingência da afirmação grupal em projectos como o Eh Real! (1915), Centauro (1916), o Exílio (1916), o Portugal Futurista (1917), Sphynx (1917); Contemporânea (1922-26) e Athena 1924-1925). Nos últimos anos organizaram-se colóquios e publicações evocativas destas revistas. É hoje mais fácil aceder ao enorme acervo documental necessário ao estudo pelo facto de estarem em constante aperfeiçoamento importantes sítios em linha como o modernismo.pt e Revistas de Ideias e Cultura – Portugal e o Arquivo Pessoa: Obra Édita e o Edição Digital de Fernando Pessoa.

Do estudo destes projectos editoriais e da sua meditada releitura ressalta a constatação da pluralidade de vozes no seio do que hoje denominamos como modernismo, que nos leva a identificar – em certa medida – uma autoria colectiva das novas propostas literárias e artísticas que se iam apresentando e que fundas consequências tiveram. Na leitura global que propomos, é necessário relativizar a noção de autoria individual valorizando autores até agora menos atendidos, mas afinal determinantes na constituição do espírito do movimento modernista português em seus plurais matizes. Há que estudar sincronicamente o contributo dos participantes nestas revistas em torno de dois eixos principais até aqui obliterados: primeiro importará detectar se nos novos modos de assumir a Arte pictórica ou literária, poética ou ficcional, haveria ou não, subjacente, um programa teórico filosoficamente fundamentado. E de que modo os textos doutrinais e ensaísticos destes autores o revelam e explicitam, numa perspectiva colaborativa, constelada e reticular? Poderá o cultivo da crítica de arte por parte dos próprios artistas ser entendido como uma forma de autoconsciência do seu processo criativo? Por outro lado, importaria aquilatar de que modo é que as novas atitudes filosóficas da passagem do século contribuem para enquadrar, fundamentar ou orientar os novos projectos estéticos para os quais não existiam ainda possibilidades, modos ou categorias de recepção. Haveria, contrapolarmente, que esclarecer como o entendimento até então dominante da categoria filosófica de representação sofre um decisivo abalo a partir das obras de Ângelo de Lima, Amadeo Souza-Cardoso, Raul Leal, Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor, Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro. Isto é: opera-se uma redefinição da apresentação artística como nova representação do mundo, em seu triplo aspecto: gnosiológico, desconfiando da representação científica ou naturalista; sócio-existencial, revelando o lado teatral de toda a actividade humana, social e política; e ontológico, mostrando todo o ser como representação prévia inconsciente, mais ou menos volitiva. Colocamos assim a hipótese de que o modernismo português supõe uma revolução filosófica prévia e simultânea, que até agora não foi assumida ou explicitada e, em segundo lugar, que os desenvolvimentos filosóficos do século XX português são impensáveis sem o influxo da revolução estética modernista e futurista.

II

Athena? Que Athena?

Um colóquio para Athena!

Tendo como horizonte o sempre incertamente delimitável conceito de moderno e de modernismo a partir do estudo das suas mais influentes revistas, em que se ensaiaram novas formas de escrever e ler a tradição e novas formas de pensar o fenómeno artístico atendendo com inaudita punção ao modo como a sua actualidade o determina, e sua época constitutivamente o enforma, colocamos a hipótese de que criar o moderno implicou que o criador se assumisse enquanto sujeito futurante de um presente incompleto.  Assinalando-se este Outono o centenário da revista Athena editada por Ruy Vaz e Fernando Pessoa em cinco números mensais saídos entre Outubro de 1924 e Fevereiro de 1925, entendeu o Grupo de Investigação Raízes e Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto organizar um colóquio que pretende colocar questões e lançar hipóteses de trabalho. O colóquio tem como mote a pessoana injunção: não se aprende a ser artista, aprende-se porém a saber sê-loAthena suscita uma certa estranheza, difícil de circunscrever: porque é que aqueles que se manifestam culturalmente num gesto de fractura e cisão optaram por tal título grego? Que (neo-)helenismo é este dos modernos e em que se distingue do neo-helenismo dos renascentistas ou do dos românticos? Qual a natureza, função e valor deste título? Decoração, mais ou menos irónica? Será ele orago, inspiração ou totem? Figura tutelar ou mito fundador (contraposto a Orpheu?) E nisto tudo não se intui algo de programático?

Em que medida a concretização de Athena cumpre o plano de difusão neopagã? Como é que o neopaganismo inspirador da revista pôde acolher colaborações tidas por (neo)clássicas, românticas e contemporâneas? Em que medida é que este modo multiforme de estar na modernidade prepara ou antecipa a presença? O que fez juntar numa revista de arte, que se apresenta, pela pena do seu director, como um acto de cultura, isto é, um modo directo de aperfeiçoamento subjectivo da vida, autores tão diversos como Fernando Pessoa que aparece como teorizador da revista, como crítico, poeta e tradutor (de Poe, Pater e O. Henry), Ricardo Reis, Álvaro de Campos, que também surge como teorizador e como poeta, Alberto Caeiro, Henrique Rosa, Almada Negreiros, António Botto, Mário Vaz, o Visconde de Meneses, Mário de Sá Carneiro, cuja colaboração póstuma, escolhida e interpretada por Pessoa, como que o canoniza, Raul Leal, Augusto Ferreira Gomes, Francisco Beliz, Gil Vaz, Castello de Moraes, José Pessanha, Emanuel Ribeiro, Luiz Montalvor, Mario Saa, Cardoso Martha, Carlos Lobo de Oliveira, Antonio de Seves, Alves Martins, Francisco Costa e Alberto de Hutra?

Sentimos que falta trazer à luz o contributo propriamente filosófico desta revista para a qual Pessoa planeara convidar Leonardo Coimbra. Em Athena avulta a colaboração poética de Alberto Caeiro que Pessoa integra programaticamente ao serviço de uma nova proposta filosófica, o objectivismo absoluto; de Álvaro de Campos com seus Apontamentos para uma estética não-aristotélica, onde se procura substituir a ideia de beleza pela ideia de força, e em O que é a metafísica?, visa redefinir tal matricial conceito, o que dará azo a uma bem encenada polémica filosofante com Mário Saa que procuraremos explicitar e enquadrar. Daremos conta que Loucura Universal, de Raul Leal, é afinal um excerto de uma extensa autobiografia filosófica do autor lavrada a partir de um criativo exercício hermenêutico a partir da sua peça de teatro autobiográfico-reflexivo O Incompreendido. De relevar ainda como M.V. [desencriptado por Patrícia Esquível como sendo o crítico Mário Vaz] propõe uma reinterpretação de algumas obras plásticas e escultóricas à luz de novos princípios de teoria da arte. Procuraremos refletir sobre os elementos programáticos explícitos e implícitos na revista sob a forma de textos ensaísticos que apresentam objetivos e princípios estéticos, e pelo cultivo de várias expressões e géneros literários por parte dos colaboradores (Almada como dramaturgo, poeta e desenhador, Saa como poeta e crítico, Pessoa como tudo, etc.). Há que colocar a hipótese de haver algo de dramático, teatral, performático, em toda esta encenação editorial, em que cada participante desempenha vários papéis, de forma mais ou menos consciente e voluntária. Apontar-se-á ainda a ocorrência de tópicos simbolistas tardios, orientalistas e decadentistas, que nunca deixam de ocorrer nas revistas hoje classificadas como modernistas. Daremos especial importância ao facto de a revista ter como projeto inicial a difusão neopagã, assumindo-se como parte duma vasta e complexa campanha de repaganização da vida, da sociedade e da cultura, o que pode não a definir no seu resultado global, mas avulta poderosamente nas colaborações de Campos e Reis e, de algum modo, nas ocorrências clássicas, mais ou menos explícitas. Ficará ainda por apurar até que ponto o neopaganismo pode ser encarado mais do que como uma criação literária pessoana, como um mais vasto movimento que tem em alguns destes autores um momento de expressão, mas que nunca será interrompido na cena cultural subsequente. A crítica, tanto de literatura como das artes plásticas, surge na Athena como um lugar intermédio, de conexão, lugar medial, entre a criação artística e literária e a reflexão filosófica em si própria, continuando-as por outro modo. Talvez tudo isto se resuma, sintetize e culmine na possibilidade pioneiramente avançada por Álvaro de Campos de redefinir a metafísica como uma das belas-artes, como que implicitamente replicando à cautelar advertência de Kant a qualquer metafísica que se apresente como ciência.

Rui Lopo, Porto, Novembro, 2024

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Rui Lopo é formado em Filosofia e membro do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira. Trabalhou com o espólio de José Marinho, depositado na Biblioteca Nacional de Portugal, e com o arquivo de Agostinho da Silva, sobre quem publicou diversos ensaios e a cuja comissão do centenário pertenceu. Autor. Colabora em Raízes e Horizontes do Pensamento e da Cultura Portuguesa e é investigador do IF-FLUP no projeto Filosofia e Teoria da Arte no Pensamento do Século XX em Portugal. Ocupa-se, ainda, do estudo da receção do budismo na vida intelectual portuguesa (1850-1940).

EÇA DE QUEIRÓZ NO PANTEÃO? – EDITORIAL POR DANYEL GUERRA

EÇA DE QUEIROZ NO PANTEÃO?
SIM, MAS COM UMA CONDIÇÃO…

“Ao rei tudo, menos a honra”
Calderón de la Barca       

I – Eça de Queiroz. A exemplaridade da sua vida, a excelência da sua obra, a modernidade da sua herança cultural, artística, intelectual  merecem ser (bem) lembradas, são credoras de reiterados tributos. Como, por exemplo, a projeção num ecrã de ‘O Mandarim’, a montagem num palco de ‘A Capital’, a publicação de um ensaio crítico sobre ‘A Relíquia’. O que este insigne autor de dimensão universal não merece, de certeza, é “ver” seu “descanse em paz”perturbado, ter suas (prezável) memória e (impoluta) honorabilidade molestadas pelo viés da vendeta, da armação, da instrumentalização típicas da (baixa) política. Distorções que denunciou, deplorou, até execrou, com estóica têmpera e fértil poder fabulatório, seja enquanto inspirado ficcionista e talentoso romancista, seja enquanto incisivo cronista e aquilino publicista. Continuar a ler “EÇA DE QUEIRÓZ NO PANTEÃO? – EDITORIAL POR DANYEL GUERRA”

EDITORIAL – O CORPO E O ESPÍRITO – por M. H. Restivo

© Pixabay

Conto do vigário, sem séria burla à mistura, sobre a existência e o seu contrário

O corpo é a nossa primeira e última realidade. Tendo todos direito à sua opinião como à sua religião, acreditamos que só há espírito porque há corpo e, por isso, se se vai o corpo, vai-se também o espírito. O espírito é o corolário desta realidade complexa a que chamamos corpo, segue-se dele, no princípio e no fim. Continuar a ler “EDITORIAL – O CORPO E O ESPÍRITO – por M. H. Restivo”

EDITORIAL – IDEIAS SOBRE A POBREZA – por Maria Toscano

Urgem ideias-comuns menos pobres
sobre a pobreza

Reflectir sobre a pobreza nesta época de Natal – desafio da Direcção da Revista Athena a que me cumpre corresponder como estudiosa dos processos de saída — ou requalificação social — de quem é reconhecido como tendo sido pobre.

Começo por recordar noção sólida e transversal aos diversos estudos sociais sobre o fenómeno: a pobreza é um problema multidimensional.

Quem não sabe disto? Quem pode afirmar que nunca ouviu o enunciado das diversas carências que se acumulam num modo de vida dito pobre? Ou, trocando por miúdos: nem a condição social para se ser pobre é linear, nem é gerada -decorrente-causada apenas por um factor.

Quem nunca contactou — numa notícia radiofónica, num debate televisivo, num documentário, mesmo num filme ou numa canção — com o relato da acumulação de carências ou da passagem da ‘falta’ de um recurso à centrifugação da vida pela reprodução da escassez ou ausência de recursos?

Enfim: quem nunca se apercebeu da dor múltipla em que o quotidiano se transforma quando se empobrece por desemprego, ou por um divórcio/separação, ou por maus tratos de cônjuge, ou por dificuldade ou desorganização entre os gastos feitos e os possíveis?

Acrescento: sendo a pobreza vivida por pessoas singulares e únicas, estas vivências integram, sempre e simultaneamente, sectores e meios onde essa condição é transversal e/ou partilhada — outra noção chave para a sociologia e os estudos dos sociais em torno da pobreza e da exclusão social.

Isto é: constatar a multiplicidade das carências vividas por quem vive em condição de pobreza de todo significa que tenham uma causa singular ou individual; é, sim, conseguir perceber que a multiplicidade dos factores é acentuada ou cruzada pela dimensão colectiva e social do que são modos de vida construídos como pobres e como não pobres. Modos de vida que se reproduzem pelos comportamentos, como pelas atitudes e pelas mentalidades, modos de pensar, de falar e de sentir.

Somos todos testemunhas.

Até talvez já tenhamos uma noção dos conceitos ou das teorias sobre a pobreza.

O problema parece-me estar justamente aqui: no facto de acreditarmos que temos uma ideia do assunto, pelo que, todos formulamos uma análise, ou várias, discordantes; e, claro, em consequência, acabarmos por concordar que “como sempre houve pobreza, continua a haver e sempre haverá pobreza”.

O problema é que, ainda que seja mais fácil-cómodo alinhar na frase comum de que “sempre houve pobreza” não temos evidências disso. Aliás, temos evidências de que as desigualdades entre os mais e os menos poderosos foi uma construção, crescentemente elaborada e justificada-legitimada para alimentar o conformismo e a desistência de contribuir para outra maneira de organizar recursos e vida social. A história humana ensina que foi a ‘descoberta’ da terra privada, das ferramentas, instrumentos e alfaias privadas, e a invenção dos alojamentos, dos parceiros e das crias gradualmente exclusivos e ‘privados’ que acelerou a emergência e gradual desigualdade de sectores sociais poderosos, menos poderosos e não poderosos. Desigualdades e poderes são determinantes na emergência e manutenção de realidades pobres.

De todo se pretende defender um – impossível – regresso ao passado ou o saudosismo das puras origens. O tema é: atenção a preconceitos, ideias-feitas disparatadas e sem qualquer suporte empírico-real-fundamentado.

A ciência tem o dever de se tornar clara e acessível – o cada vez tem conseguido mais, como cada vez mais integrar de forma explícita as noções com que governamos e conduzimos as nossas vidas globalizadas.

Sendo a pobreza uma condição multidimensional, colectiva e relacionalmente construída e legitimada e mantida-reproduzida, não bastam à sua mutação e superação  acções singulares, particulares e isolada no tempo e dos vários sistemas-contextos-sectores sociais.

A pobreza subjaz à degradação ecológica dos recursos do planeta; a pobreza suporta o tráfico de seres humanos; a pobreza alimenta as relações de género degradantes e agressivas (podendo estas desenvolverem-se noutros contextos não ‘pobres’); a pobreza estimula a competição, o individualismo, o insucesso escolar e a ignorância social; a pobreza é o rosto das incapacidades relacionais e de justiça que as nossas sociedades manifestam e, nalguns casos, aprofundam.

Somos todos testemunhas.

Sejamos todos sujeitos de mudança, a começar pela distância entre aquilo que pensamos e fazemos.

Ou, calemo-nos de vez e assumamos que, por sermos tão miseráveis, nem somos capazes de admitir que o fim da pobreza envolve e implica a todos, porque os recursos-mãe e os contextos e modos de legislar e organizar a vida são… colectivos, relacionais e sociais.

Que tal, neste Natal, deixarmos de nos convencer(mos) de que somos muito humanos e, de uma vez por todas, admitirmos que aquela gastíssima frase – “pois, sempre houve pobreza…” – sendo cómoda, é uma falácia, pois é um dos nossos comportamentos miseráveis que reproduzimos e nos faz, também por isso, sermos pobres?

Que tal assumirmos ideias menos pobres sobre a pobreza… e acções…?

 ♦♦♦

Maria (de Fátima C.) Toscano, Doutora em Sociologia. Docente Universitária, Investigadora e Formadora. Coach e Trainer em Programação Neurolinguística.
Figueira da Foz, 3 de Dezembro / 2022

EDITORIAL- BORGES TINHA RAZÃO, MAS ….- por Danyel Guerra

Jorge Luís Borges

    Creio que os jornais fazem-se para o esquecimento,
                        enquanto os livros são para a memória”(1)

Jorge Luís Borges        

BORGES TINHA RAZÃO
MAS NÃO FOI RAZOÁVEL

1- O ano de 1946 decorria politicamente atribulado na República Argentina. Após ser solto da prisão e se ter casado com Eva Duarte, Juan Domingo Perón ganhava nas urnas, a 24 de fevereiro,  o direito a residir, como presidente, na Casa Rosada. Uns meses depois, o funcionário Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo foi remanejado do seu lugar numa biblioteca municipal da Grande Buenos Aires, sendo mandado inspecionar aves e coelhos nos mercados da capital.

Os motivos são notoriamentre políticos. O portenho de 47 anos, festejado inventor de Ficciones, havia assinado pronunciamentos de intelectuais contra o general Perón. Um saneamento em coerência com os novos tempos que sopravam nas margens do rio de la Plata.

Ignoro de todo se, em tão tumultuada época, o proscrito já sustentava a controversa opinião expressa na epígrafe deste texto.  Se já a defendia, será caso para se dizer que o caudillo justicialista “escreveu direito por linhas tortas”. Nessa conformidade, terá sido, outrossim, uma demissão com justa causa. Continuar a ler “EDITORIAL- BORGES TINHA RAZÃO, MAS ….- por Danyel Guerra”

 EDITORIAL – “Pessoa: Singularmente plural” – por Jaime Vaz Brasil

A singular pluralidade de Fernando Pessoa passa, antes de tudo, pela gênese artística de seus heterônimos. Seja como Fernando – o próprio – , Álvaro, Alberto ou Ricardo (ou ainda Bernardo e outros menores), o genial poeta criou personagens que existiram soberanos em estilo, temática, dimensão estética e qualidade. Continuar a ler ” EDITORIAL – “Pessoa: Singularmente plural” – por Jaime Vaz Brasil”

EDITORIAL – VITOR VITÓRIA – por Danyel Guerra

Vitor Aguiar Silva

“Ele é o mestre completo”
Maria Helena da Rocha Pereira

VÍTOR VITÓRIA

Decorria o ano de 1976, quando o escritor sueco Artur Lundkvist declarou que Jorge Luis Borges jamais ganharia o Prêmio Nobel de Literatura, “devido a razões políticas”.  Categórico, sem dar chance a dúvidas, este membro da Academia Sueca desvirtuava com este anátema o caráter literário da distinção. Continuar a ler “EDITORIAL – VITOR VITÓRIA – por Danyel Guerra”

EDITORIAL por Hilton Fortuna Daniel

Em 1918, terminada a I Guerra Mundial, iniciava-se a Gripe Espanhola.

Esse ciclo pandémico, tendo matado milhões de pessoas, terminava em 1920. Em cada fim de história, há sempre um início de história. Nesse ano, para a música e para a literatura, nasciam Amália Rodrigues e Clarice Lispector. A primeira solfejava poemas dentro de notas bem pautadas. A segunda, com a portentosa pena por que é hoje conhecida, empreendia A Descoberta do Mundo, título de uma das suas obras-primas. Continuar a ler “EDITORIAL por Hilton Fortuna Daniel”

NEM SÓ OS CAVALOS SE ABATEM – EDITORIAL por Danyel Guerra

 “In Berlin, by the wall, you were five foot ten inches tall”

                                             Lou Reed

1 – Me lembro como se tivesse sido ontem. Ou hoje. Ou amanhã. Na noite novembrina em que o Berliner Mauer  começou  a ser derrubado,  a martelo e à picareta, botei a rodar no som o disco ‘Berlin’, aquele álbum conceitual que Lou Reed publicou em 1973. Uma “trágica ópera rock”, que a crítica especializada acolheu com um olhar de soslaio. Continuar a ler “NEM SÓ OS CAVALOS SE ABATEM – EDITORIAL por Danyel Guerra”

EDITORIAL POR JÚLIA MOURA LOPES – “Afastem de mim esse cálice”

“Com toda a lama, com
toda a trama, afinal, a gente vai levando essa chama”.

Chico Buarque

Neste Maio único e tardio, Francisco Buarque de Hollanda, poeta-músico tão nosso, cronista dramaturgo da “Ópera do Malandro”,  romancista e ainda actor, homem lindo, que tão bem exterioriza o eu feminino, foi distinguido com o Prémio Camões”, o maior troféu literário da nossa língua.

Está reacendida a questão iniciada com o Nobel a Bob Dylan, sobre o conceito canónico de Poesia. Como se pode pretender que a poesia escrita seja superior à cantada, quando sabemos que a mesma teve  inicio exactamente na tradição trovadoresca?

*Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno

Além desta polémica, o Prémio Camões 2019 vê-se no epicentro de outra polémica bem mais feia. Os simpatizantes de Bolsonaro  acusam a escolha de Chico Buarque, denunciando ver nela uma mensagem implícita de  conotação política. Continuar a ler “EDITORIAL POR JÚLIA MOURA LOPES – “Afastem de mim esse cálice””

EDITORIAL- por Floriano Martins

Este é o número 6 de Athena e com ele a revista encerra um ano de conquistas em sua agenda editorial, surgida em maio de 2017 com uma edição zero. Desde então trimestralmente vem cumprindo com valioso propósito, de trazer para a mesa virtual de leitura conhecimento e criatividade. Em seu primeiro editorial lemos que Athena quer ser nave, pronta a descobrir textos e autores inéditos, novas reflexões, quer na investigação científica, quer derivados da criação literária. Sua aventura editorial não propriamente se dá em busca de respostas, mas antes na forma de perseguição da dúvida, que conduza a novas questões e faça duvidar das convicções possíveis. Em duas áreas a revista tem avançado, na revelação de autores e na proposição de novas reflexões, em muitos casos reportando ao passado como leito frondoso da existência humana. Continuar a ler “EDITORIAL- por Floriano Martins”

EDITORIAL – ATHENA & AS ARTES, HOJE (1) – por Paulo Ferreira da Cunha

Athena faz um ano, e já nela se evidencia, como traço muito vincado, a vocação cultural geral, do pensamento, das letras e das artes. Neste aniversário, julgamos que seria importante reflectirmos um pouco sobre estas últimas, que andam, um pouco por toda a parte, em maré não tanto de crise (essa já vem de longe, e nem é muito mau que assim permaneça), mas de incompreensão e até de perseguição.

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EDITORIAL – Como ficar bem athenado – por Danyel Guerra

0- Nos desfiles de samba brasileiros, ápice do Carnaval nos alegres trópicos, manda o figurino, dispõe o ritual, impõe a superstição, aconselha o bom senso, que a escola esquente os tamborins da bateria -e não só!- antes de adentrar na passarela com os dois pés direitos. Para começo de conversa, não encontramos alegoria mais assertiva e adequada a fim de festejar a edição do nº 0 da revista ‘Athena’.

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EDITORIAL ZERO – por Júlia Moura Lopes

Diz o mito, que Zeus convenceu Métis a participar de uma brincadeira, onde Métis acabou por se transformar em mosca, que Zeus engoliu, acabando esta por se alojar na sua cabeça. Assim nasceu Athena, do cérebro de seu pai, poderosa, já adulta, guerreira munida de armadura, elmo e escudo – pronta para o combate. Foi o fim do medo, o início da coragem. O caminho.

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