NEM SÓ OS CAVALOS SE ABATEM – EDITORIAL por Danyel Guerra

 “In Berlin, by the wall, you were five foot ten inches tall”

                                             Lou Reed

1 – Me lembro como se tivesse sido ontem. Ou hoje. Ou amanhã. Na noite novembrina em que o Berliner Mauer  começou  a ser derrubado,  a martelo e à picareta, botei a rodar no som o disco ‘Berlin’, aquele álbum conceitual que Lou Reed publicou em 1973. Uma “trágica ópera rock”, que a crítica especializada acolheu com um olhar de soslaio.

Nesses momentos de euforia, fui tomado pela presciência de que similares muros da vergonha iriam ruir, seriam derrubados, em sucessão, numa imparável manifestação do efeito cascata/dominó. E a utopia nutrida alçava-se a um patamar esmaltado de um cândido lirismo. A civilização planetária não permitiria, não pactuaria com a construção de novas réplicas do arruinado paredão, que serpenteava, insolente, cercando o setor ocidental. Ledo engano, santa ingenuidade  a dessa crédula presciência.

Quando o muro, de 160 kms de extensão, que secionava a bola de Berlin, foi abatido, estavam firmes e eretos, ao longo da nossa Terra, mais uns 16. Atualmente, estão contabilizadas umas 65 barreiras de pedra, cimento, tijolo, ferro, arame farpado, erguidas para separarem povos, nações, pátrias e estados. Cerca de 40 mil kms de afronta e desaforo.

“This land is your land, this land is my land’, assim cantava, nos anos 40, um politicamente engajado Woody Guthrie, enquanto dedilhava, em frenesi, “a máquina que mata fascistas”. Como sabiamente sintetizou, inspirado na sua “ignorância popular” o cangaceiro Coirana de ‘O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro’, de Glauber Rocha, “se Deus criou a terra, o Diabo levantou o arame farpado”.

2- Na certa, não foi por mero acaso, ter competido ao Cinema desferir, com clamoroso e mediático impacto, certeiros golpes simbólicos no muro da insídia, que, ao longo de 28 anos  sequestrou Berlin oeste.

Evoco, nomeadamente, ‘Torn Curtain’ (1966), de Alfred Hitchcock, em que, numa sequência crucial, um bus logra “burlar” os esbirros da Stasi, conseguindo atravessar de leste para oeste o patrulhado complexo de muralhas, desfirindo um rasgão na cortina de ferro tecida. Ninguém estranhou que a fita tenha sido brindada por alguma crítica de esquerda com o labéu de “reacionária” e outras mimosas imprecações.

De 1987, data “Der Himmel über Berlin’. Nesse seu primoroso exercício de cinemarte, Wim Wenders nos seduz, nos compraz  e nos maravilha com uma premonitória alegoria do derrube do muro desavergonhado, que ao longo de 28 anos, vitimou pelo menos 327 alemães.  Asas do desejo turbinadas pelo amor a uma mulher, Damiel –um dos guardiães espirituais dos berlinenses – decide saltar, derrubar o muro que separa o mundo dos anjos do imundo dos mortais.

3- Passadas três décadas sobre o advento dessa noite de luminosos sortilégios, eu tendo a caucionar a veracidade da seguinte constatação. Malgrado a brutalidade embutida nesses paredões de impiedade, há muros pelo menos tão nefastos como esses que não visualizamos a olho desnudo. E que são muito mais difíceis, problemáticos de implodir. É notório que estou me referindo aos muros invisíveis que persistimos, insistimos em levantar no interior da comunidade humana, armados com as ferramentas da soberba e munidos dos materiais da arrogância.

Muralhas inexpugnáveis, argamassadas com o vírus da intolerância, do preconceito pessoal, tribal, religioso, político, social, cultural, étnico-rácico, cimentadas com a bactéria da ignorância, da idiotia, da imbecilidade, da ridicularia, aferradas com o fungo da discriminação e da violência contra quem ouse a audácia de divergir das nossas opiniões, contra quem manifeste o acinte de discordar das nossas ideias.

4- Toda a regra tem exceção, ressalve-se. Mesmo as exceções têm. A sobrevivência de alguns desses soberbos paredões, sugerirá o bom senso, deve ser garantida. Serão os casos, de um óbvio ululante, da Grande Muralha da China (Norte) e do Muro das Lamentações/Muro Ocidental, em Jerusalém, justamente considerados  patrimônios da Humanidade.

Patrimônios da Desumanidade se arriscam em tornar, no entanto, os muros alçados cotidianamente por milhões de usuários das  redes sociais -ou, em bom rigor, redes antissociais. Tijolo com tijolo num desenho ilógico, delineamos murais intolerantes, ladrilhados de publicações, mensagens e comentários que não raro tangem o limite do torpe e do soez.  Usando e abusando da acrimônia, do azedume, da truculência, da virulência, da maledicência, enfim da violência verbais, esses muros digitais se erguem insolentes como sucedâneos, mal comparando, dos dazibaos chineses dos tempos da sinistra Revolução Cultural maoísta.

Nas timelines do Facebook, do Twitter, do Instagram vale tudo. Vale até arrancar os olhos, vale até decepar o olho do furacão. Esses muros tendem, cada vez mais, a degenerar em espelhos equívocos onde os utilizadores se miram narcísica e exibicionistamente, postam acrítica e levianamente postulam opiniões e ideias eivadas das peçonhas da intolerância, do racismo, da xenofobia, do populismo, do nacionalismo, do negacionismo de verdades comprovadas pela Ciência. A insensatez  medra, pujante, semelhante a cizânia, em terreno minado pela irracionalidade de mentalidades inquisitoriais.

5- Contudo, invertendo a lógica do aforismo, cumpre evitar que a floresta de enganos oculte as árvores viçosas. São muitos, imensos, da ordem dos milhões, os usuários que tornam essas redes genuinamente sociais. Parafraseando a bonomia da expressão inventada por um treinador de futebol, as tecnologias digitais são uma faca de dois (le)gumes. Ao mesmo tempo, um utensílio tão apto a cortar o pão que nos alimenta, como a deletar um semelhante que nos apoquenta.

Julgo não estar pendendo para o paternalismo se recomendar que essas ágeis ferramentas sejam aplicadas e monitoradas com moderação e temperança, à imagem do sal na sopa de pedra preciosa. Nenhum de nós deve ficar em cima do muro da complacência. Maturidade cívica, compostura ética, avaliação ponderada e precaução judiciosa recomendam-se.

6- O Prof. Francis Fukuyama não terá evidenciado a totalidade  desses predicados no seu renomado livro ‘O Fim da História e o Último Homem’(1992). Mostrou-se, no mínimo, precipitado, deixando-se contaminar pelas ébrias comoções dos dias que se seguiram ao derrube do Berliner  Mauer ,da ruina da Cortina de Ferro e do correlato congelamento da Guerra Fria. Descontextualizando  o paradigma político-filosófico urdido por Friedrich Hegel, o “chicago boy” (ele nasceu na “cidades dos ventos”) decretou que com a derrota do nazifascismo e do comunismo, a democracia de tipo ocidental e o capitalismo passavam a ter via verde para se perpetuarem tranquilamente.

Intelectualmente sobranceiro, Fukuyama  subestimou uma evidência insofismável. É mais difícil prever o curso do devir histórico do que adivinhar o nº da taluda da loteria do Natal. Ele só acertou na terminação. O que estava no proscênio do tempo coevo era o fim da História… da Idade Contemporânea, imolada, a golpes de misericórdia, pelos já elencados sucessos escatológicos.

O que seus auspícios não terão pressentido foi o estrepitoso impacto de um (novo) começo da História, em gestação acelerada no útero da revolução tecnológica. Um reset  que, na época, já não se vestia com a extravagância do adventício. Quem me lê sabe a que fenômeno estou me referindo.

7- Jazia na inglória da sua torpeza o execrado muro levantado pelo nazicomunismo, ao mesmo tempo que se encetava a tessitura de um sistema global de redes de computadores interligados. Em abrangente conexão planetária, esse sistema, dotado com as sandálias douradas de Hermes, despontou fadado para, senão derrubar, saltar por cima e por baixo de muros, muralhas, paredões, fronteiras, físicos/as e materiais, invisíveis e espirituais.

Sobre a realidade onipresente da Internet não tem cabidela me alongar muito. Você que está lendo este edito será, quase de certeza, mais expert  do que eu nesse nevrálgico departamento. O valor acrescentado aportado por essa cornucópia de funcionalidades e de aplicações da net ameaça ser incomensurável.

Em abono de projetos editoriais alternativos, independentes, off mainstream do gênero da ‘Athena’  sua bondade chega a ser emocionante.  Do ponto de vista da difusão/promoção/divulgação, esse entrançado de redes denota as virtudes do providencial e do decisivo.

Este número do nosso magazine pode, neste momento, estar sendo lido por lusofalantes  na Ilha de Tonga, no Lesotho, na Lapônia, na Terra do Fogo, na Mongólia, na Terra Nova. Uma edição de papel  não conseguria a proeza dessa expansão, dificilmente lograria sobressaltar  todo o tipo de fronteiras, de modo tão célere.

Para que conste das crônicas atuais e dos relatos futuros, recorde-se que à imagem dos cavalos de Horace Mc Coy, os muros, outrossim, se abatem. Os muristas que tomem cuidado.

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Danyel Guerra (aka Danni Guerra) Faz parte do Conselho Editorial de Athena. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História Universal da Infâmia pela FLUP. É jornalista nas horas (mal) pagas e autor literário nas horas com vagas.
Publicou os livros ‘Tomás Gonzaga-Em Busca da Musa Clio´’, ‘ Amor, Città Aperta’, ‘O Céu sobre Berlin’, ‘Excitações Klimtorianas’, ‘O Apojo das Ninfas’, ‘Oito e demy’, ‘Fernando de Barros-O Português do Cinemoda’ e ‘Os Homens da Minha Vida’.