Rolam velas de lume no limbo do mar…. Entrego-me ao sol , despido e sonolento na manhã já alta… Despejo com avidez o cinzeiro da noite anterior e revejo-me na busca do azul… Empalideço ao notar que as nuvens são reais como eu…. Desenho na areia o meu nome talvez em busca de mim… Alinho-me a Oeste , procurando a luz que já empalidece… Afundo-me no sonho desperto de ser como sou… Dobro o jornal e desejo-me dentro de mim… Adormeço acreditando que as nuvens se despedem…ao longe…
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Manuel Diniz Gaspar Cardoso Cortes. Médico – Chefe de Serviço de Medicina Geral e Familiar e Terapeuta Familiar pela Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar. Fotógrafo de Natureza e Vida Selvagem desde 1980. Prémio Carreira do FAPAS e C. M. Castelo de Vide em 2016 pelo trabalho desenvolvido nesta área. Aluno de Mestrado em “Arqueologia pré-Histórica e Arte Rupestre” UTAD – 2016/2018 Autor dos livros ”Momentos ao Natural” (2007) e “Viagem” (2015)
Ao descerrar as cortinas da janela, devassando o olhar para o belo horizonte, Maria Doroteia dissipa num ápice a boa disposição com que saltara da cama. Imaginava que a luz de um sol radiante seria portadora de bons auspícios. A visão de uma manhã brumosa, nebulosa, umedecida por gotículas de orvalho, precipita-lhe súbita ansiedade. O outono impõe sua lei. E uma espessa lubrina* já atapeta, em tons cinzentos, o caminho do agreste inverno.
Como os caRiocas, esta mineira também não gosta de dias nublados. Mas quem gosta?! Além do mais, o nevoeiro tem o impertinente condão de avivar em sua lembrança a imagem, ainda nítida, de um esperado Desejado.
A escassos metros, envolto no drapejado de lençóis e cobertas do leito, repousa um livro, páginas abertas numa das estâncias do canto “mais doce, alegre e deleitoso” da epopeia. As artimanhas do aleatório não poderiam insinuar aconchego mais propício.
Oh! Que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava! (1)
Não, hoje não vou visitar titia. O clima não está nada convidativo. Fico por aqui, lendo, fazendo umas arrumações nas velharias, decide, apertando o cinto do penhoar* azul violetado, enquanto se aproxima de um escrínio de porcelana, que costuma usar como pesa-papéis. Antes de levantar a tampa, pega numa folha e escreve uma solitária frase.
Ao encarregar Chiquinho da entrega da mensagem, lembra ao moleque que deve ser veloz como Mercúrio. Isto, apesar do escravo não trazer calçadas sandálias aladas, nem coisa que se pareça. Lacônico, o recado tem como destinatário o tenente-coronel dos auxiliares Manuel Teixeira de Queiroga, um buliçoso homem de negócios que mora mesmo em frente da casa da tia Ana Cláudia, à Ladeira da Praça, no centro de Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto.
Na sede da Capitania das Minas Geraes não é só de manhã que uma névoa, tingida de chumbo, inibe a aparição da luminosidade solar. Nas minas, veios, córregos, riachos e ribeirões, haurido o ouro, a autenticidade cede o passo à contrafação. Do mesmo modo, nas relações humanas, quando a falsidade suplanta a verdade, a hipocrisia e a intriga emudecem a franqueza e a lealdade, a insídia tende a impor sua supremacia.
Espalhados pelos corifeus da maledicência, os boatos escalam as precipitadas ladeiras do Pilar de Ouro Preto. Subindo ágeis as calçadas e descendo sem freio morros e outeiros, boatos ciciam que, há mais de um ano, Maria Doroteia apostara suas fichinhas amorosas num idílio secreto com um reinol*.
Reinol que, sublinhe-se, o ex-noivo de Doroteia, o juiz Tomás “Dirceu” Gonzaga, apelidou de “Roquério” e destratou, com irrisória verve, n’ As Cartas Chilenas. Quando escreveu tão jocosos versos, o lírico vate, tornado cronista satírico, parecia estar adivinhando a proeza que o arguto contratador congeminava, armado dos trejeitos de um D. Juan provinciano.
Se certezas intuísse, o poeta não hesitaria certamente em soltar a furiosa Megera no caminho do mal-ajambrado* rival. Na realidade, enquanto o bardo Dirceu padecia, como um Prometeu, as agruras do cárcere, o lisboeta, encostado ao parapeito da janela de seu sobrado*, vestia a casaca do galante. E insistia, persistia em cortejar a ex-nubente, sempre que a formosa subia ou descia as escadas da casa da tia.
Mas que ninguém o acuse de ser um fauno depravado. Nos seus viçosos vinte e poucos anos, a moça já não se encontra em estado de graça. Afinal, Dorô está na idade em que na mulher, o fulgor da juventude começa a se volatizar, como depurada fragrância exposta ao flagelo da ventania.
Ela tem que aproveitar o dia, a tarde, a noite e a madrugada, enfim, gozar o carpe diem aprendido nos carmes* que o pastor Dirceu lhe dedicara. Todavia, tal como de Nefertiti, dela arriscaria dizer que o mito a dotara de todas as virtudes. Mesmo a de se ter resguardado dos ímpetos da lascívia, se tornando uma casta, fiel até à morte, em tributo e respeito ao primeiro amor. É dessas amenidades que se geram, nutrem, crescem e se agigantam as legendas, em especial as românticas.
Em plantão permanente, as línguas da fofoca não se cansam de cochichar que a senhorita soubera da publicação de Marília deDirceu ao relançar o olhar para um livrinho, abandonado ao acaso, em cima do criado-mudo* da cama de Queiroga. Ao abri-lo, leu embevecida uma das liras que Tomás António lhe dedicara, em carta prenhe de emocionada afeição, nos tempos desditosos da prisão, onde continuou a tecer, com fios de seda, sua (Doro)teia de sedução…
Mal durmo, Marília, sonho
Que fero leão medonho
Te devora nos meus braços (…) (2)
Pelo visto, o reinol Queiroga não é somente o proprietário dos melhores cavalos da vila. Aparenta também cultivar estimáveis hábitos de leitura, isto se não passar de um mero acumulador de livros, para emoldurar estantes e impressionar as visitas num alarde de postiça erudição.
Nos poemas do desafeto, o sôfrego Roquério talvez procure aprimorar os requintes da conquista. Ancioso por arrebatar, de vez e para sempre, o coração da donzela, o “fero leão medonho” afina sua voz para melhor cantar a formosura de Marília, perscrutar seus “olhos belos”, beijar a “testa formosa”, afagar os “negros cabelos.”
Não foi, de certeza, por esquecimento que o pedante rendeiro ocultou a Doroteia a aquisição de um exemplar do livro. Piorando o quadro, foi devido a uma distração sua que a desejada soube do regresso a Vila Rica das arcádicas e pré-românticas liras. O deslize por pouco não comprometeu seus planos. A moça ficou mais que despeitada. Quase revoltada, não apreciou nada ser (des)tratada como uma menina suscetível, afeita a crises de volubilidade juvenil.
O que em definitivo a desiludiu foram os receios e a insegurança de Queiroga, como se a visão das pastorais de Dirceu, em letra de impressão, nela reavivasse as recordações do malogrado romance com o desgraçado ouvidor.
De súbito, uma forte pancada de vento sacode as janelas do quarto, arrancando Doroteia destes intrigantes pensamentos, trazendo-a de novo à soturna realidade. Abre por fim a boceta e depara com o anel de ouro e diamante, presente do agora degredado na longínqua Moçambique. Sua atenção se dirige, porém, para uma folha de papel, dobrada em quatro, onde Tomás escrevera um soneto dedicado a ”ilustríssima Condessa de Cavaleiros, D. Maria José de Essa e Bourbon.”(3)
A excelentíssima senhora era a venerada esposa de D. Rodrigo José de Menezes, governador e capitão-general das Minas Geraes, filho do famígero Marquês de Marialva. Encharcado de reverente louvação, o poema celebra a memória da mítica Inês de Castro, a cuja linhagem a condessa se ufanava de pertencer. O soneto(4) terá sido declamado num dos saraus que D. Rodrigo, inchado de prosápia, promovia no palácio. Foi a primeira vez que a então mocinha ouviu comentar os talentos poéticos do garboso ministro, vizinho do lado da tia Ana Cláudia, na Casa do Ouvidor.
Maria Doroteia julga convencer-se de que simplesmente obedecera a um impulso, quando resolveu vasculhar nas obscuras galerias do túnel do tempo, lembranças tão antigas de Dirceu. Não por acaso, durante a noite, ao se recolher, ela buscara encontrar o son(h)o, folheando Os Lusíadas. Ao passar pelo Canto III, sentiu-se de modo inelutável, atraída para a leitura do episódio de Dona Inês de Castro.
É no afã dessas rememorações, que um esbaforido Chiquinho a põe em desassossego, clamando que traz recado urgente do Sinhô Queiroga. Basta a Doroteia se inundar da clarividência de uma Sibila para se tornar sabedora do que Manuel lhe quer revelar com tanta presteza. Um saber em indiferença tornado. Lacrado, o sobrescrito lacrado continuará. Doroteia cerra, ríspida, as cortinas, inundando o quarto de uma recatante penumbra. Embora contrariada, se angustia ao escutar sua intuição garantir que tinha sido formal e oficialmente destronada no coração do trovador. Não tanto por outra mulher mas, o que é bem mais incômodo, por outra musa, virgem e intocada como se fosse uma sacerdotisa de Vesta.
Determinada, recusa cair no precipício de uma depressão sentimental. Afrouxa o cinto do penhoar, afasta, resoluta, as cortinas, abre a janela para confirmar se a névoa se tinha dissipado. O Pico do Itacolomi, imponente e soberano em dias de sol luminoso, envolve-se ainda num manto de nuvens grávidas de chuvisco. Apesar do cenário adequado, o Desejado não voltará nesse dia. Nunca mais voltará.
Lá fora, o ecoar rumorejante das águas de um riacho é abafado pela alegria da algazarra de uma turma de meninas. Sem se importarem com a cor da pele, a loura Anselma, a morena Joaquina, a mestiça Benedita e a negra Rosário pulam empolgadas numa maré* jogada em frente do Chafariz de Marília, à Ponte dos Suspiros.
Bom dia, D. Maria Doroteia! Como vai?, saúda Joaquina, voz maviosa de patativa, “as tranças pretas pousadas sobre os ombros infantis”. E Dorô corresponde com o claro enigma de um vibrante e sonoro alerta. Bom dia, Marília…. Não se esqueça querida, você tem encontro marcado com Dirceu!
(**Marília é o criptônimo arcádico de Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão, noiva e musa de Tomás António Gonzaga, o poeta Dirceu, nascido em Miragaia, Porto (Portugal), a 11 de agosto de 1744.)
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Notas1 - Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IX, estância 832- Tomás Gonzaga, Marília de Dirceu, 1ª parte, lira XXI3 - Tomás Gonzaga, Marília de Dirceu, 3ª parte, soneto VI4 - Atualmente, é convicção adquiria que o soneto foi escrito a duas mãos, com o camarada árcade Cláudio Manuel da Costa, que não seria também nada “coxo”, no que tange à prática da poesia do encômio.
*Glossário
lubrina – neblina penhoar – robe reinol – habitante do Brasil colonial, nascido no reino de Portugal mal-ajambrado – vestido sem elegância sobrado – moradia de dois ou mais andares, típica do Brasil colonial carmes-poemas maré – jogo da macaca, amarelinha
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Danyel Guerra (aka Danni Guerra) nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História Universal da Infâmia pela FLUP. É jornalista nas horas (mal) pagas e autor literário nas horas com vagas.
Publicou os livros ‘Tomás Gonzaga-Em Busca da Musa Clio´’, ‘ Amor, Città Aperta’, ‘O Céu sobre Berlin’, ‘Excitações Klimtorianas’, ‘O Apojo das Ninfas’, ‘Oito e demy’, ‘Fernando de Barros-O Português do Cinemoda’ e ‘Os Homens da Minha Vida’.
Início – Senhora de Campanhã (Rua da)
Fim – Buçaco (Rua do)
Designação desde – 1965
Freguesia de: Campanhã
A Beata D. Mafalda nasceu em 1200, era filha de D.. Sancho e de D. Dulce de Aragão, o seu nome é uma homenagem à sua avó, D. Mafalda de Sabóia, filha de Amadeu III e mulher de D. Afonso Henriques.
A sua vida estava talhada, como muitas da sua condição, para ser moeda de troca das políticas régias.
O casamento das mulheres da corte ( filhas dos reis em exercício ), como parte da rede de intrincadas alianças políticas, mas sem elas terem voz activa na escolha do seu destino.
Fruto desta lógica, e tendo como pano de fundo a necessidade de ganhar apoios em Castela contra os Árabes, D.Mafalda é induzida a casar com Henrique I de Castela, que à época tinha onze anos. Continuar a ler “MULHERES NAS RUAS DO PORTO IX- por César Santos Silva”
Soñé que las palomas volaban como monedas
hacia las antiguas piletas de avenida 9 de julio
y ahí me esperaban las lechosas con sus
corona de carruajes, de maratones, de barricadas
extendiendo hacia mi cuello
y la avenida 9 de julio era un desierto
en verdad toda la Capital Federal era un desierto
(tú eras un desierto y me mirabas)
todo era una gran meseta de arena ocre que destellaba rayos de colores reflejos de Historia como gritos
porque de los edificios abandonados de la avenida
colgaban millones de asentamientos humanos
que buscaban la esperanza en los astrólogos imaginarios
esos que ahora gobernaban los países abandonados después
de lo fines del mundo
soñé que el obelisco era una joya en el desierto morado
que del Río de la Plata solo quedaban los yacimientos petrolíferos
oxidados y disecados
(tú eras el yacimiento y explotabas)
y danzaban las sectas de colores todos los viernes
al atardecer cantando los coros humanos
recordando la gloria que alguna vez hubo
cómo el mejor de los campeonatos de polo en los country y en las fincas
algunos andaban como en una bicicleta llevando
mensajes de los territorios perdidos más allá del desierto habitado
allá donde se supone no quedaba nadie
el eco de señales de radio
el griterío de los bebés abandonados
el llanto de los soldados en la cordillera
la agonía de los colonos que se ahogaron
en la última maratón de los que escapaban
de las inundaciones perpetuas transandinas
(ese país ya no existe pero tú sí)
y seguían andando como en una bicicleta
recitando los mensajes como poemas
como si con eso nacieran flores globos espejos burbujas
(tú eras las burbujas pero estaba el desierto y yo era el desierto)
♣♣♣
8
a mi me llaman el colorino
porque rescato los fuegos artificiales de los infartados
los sueños de los drogadictos
y las bendiciones papales de los desquiciados
e inventamos en el brocal de las botellas
las sinfonías los finales
los mediáticos créditos fílmicos
el cancionero fatalista de los hospitales
para que celebremos la escuela de los esclavos
la escultura de los pañuelos
en el adorno de los discursos
de los chiquillos del poder
los niñitos de las financieras que creen que han descubierto
a dios en los manuales de supervivencia
y repiten como un canto: “el estado tiene una función subsidiaria”
y repiten repiten y repiten
el mantra tántrico
la mentira de las mentiras
el escapulario de las tumbas
pero
nos queda el ravotril a borbotones
las ampollas de morfina gratuitas, públicas y de calidad
nos queda la lucha armada
y las reuniones molotoveras
para hacer germinar toda la poesía como una expulsión gástrica
donde podría hacer que sucedan hasta los versos galácticos:
hasta el temblorcillo colorino
♣♣♣
12
soñé con el levantamiento kawésqar
volcanes dándose vueltas en milenarios tornados satánicos
mientras el arca kercis definía la extranjería de los colores del mar
y los ríos se dibujaban arriba en el cosmos de las rocas
la arcilla de los lagos
el murmullo de las estepas
(tu cuerpo se estremecía con el fuego y no te veía)
y así una vez más se precipitaba la revolución futurista del alacalufe de orión
con sus diez mil naves cantando las
óperas del origen de los canales: la civilización de las luces: el estremecer: griterío
hacia el ritmo de las cavernas
que se inventan con la copulación del hielo
(tu cuerpo desnudo subiendo hacia el éxtasis y no te sentía)
todos eran modos de combates del fin del mundo
contra la catarsis de los dioses
como una estampida de guanacos sucediendo en los úteros cobrizos
de los pueblos de nácar
creando el espectáculo perpetuo de los desesperados
(precipitan tus ruidos y así nace la extremidad de las islas y te gimo)
soñé con el levantamiento kawésqar
hacia las estatuas de cenizas
que habían construido los extraterrestres en el inicio del norte: la magnificencia: el desprecio:
el arca kercis en la resistencia de los esclavos: la guerra de las leyendas así explotando como nubes de alcohol
sucediendo en una maratón de fogatas
en el transcurso de tu cuerpo ahí crepitando
(te toco)
♣♣♣
22
cataratas
aparecen cataratas en el fondo del jardín
dibujando ángeles
28
Jackie
tiene unos ojos gigantes verdes como el amazonas
preciosos
como el suspiro de los humanos dementes
pero lloran a través del temporal del silencio
y esto solo es un designio de su historia oculta
del porqué está acá en esta clínica diminuta
de ese 21 de diciembre
el día
que quiso matar a sus tres hijos y suicidarse
argumentando que ni todo el oxígeno de este planeta le era suficiente
para hacer renacer el torrente de sangre de su corazón morado
de sus piernas de mariposa
de sus manos drogadictas
Jackie
tiene nombre de primera dama
pero no les importó
a los animales que se la violaron cuando tenía 12 años
ni menos para su marido que le hacía el arte del boxeo
en su cara
cada quince días después de su virtuosidad en el Club de Golf
a pesar de todo eso
cantaba precioso a los gatos del recinto psiquiátrico
y contaba las historias de Oswald Denis
en sus periplos para transformarse
actor de Hollywood
que derrochan al arte como sueños que digan
los versos asiáticos
transcoloridos
como cantos del coro más allá del horizonte de espejos
Jackie quería morir
en los limbos del misterio y el excremento
como depuración de los azúcares
de sus ojos gigantes verdes como el amazonas
preciosos
como el suspiro de los humanos demente
♣♣♣
31
Hubo días que podía imaginar centenares de manifiestos
que construían catedrales y bodegas
con redondas cúpulas celestes que mostraban un teatro de payasos
también existían los pájaros blancos: la blancura de los blancos: los pájaros saliendo
y entrando en las lagunas lunares que hablaban: que recitaban pestañeos.
El poeta se arrodilla y ora:
Tú eres la Santa Marta de los Prostíbulos, diadema de los espectáculos que te reaparecen en los circos de magia de los hombres atléticos desnudos y chorreados con la inmensidad de las ondas galácticas, y los caballos de plata y las series de la cinematografía.
Diáfana hasta la negritud de las orgías, esas que provocan que nazcan las ángeles nubias en los arcos del inicio del paraíso de los cantos que provocan el caos de la anarquía prioritaria de los pensamientos azules.
Santa Marta de los genitales morados que desfilan en el nacimiento de Elizabeth Ann Short, y aunque te quiera recitar las canciones del nuevo amor, es inevitable la masacre de tu cuerpo. Martita telúrica, asesina viral, fanática de los videos de internet, momificadora de la pornografía.
Santa Martita, tetona jugosa, bisexual escondida, elevamos el canto de todos los nuestros, de toda la comunidad escondida elevada: exaltada: fundadora: rascacielos.
Repitan conmigo: Ruega por nosotros santa Madre de Dios, Para que seamos dignos de alcanzar las promesas de nuestro Señor Jesucristo.
Amén.
♦♦♦
Alberto Cecereu (Valparaíso, 1986)Poeta y profesor. Es Licenciado en Historia y Licenciado en Educación.
En sus inicios fue becario del Taller de Poesía de La Sebastiana, Fundación Pablo Neruda y miembro del Seminario de Reflexión Poética de la misma institución. En 2005 publica su primer libro de poesía, “Noticias sobre la Inmanencia” (Ediciones Altazor), y en 2016 “Los Exaltados” (Ediciones Altazor). En este 2018, publicará su plaquette “Los Ermitaños” en Trizadura Ediciones y prepara su próximo libro, “El Delirio” en Ediciones Filacteria para 2019.
En 2006 se le otorga la Beca a la Creación Literaria del Consejo Nacional de la Cultura y las Artes para escribir “Los Viajes del Druida” (que aún permanece inédito). Ese mismo año gana el Premio Enrique Lihn de la Universidad de Valparaíso.
Su poesía aparece en la Antología El mapa no es el territorio (Editorial Fuga, 2007), además de diversos medios de Chile y el extranjero. Es traducido al inglés y publicado en California Quaterly (Volume 2, Number 2) de Estados Unidos.
Es colaborador y columnista habitual de SITIOCERO (www.sitiocero.net), un espacio de expresión y comunicación de una comunidad diversa y plural, donde publica escritos concentrados en la crítica social y la reflexión de la realidad.
“Com toda a lama, com
toda a trama, afinal, a gente vai levando essa chama”.
Chico Buarque
Neste Maio único e tardio, Francisco Buarque de Hollanda, poeta-músico tão nosso, cronista dramaturgo da “Ópera do Malandro”, romancista e ainda actor, homem lindo, que tão bem exterioriza o eu feminino, foi distinguido com o Prémio Camões”, o maior troféu literário da nossa língua.
Está reacendida a questão iniciada com o Nobel a Bob Dylan, sobre o conceito canónico de Poesia. Como se pode pretender que a poesia escrita seja superior à cantada, quando sabemos que a mesma teve inicio exactamente na tradição trovadoresca?
*Quero inventar o meu próprio pecadoQuero morrer do meu próprio veneno
«A luz não é mais do que um remorso. Construíramos um mausoléu imaterial para os nossos mártires sobre uma ideia que nunca foi.» A barata jantava os restos de um animal morto em concorrência com outras, um número indeterminado que chegava com atraso ao festim. Continuar a ler “EXCERTO DE “Barata, minha barata” – de Alberte Momán Noval”
198 ANOS DO NASCIMENTO DE BAUDELAIRE A 9 DE ABRIL DE 1821
“Je suis comme le roi d´un pays pluvieux, Riche, mais impuissant, jeune et pourtant très vieux”
Ampliou-se há 198 anos em Paris na rue Hautefeuille, 13,
Rutilâncias em breves liceus,
Em vidas dissolutas, nos absurdos de ameaças sangue, sonhos em borboleta, inegável a estadia dos deuses,
Em 1839 amou em para-brisas Jeanne Duval, de vícios contados e maturados, Continuar a ler “A POESIA DE Cecília Barreira”
Considerações sobre Yuval Harari, o Filósofo da moda no mundo global
Yuval Noah Harari, israelita, professor de história em Jerusalém, incendiou o mundo com as obras já traduzidas em português Homo Deus, História Breve do Amanhã e 21 Lições para o Século XXI. Com pendor filosófico e profético justifica as suas argumentações com o perigo das tecnologias e o medo da invasão de dados pessoais através da net e das redes sociais.
As contradições nos seus livros são imensas e até passam por branquear a figura de Hitler, comparando-o a um “humanista evolutivo”. O único alvo deste historiador especializado em Idade Média são as altas tecnologias. Em relação a esse aspeto, Harari sem o mencionar tenta matar Sartre e os existencialistas que acreditavam no poder decisório dos homens. Continuar a ler “YUVAL HARARI, O FILÓSOFO DA MODA NO MUNDO GLOBAL- por Cecília Barreira”
Cheguei, apeei do cavalo e lá estava ele, balançando, pendurado na velha figueira que como mão que protege, estendia os galhos sobre o rancho. O cusco me recebeu ganindo alvoroçadamente como que querendo me mostrar o dono enforcado. Continuar a ler “RÉQUIEM PARA ADALBERON – Claudio B. Carlos”
“Existe no Universo, um ponto, um sítio privilegiado, de onde todo o Universo se desvenda”
Louis Pauwels /Jacques Bergier
(Work in Progress)
Strategia del Ragno. Devo ao Cinema a boa ventura de, numa morna tarde de primavera, me ter entreaberto a porta da mansão literária de um escritor de sobrenome Borges. E com uma senha codificada em língua italiana.
Atento ao letreiro/genérico do filme supremo de Bernardo Bertolucci, datado de 1970, reparei que o soggetto partira de um conto de um autor, para mim, de todo ignoto. Consultando, curioso, a ficha técnica da fita, verifiquei que a narrativa tem por título Tema del traidor y del héroe, a terceira da seção Artificios do livro Ficciones, editado em 1944.(1) Continuar a ler “A BUSCA DO ALEPH BORGEANO – por Danyel Guerra”
Vida, Mente, Universo, Consciência, Tempo, Espaço… Alguém sabe o significado dessas palavras? Será que dentro de nossa condição humana é possível saber? Um grande número de pensadores e filósofos através dos tempos vem tentando desnudar os mistérios da vida e até então ainda não os conhecemos. Talvez seja porque temos usado a ferramenta errada, qual seja – o pensamento. Em especial a civilização greco romana posterior a Sócrates vem atribuindo um valor excessivo à razão, ao intelecto e seu produto, o pensamento lógico analítico. Ninguém criticou mais esse tipo de conduta do que Nietzsche, que costumava dizer que a decadência começou com Sócrates, exatamente por isso. Com séculos e séculos de condicionamento foi ficando cada vez mais difícil pensar por outra via que não a lógica, cujo funcionamento corresponde ao hemisfério esquerdo do cérebro. Continuar a ler “PRISIONEIROS DO TEMPO – por Ester Fridman”
La poesía involucra, entre varios elementos constitutivos, a los sentimientos, sin embargo estos no hacen la poesía. La poesía es una manera, o un camino, como tantos, de acercarse a la Verdad, a la Naturaleza, al Cosmos, y a las emociones humanas, aunque su único fin no sea solamente esos. Los antiguos griegos cantaban (con un objetivo didáctico) acerca de sus héroes y de sus dioses convirtiéndose sus obras en clásicos. Para ellos la voluntad divina y el Hado (Destino) conformaban la Verdad y la justificación de su existencia. Lo novedoso en la poesía tampoco está en el lenguaje, en imágenes que abordan los variados temas si no en el “nuevo ojo” que se sirve del lenguaje poético y de sus correspondientes imágenes para hacer de los temas y motivos exposiciones originales que se mantienen entre lo “clásico” y lo “contemporáneo. Con respecto a este último se puede apreciar los postulados del relativismoestético (también denominado”estética historicista); este es una escuela de pensamiento en torno al arte, ligada al Postmodernismo y difundida especialmente en los países del tercer mundo. Esta escuela de pensamiento considera que la percepción y el juicio estético de un individuo frente a una obra de arte, son únicamente producto de la inmersión del mismo individuo en una cultura específica.Continuar a ler “(DI)VAGANDO SOBRE LA POESÍA – por Federico Rivero Scarani”
Krzysztof estava atordoado. Não entendia porque Jadwiga ainda lhe delegava aquelas tarefas aparentemente fáceis, como comprar no mercado um Baranek Wielkanocny. Poucas coisas ainda eram fáceis para Krzysztof, mas Jadwiga parecia não entender ou não aceitar que assim fosse. Seu homem podia ser simples e até podia, àquela altura da vida, estar um pouco confuso, mas já havia construído mais casas do que era capaz de contar, abrigando dos rigores do inverno velhos e moços, letrados e iletrados, católicos e ateus; e mesmo sem ter jamais conhecido essas gentes, rezava diariamente para que vivessem em harmonia, pois, na sua visão, apenas assim poderia considerar completo seu trabalho. Continuar a ler “BARANEK WIELKANOCNY – por Francisco Fuchs”
Queria voar.
Poeira, persianas, vassoura de palha, vôos razantes pela casa,
cabelos de palha e vento, vassoura no canto da sala calada, varrida.
Quatro panelas no fogo, boiando no espaço
cansaço.
Quatro panos de prato, quatro panelas que amofinam
quatro panos pra lavar.
Queria voar.
Meu primo ganhou de natal um arco-e-flecha. Treinávamos pontaria em latas, galinhas e árvores. Fizemos torneios. Ele era mais velho que eu, treinava mais e vencia sempre. Aí me convenceu a colocar uma maçã na cabeça. Se eu pudesse, contava como é sentir aquele zunido da flecha vindo, aquele friagem que amolece a gente e o barulho dos ossos da cara se rebentando enquanto a flecha entra: é tudo muito rápido.
♣♣♣
Meu Primeiro Fórmula Um
A mãe pediu que eu cuidasse do mano, ela ia sair. Ele ainda bebê de carrinho e eu sempre quis ser piloto de fórmula um. Os móveis atrapalhavam muito o meu desempenho. Tanto foi que experimentei empurrar o meu carro escada abaixo. Até hoje juro que foi acidente. Continuar a ler “PEQUENOS CONTOS -II de Jaime Vaz Brasil”
A espiritualidade está na moda. Para onde quer que nos viremos, uma oferta praticamente infinita de “mestres”, workshops, eventos, livros, encontros, cursos… acenam-nos com uma vida mais “espiritual” ou, pelo menos, mais feliz e mais leve. “Mestres”, em formatos praticamente infinitos, musculados, barbudos, sérios ou divertidos, inflamados ou seráficos, condescendentes ou implacáveis, prometem resolver os nossos problemas a troco de alguns euros. Workshops e eventos sobre temas inimagináveis, desde a leitura de auras até ao alinhamento dos chakras, passando pelas mais diversas terapias de cristais garantem eliminar ou, pelo menos moderar, as nossas dúvidas existenciais. Escolas de Ioga, orientadas por instrutores em poses acrobáticas e vestidos de branco imaculado prometem a libertação de todas as nossas tensões se conseguirmos poses espampanantes. Escolas ou grupos espirituais dedicam-se a interpretar, numa linguagem impenetrável e metafórica os segredos dos Vedas, dos Upanishads, do Corão, da Cabala…
Na esfera do show-business, muitas “celebridades” fazem da “espiritualidade” um instrumento de auto-promoção. Quem não recorda a adesão de Madonna, Britney Spears, Ashton Kutcher, Demi Moore, David Beckham, Guy Ritchie…aos estudos da Cabala (possivelmente, sem fazerem a menor ideia do que isso seja). Por todo o lado, verifica-se um aproveitamento, muitas vezes oportunista, de tradições espirituais do oriente que são rapidamente transformadas em caricaturas do original, onde os objectivos centrais de transformação interna são levianamente substituídos por rituais e cerimoniais pseudo-místicos, uma atmosfera lamechas de beijos e abraços teatrais, uma vocabulário cor-de-rosa e piegas (imediatamente abandonado à primeira contrariedade), um cortejo de vestuário exótico e extravagante, um espaço de convívio que engane o vazio do quotidiano, um lugar simpático para iniciar talvez uma relação romântica de ocasião, uma atracção sensual pelo carisma do “mestre”, a mera curiosidade diletante…, no fundo, o culto da forma em todo o seu esplendor tão típico dos tempos modernos.
Aunque no sienta tu amor
y tus lágrimas se sequen
en mi ineludible olvido,
con el aflojo de una flor
que recién arrancada desconoce
su fatal sino, moriría si así averiguara
cuánto me has querido. Continuar a ler “VERSOS IBÉRICOS de Juan Carlos García Hoyuelos”
rios de água cadente enclausuram olhares provocadores
… …
tempestades a coberto de ousadias
… …
filmes absurdos de diálogos silenciados
pelo sino da memória cansada
… …
desafios gotejantes emolduram
discursos correntes sem novidades
… …
a matemática prossegue a sua análise do ontem
depois do fracasso de amanhã ter esquecido o hoje Continuar a ler “POEMAS DE José Luís Outono”
Vou-me vestindo de palavras.
Palavras à solta,
De rédeas curtas.
Recuso as esporas, as farpas,
Os trajes de luzes e os ferretes.
Leio-me nos versos soltos, sem edição,
Sem filtros ou construção.
Não conheço regras, nem métricas.
Vou-me despindo com palavras,
Em possíveis poemas
Na dobra da onda
que sacode a praia
trazendo avalanche
de água e de sal;
ali pesco o sonho
de vida sereia,
castelo na areia,
o mar meu quintal.
Na sombra forjada
do olho cerrado
chamando a visita
do Lorde Morfeus;
ali teço sonhos
de vida sonhada,
à qual pago nada,
e crio outros eus.
Desperto, acordado,
vigiando ou sonado,
atraio os dormires
à vida vivida
e tenho então sempre
um sonho pescado
andando ao meu lado:
união dividida.
♦♦♦
Marcos Fernando Kirst é jornalista e escritor, residente na cidade de Caxias do Sul (RS). É colunista do jornal “Pioneiro”, onde publica crônicas semanais literárias. Foi Patrono da Feira do Livro de Caxias do Sul em 2010. Em 2011, ganhou o Concurso Anual Literário Municipal de Caxias do Sul com a obra poética “Em Silêncios”. Integra a Academia Caxiense de Letras desde 2012, onde ocupa a cadeira número 11. Ganhador do Prêmio Açorianos de Criação Literária 2014 com a novela “A Sombra de Clara”, também laureada com o Prêmio Vivita Cartier, em Caxias do Sul, em 2016. Já lançou 21 livros.
Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco conheço tão bem o teu corpo sonhei tanto a tua figura que é de olhos fechados que eu ando a limitar a tua altura e bebo a água e sorvo o ar que te atravessou a cintura tanto tão perto tão real que o meu corpo se transfigura e toca o seu próprio elemento num corpo que já não é seu num rio que desapareceu onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco
Mário Cesariny, in “Pena Capital”
Poeta e pintor, considerado o principal representante do surrealismo português. É de destacar também o seu trabalho de antologista, compilador e historiador das atividades surrealistas em Portugal.
Um homem fora de seu tempo. Eis a melhor definição para Cesariny.
Nasceu em Lisboa em 9 de agosto de 1923 onde também morreu em 26 de novembro de 2006.
Foi em 1947 ao lado de figuras como António Pedro, José Augusto França, Cândido Costa Pinto, Vespeira, João Moniz Pereira e Alexandre O´Neill, como forma de protesto libertário contra o movimento do neo-realismo, dominado pelo Partido Comunista Português, ao mesmo tempo que também não alinhava com o regime salazarista, que cria o seu surrealismo português.
Cesariny adota uma atitude estética de constante experimentação nas suas obras e pratica uma técnica de escrita e de (des)pintura amplamente divulgada entre os surrealistas. A sua poesia é animada por um sentido de contestação a comportamentos e princípios institucionalizados ou considerados normais nos campos do pensamento e dos costumes. Ao recorrer a processos tipicamente surrealistas (enumerações caóticas, utilização sistemática do sem-sentido ou do humor negro, formas paródicas, trocadilhos e outros jogos verbais, automatismo, etc.) alcança uma linguagem que encontra o equilíbrio entre o quotidiano e o insólito. Nos últimos anos de vida, desenvolveu uma frenética atividade de transformação e reabilitação do real quotidiano, da qual nasceram muitas colagens com pinturas, objetos, instalações e outras fantasias materiais.
No Surrealismo encontrou o espaço de liberdade criativa que procurava. Usava o sonho, a imaginação, o amor, assentes na técnica do automatismo psíquico e do acaso, sem imposições estéticas ou morais. Tudo de acordo com a sua personalidade inquieta, polémica, subversiva. Em Portugal exercia sua vontade de transgredir e de desafiar a poderosa máquina da ditadura. Queria ser livre no seu país. “Eu acho que se se é surrealista, não é porque se pinta uma ave, ou um porco de pernas para o ar. É-se surrealista porque se é surrealista!”.
Sua poesia é um registro essencialmente surreal sustentado em jogos verbais, trocadilhos, paródias, humor negro, nonsense e enumerações infindáveis. Caracteriza-se pelo vivo e lúcido sarcasmo, pelo impetuoso e angustiante lirismo, assente numa linguagem rica de expressões antagônicas, de imagens, e de sugestões peculiares.
Famosa é sua frase ao final das conferências e palestras para as quais o convidavam:
– Estou num pedestal muito alto, batem palmas e depois deixam-me ir sozinho para casa. Isto é a glória literária à portuguesa.
Sobre o que escrevia afirmou: “Existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser e não deixam de ser apercebidos contraditoriamente.”
(Passagem do “Segundo Manifesto Surrealista” (1930), de André Breton e selecionada por Mário Cesariny para integrar o “Manifesto Abjecionista”).
Em suas pinturas foi um autor espontâneo e insurgente, que bebia do misticismo e da magia das suas influências, dando primazia à cor e à anarquia figurativa. Pinturas, colagens, ‘soprografias’, e cadavres-exquis (que consistia na elaboração de uma obra por três ou quatro pessoas, num processo em cadeia criativa, em que cada um dava seguimento, em tempo real, à criatividade do anterior, conhecendo apenas uma parte do que aquele fizera) fazem parte da sua obra plástica. No entanto, a pintura e a poesia foram sempre aliadas: muitas obras incluem palavras recortadas, conjugações de textos e imagens, e outras formas experimentais.
Para Cesariny o amor era “um desmesurado desejo de amizade”, em que “o outro é um espelho sem o qual não nos vemos, não existimos”, e “a única coisa que há para acreditar”.
O poeta defendia que se pode morrer de amor, mas considerava que “também se pode morrer de falta de amor”.
O Surrealismo de Cesariny é uma forma de insurreição permanente, na arte e na vida.
♦♦♦
Marilene Cahon, brasileira, professora, escritora, poetisa, cidadã caxiense, autora dos quinze volumes que deram a Caxias do Sul o título de Capital Brasileira da Cultura em 2008. Membro da Academia Caxiense de Letras a qual presidiu no biênio 2012-2013, ocupando a cadeira de número 15.
Cependant, il ne saurait s’agir d’un récit à clés, car nul ne possède la clé des songes. P. Debassac, Le lion et la demoiselle, Avertissement.
Sou um leão da cova dos leões de Daniel, desenterrado e fixadao em pedra andaluza.
Os meus onze outros irmãos ladeiam-me, suportando nós todos esta salva de água puríssima, estendida à sede e ao cansaço. Aqui, nesta Alhambra que nos acolhe no presente, eles são leões de pedra sem alma.
Mas eu, e eu só, sou um avatar, uma reencarnação, um clone ao menos (como vai alguém saber mesmo quem é, depois de Blade Runner?), do rei dos leões na cova dos leões. Creio que foi para minha proteção que o escultor me fez exatamente igual aos outros onze. Aparentemente, não tenho nenhum traço distintivo, posso passar despercebido. Há, é certo, dois irmãos meus com um sinal na fronte. Um triângulo, como conviria. E eles seriam os representantes das duas tribos eleitas, a de Judá e a de Levi. Mas a minha estirpe é a de Salomão, portanto anterior aos cismas…
Aqui na Hispânia para onde me trasladaram, tenho vivido incógnito e muito melhor. Deixem outros deliciar-se com a descoberta desses dois irmãos do reino dividido.
II
Sou o leão da cova dos leões de Daniel, já vo-lo disse. Mas isso, também vo-lo confesso (mais que confesso quero proclamar, e deixar em registo), de modo nenhum me envaidece. A vaidade é apenas um adorno supérfluo e sempre ridículo dos que não têm valor real. Mas não falemos dessas futilidades.
Apresento-me sem cartão de visita. Os cartões de visita são materializações curiosas dessa mesma vaidade de que falávamos. Todavia, podem ser até elegantes: quer na escolha subtil dos dizeres, quer na apresentação gráfica (do mesmo modo que podem ser horríveis e a consubstanciação do novo-riquismo, da ostentação, etc.). Só a elegância atenua um pouco o grave pecado da vaidade.
Perdoai-me que divago.
É a idade (são muitos séculos ao serviço…). Não sem que diga algo a propósito desse lugar comum que, muito contra minha vontade consciente, saiu dos arquivos do que se diz para o discurso que eu mesmo disse… Deplorável quando se fala pela voz e pelas ideias dos outros. Pois bem. Não acho que os velhos sempre se repitam porque desmemoriados. Alguns, sem dúvida que sim, será por esse motivo. Mas outros (devo dizer que os melhores), repetem (esbracejando contra o Tempo) porque querem gravar, para si e para os demais, memorabilia, os feitos e os factos que não suportam ver perderem-se pelos ralos da memória – pessoal e coletiva.
Certamente um dono de obra velho (teria sido o vizir judeu Ibn Nagrela?) mandou um jovem e possante escultor dar-nos forma neste pátio, para que ficássemos imortais. Pigmaleão, o escultor. Sempre apaixonado pela sua obra. Sinto que fui esculpido pelo amor, não apenas com amor. O que viria depois já não o recordo. Ou não importa. Porque as estátuas permanecem, e os escultores desaparecem. Como dói a perenidade da estátua.
III
Sou, pois, já me conheceis, o leão-rei da alcateia que poupou a vida do profeta, porque connosco falou o Espírito Santo. E que não tivesse falado. Certamente falou de várias formas: pois antes de nos ter dirigido a Palavra, já nós O ouvíamos sem que nos falasse. O Espírito Santo é, da Santíssima Trindade, certamente a mais subtil e complexa das Sagradas Pessoas. Ele é o Paráclito: ao mesmo tempo consolador e defensor, advogado mesmo em tribunal. Pois intercedeu por Daniel que injustamente havia sido condenado, e encontrou nos reis do reino animal, nos leões, pleno vencimento de causa.
Obviamente que Daniel merecia ser poupado. Desde logo, porque o suposto “crime” que teria praticado não era crime algum, pelo contrário apenas o livre (ontologicamente livre, só comprimido por normas e atos eles sim criminosos) exercício da liberdade religiosa, como se viria a dizer mais tarde, desde logo nesta Península Ibérica e nesta Europa no séc. XXI, de onde vos falo.
E sim, sou um leão velho, velhíssimo, primordial quase, mas também e afincadamente, conscientemente, um defensor dos Direitos Humanos. Não por moda, nem contraditoriamente, achando que tudo o que é a meu favor o é, e tudo o que me não convenha contra eles se revelaria.
Direitos Humanos, que um leão pode bem defender. Sem cuidar sequer de Direitos dos animais (contos largos, contos largos, em que não me vou embrenhar agora). Aliás, todos já entenderam que eu não sou um simples animal. O mítico leão nunca foi um simples animal. E um animal não é um simples animal…
Mas voltemos aos Direitos. É uma questão que ainda se coloca, que se coloca e colocará no futuro próximo decerto ainda muito, porque os Homens se desumanizam, e não respeitam essas manifestações elementares da sua dignidade enquanto Pessoas. O problema nem sequer, em tese, se deveria pôr. Uma sociedade minimamente civilizada não deveria mesmo ter essa matéria como tema, muito menos como pauta de atualidade. Tais adquiridos deveriam ser naturais. Dever-se-ia viver os Direitos Humanos como quem respira.
Mas isso é com outros. Não estamos nessa sintonia, no momento. “Traten otros del gobierno”, escreveu Luis de Gôngora. Embora uma canção de Paco Ibañez tenha chamado a atenção para os perigos da alienação… Bem sabemos, bem sabemos… Têm ambos muita razão, no meu entender de quem já viu coisas demais.
Entretanto, quando me petrificaram, aqui no Império da Andaluzia, terra de coloridos jardins, frutos suculentos e sombras amigas e suaves, entendi que não somos apenas uma vida. Era, aliás, fácil compreendê-lo, tendo a reminiscência do tempo da Babilónia.
Como vos disse, tenho gostado deste tempo de agora (tantos séculos já), apesar de preso a segurar esta taça de límpida frescura.
Só que a prisão é ilusória. Quando andava pela terras do Médio Oriente, também me sentia um leão enjaulado. Entendes que um leão condenado a devorar condenados é de todos o principal prisioneiro e com a pena mais cruel? Eles encontravam a liberdade na morte. Nós em cada morte que obrigados perpetrávamos, era um novo grilhão que acrescentávamos à nossa longa cadeia.
IV
Sou o leão, quase sem rosto, com um impercetível olhar esfíngico. Isso não me despersonifica, contudo. Há uma certa bonomia satisfeita (mau “satisfecho” é só o “señorito” de Ortega… e esse é realmente muito mau) nesta minha situação presente. O tempo angustiado das sagas, epopeias e tragédias terminou. Na Idade dos Homens (que hoje se arrisca a dar lugar a uma idade pós-humana, desde logo desertificada do que de melhor eles inventaram, os Humanismos – pois se superaram, numa reinvenção), o melhor é não perder o pé no real. Manter a serenidade, e aproveitar minimamente a vida, em geral tão fugaz, tão traiçoeira até. Um ar sereno e até aparentemente feliz (ainda que de uma falsa felicidade, porque estulta e enganada, não consciente) ainda é o limite máximo que nos é dado viver. Como há um abismo entre o sangue que por mim escorria lá nas terras de Babel e a pétrea bonomia em que poso para a posteridade como representante de uma das doze tribos de Israel… Ironia do destino…
Falava em aproveitar a vida tão fugaz. Vida fugacíssima a dos que por aqui têm passado. E nem sequer me refiro aos tais “turistas” dos últimos séculos, e em especial destes últimos. Não entendi bem ainda o que julgam eles que captam quando apontam para nós uns aparelhos, por vezes luzentes. Disseram-me que a nossa imagem entra nesses artefactos e pode ser depois reproduzida. Mas que interesse terá possuir-se uma imagem bidimensional de algo aparentemente tridimensional, embora, como sabemos (segredo nosso) tenha muito mais dimensões? O nó da questão estará certamente na posse. Os Humanos (e os animais também) gostam de se apropriar de coisas (até de pessoas e ideias – mesmo de divindades), e de coisificar entidades não reificáveis.
Os Humanos estão alucinados com algumas miragens: o rei que queria matar Daniel tinha a febre do poder; os turistas são benévolos doentes da maleita do possuir, até paisagens, lugares, memórias. Há outros venenos que os possuem, mas esses são normalmente filtros ainda mais complexos, ardilosos e mesclados de virtude e vício, e deixá-los-ei para eticistas mais experimentados. Afinal, eu não conheci senão o sangue da cova dos leões e a placidez da sombra deste pátio.
V
O leão é também símbolo da realeza, e uma realeza sacra a que não podemos deixar de associar o rei Salomão, cujo nome consta do nosso complexo escultórico. Nem precisava de tal ocorrer…
O leão (não me caberia a mim recordá-lo, mas vivemos tempos ignorantes), rei da criação, espécie de lugar-tenente de Adão para os animais aparentemente não humanos (porque sabemos que os animais falam, e se falam também pensam – e é óbvio que sentem: não teve Ricardo de Inglaterra um “coração de leão”?) é senhor do porte imponente e altivo (sem presunção, mas por natureza e dignidade própria) que todos lhe conheceis. Mas relendo estas palavras sinto-as não pomposas, mas parcas. A nobreza, o oiro, a magnânimidade, a independência criativa e o rasgo são traços nossos. Acrescentaríamos até a palavra soberania, se ela não se encontrasse hoje tão esfacelada e desfigurada em polémicas e dogmas muito restritos. Aliás, da definição que atribuem a Jean Bodin pouco se aproveitaria mesmo para o que é o poder e a responsabilidade do rei leão.
De qualquer forma, é um arquipélago de conotações que se concentra na imagem do leão. E tem de haver um qualquer choque na associação do leão com símbolos de conotação diversa.
Por exemplo: o leão é um grande felino, o felino dos felinos. O arquétipo do Felino. Não é um gatinho. Um leão feito gatinho doméstico brincando com crianças e uma bola multicolorida, ou um leãozinho inofensivo, sem garras e quiçá sem dentes, embalado no colo de uma moça como se fora um urso de peluche… Pior ainda o último. Não, não sei qual dos dois o pior, o mais descaracterizador.
Não posso sequer pensar nessas imagens…
Claro que muito degradante é o velho leão cansado a quem todos vão provocar ou mesmo molestar. Ou o leão desses circos arcaicos de que o malabarista escarnece, obrigados à pantomina e ao chicote.
Essas são páginas tenebrosas da nossa gente. E, contudo, tal como ocorre com os Humanos, os leões podem submeter-se por vontade própria. É possível a servidão voluntária, de que falava La Boétie. Complexa atitude, pouco leonina, e, convenhamos, certamente pouco humana também… Falando da dita “natureza humana”, na verdade um arquétipo tão pouco físico, tão pouco “natural”, romantizado, ou tornado estoico…
VI
Hoje, no universo das imagens fictícias ou técnicas, aquela boa parte do romance (ou de qualquer género ou subgénero de ficção) que consistia na descrição (de paisagens, interiores, roupas, ou até de traços humanos físicos), fica em algum apuro, em crise, em perda. Como pode a paleta linguística competir com as imagens virtuais, facilmente criadas ou manipuladas por meios computacionais?
A moça que afaga o pequenino (e indefeso) leão não tem na ficção um rosto. Tem-no, nas imagens oitocentistas ou dos começos de Novecentos, pela mente e pelo coração do profanador fotógrafo, que lhe emprestou o seu olhar fatal.
Mas a decisiva pergunta é como o leão de pedra consegue saltar para a foto, preto e branco amarelada, dessa moça com leão.
Aqui, no pátio a que justamente damos nome, sou um austero ainda que (creio) simpático monumento de pedra, que acabou de se restaurar há pouco mais de meia dúzia de anos, após uma década de polimentos e restauros. Sinto-me rejuvenescido, lavado, livre de poeiras e excrescências. Foi um ritual longo, esse, mas valeu a pena. Todos os rituais purificadores (que nos alijam de adjacências e restituem a depuração) elevam, assim como todos os que nos carregam de adornos nos rebaixam e pesam, ainda que pensemos o contrário. São palavras de um rei sem coroa.
Retirado do pátio, quando chegou a minha vez, tive uma espera de recreio desta petrificação, que equivale a um dos castigos do Hades helénico. Voltei ao purgatório em que, fixo, vou tentando redimir a vagância (ainda assim confinada) na cova antes de conhecer aquele que tinha no nome ser apenas Deus o seu juiz.
Digamos que fui instrumento da mão de Deus, poupando o profeta, e agora continuo espiando e redimindo-me pelos séculos afora, dos tempos em que, também enclausurado, era involuntária máquina de opressão e morte.
Não consigo deixar de pensar na fotografia de que falámos. Podemos interpretá-la de várias formas, como diverso significado pode ter esta minha guarda no pátio.
Ela parece poder também dar uma esperança de um mundo paralelo, em que adquira de algum modo vida, e encontre alguma forma de afeição e a possa irradiar também. Todos sabemos como o leão pode ser o cordeiro, e vice-versa. Basta ler o Apocalipse.
Os tais turistas, que são quem agora mais nos visita, mesmo os letrados e invetigadores que com um outro olhar de quando em vez por aqui passam, não querem de nós sentimentos; no máximo dos máximos nos tributarão admiração.
VII
Ora eu, leão de Beltessazar (assim lhe chamaram também), estou há séculos à espera de uma dupla de dons, que alguns diriam inatingível: a Liberdade e o Amor. Claro que são conceitos (“são conceitos!” Que digo eu? Como se o fossem antes de mais…) muito polissémicos…
Que saber disso para o poder desejar? Quantos filósofos se passaram neste pátio, quantos poetas, quantos senhores do poder, da paz e da guerra, quantos amantes… Todos por aquelas janelas nos fitaram ou deambularam em poses diversas em torno desta fonte da vida (fons vitae). E alguns cuidaram saber de uma cousa e da outra, e certos não pensaram vivê-las, ainda sem as pensarem muito.
Não importa: algo me segreda que são ambos objetivos que, necessitando embora de um contexto favorável (porque dependem de outros, e mesmo de sociedades realtivamente despoluídas e saudáveis, em que sejam possíveis), dependem sobretudo de cada um. Portanto, no meu caso, de me transfigurar, porque pedra, ainda que segurando uma taça de vida, não é argila para moldar uma coisa nem outra.
Mas, insisto: há milagres. Eu já fui um carniceiro. Vede-me ainda feroz e pulsante no quadro de Rubens.
E nesse século XIX, enquanto estava o meu invólucro aqui em Granada, posso ter momentaneamente visitado essa foto pretensamente exótica. Mas, evidentemente (não quero ser mal entendido), essa moça, cujo rosto nem sequer vi, não é nem o meu ideal de liberdade nem de amor. Olhem como ela me teria (se aquele leão tivesse realmente sido eu) de algum modo preso, aprisionado, domesticado. Estou nas suas garras. Talvez me pudesse dar a afeição superficial que se pode transferir para um qualquer boneco mais ou menos animado, ou… animal de estimação. É uma afeição (se o for…) de algum modo pueril, fútil, decorrendo decerto de um fundo inespecífico de carinho potencial que em mim terá fortuitamente poisado. Muito provavelmente animado pela relativa excitação e vaidade de se poder ter ao colo um leãozinho – coisa aparentemente paradoxal, e exótica.
Esse século XIX de uma possível (mas improvável, claro) liberdade condicional e condicionada é uma advertência contra a falsa liberdade e certamente também contra o falso amor. As múltiplas falsas liberdades e os inumeráveis traiçoeiros, ilusórios e erróneos amores – de miragem e de servidão também.
Digamos que numa primeira recusa, surrealista, mais me tentaria inverter as posições da foto. Pois que a figura humana é indefesa e o leão é magnânimo e não agressividade pura, pois que ela seria afinal a imagem do cordeiro, então seria o leão que deveria tomar conta dele. Por isso a moça poderia ser consolada, embalada, e (aí é que está o maior problema, de novo: e como ele hoje ressoaria!…): pelo menos implicitamente aprisionada.
Decerto é esta tentação nada mais que o meu complexo de carcereiro da cova dos leões, que emerge, que vem ao consciente. Em Herberto Helder não há um cão que tinha um marinheiro? A princesa de São Jorge e o dragão de Paolo Uccello não traz a besta por uma trela? E não é o leão rebaixado a glutão na Dame à la Licorne e a criatura pusilânime no Feiticeiro de Oz? Há certamente forças superiores às do leão, e se as heterodoxias referidas são permitidas, mesmo afrontando a dignidade leonina, bulir com o Feminino seria muito mais sacrílego. Não se deve tocar em mistérios muito profundos.
Além disso, entrar, por que forma fosse, nessa dialética do senhor e do escravo nunca foi libertação. E muito menos ainda, a fortiori, Liberdade. Amor tampouco.
Que imagem, então, colocar na minha mente, como visualização do que muito se deseja, e espera que venha a concretizar-se, pelo turbilhão magnético dessa força do querer, que alguns consideram invencível e infalível. Confesso que o não sei, nunca o tentei.
VIII
Shiuuu!… De novo estão a chegar trabalhadores de reparação do pátio. É uma manutenção de rotina, mas isso nos permitiu estas reflexões, sem ter de afivelar o sorriso esfíngico. Sim, só o alívio da prisão e das invasões bárbaras dos visitantes, com suas fotografias incessantes, me permitiu este desabafo.
Agora, honestos pedreiros e afins mesteirais virão embelezar o pátio, para que resista a mais uns séculos de reiterada e consentida profanação.
Sei que te devo ainda umas palavras, sobre o meu sonho, acalentado dia após dia, mês após mês, ano atrás de ano, sobre liberdade e amor.
Mas é impossível falar disso cercado pela indiscrição destes bravos empreiteiros. Requerer-se-ia recato, uma brisa de fim de tarde, e que eu saísse mesmo daqui, passeando pela savana, olhando o por-do-sol além dos embondeiros.
Não é muito importante. As minhas palavras seriam sempre as de uma metamorfose que está congelada há tempo demais na mesma fase. A borboleta tarda a revelar-se.
Pode ser que alguns destes trabalhadores me venha a transportar para um outro lugar. Oxalá não para defininhar num museu. Pode ser que uma outra imagem se projete sobre mim, numa espécie de upgrade, e eu me venha a volver em leão alado mesmo, concretizando o sonho dos meus primos assírios. E depois pelo Leão de São Marcos aqui mais perto, em Veneza.
O leão da cova dos leões do justo Daniel volvido o símbolo do Evangelista – só mesmo na confusão pós-moderna…
Não. Sejamos mais comedidos.
Há na mitologia hodierna de Nárnia, de C. S. Lewis, um bom leão, Aslan. Pode ser que, no seu enorme coração, ele se apiede de mim, e me venha a conceder as graças que eu não mereço, eu que fui o leão da cova dos leões, e também leão da coroa dos leões na resplandecente Granada, tierra sonãda por mi.
Isso será para mim melhor, certamente, que a justiça dos Homens (ou a sua História, outra espécie de tribunal), que não apenas continuam a caçar leões, como a caçar-se entre si. Por mim, afinal, só espero não acordar um dia num jardim zoológico, ou, pior ainda, como leão decorativo em entrada de casa de novo-rico.
♦♦♦
Paulo Ferreira da Cunha – Professor Catedrático e Director do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
A origem franca da dinastia wido e da família Cavalcanti em Colônia, reino franco – século VIII
Ao tentar analisar a origem franca da família toscana Cavalcanti não mais como uma lenda, mas como uma possibilidade real, partimos em busca de traços e vestígios concretos desta provável e muitas vezes repetida origem.
Depois de muito pesquisarmos e termos realizado vários trabalhos prévios nos deparamos com um local possível e sugestivo para a mais antiga proveniência dos membros desta família italiana, como supunha seu genealogista do sec. XV Giovanni di Nicòlo Cavalcanti – localidade próxima de Colônia, no coração do antigo reino franco, com muito antiga Igreja dedicada a S. Gilles – lugar onde comprovamos desenvolvera-se a família dos condes de Hesbaye da dinastia wido, dinastia que sabíamos esteve muito presente na Toscana.
Pequena Igreja por nós localizada leva ainda hoje o nome de São Gilles ou Santo Aegidius precisamente localizada entre Colônia, Mannhein, Aachem e Radisbona, coração do reino franco– atual localidade deSeckenhein-Mannheim (“Neustadt on the Wine Route” – Rhineland-Palatinate) – e fez parte no passado de antiga aldeia que já aparece referida no “Codex Lorsch”em 766
A cidadezinha atual onde se encontra a igreja é representada ainda por um símbolo muito interessante – um brasão com a própria imagem de Santo Egídio (S. Giglio, Saint Gilles), seu cetro indicando a região próxima de Neustadt – a Cidade Nova – cidade onde teria se localizado ainda um antigo ramo dinástico rural oriundo de corte, o chamado “Brunchwilre”.
O brasão da cidade com a imagem de santo Egídio:
Por nossas pesquisas em fontes locais comprovamos que essa Igreja de St. Gilles fora doada pelo Imperador Luis, o Piedoso, à Abadia de Lorsch em 823 – registrado neste documento que a igreja teria sido anteriormente “comprada pelo rei ao conde Warin”.
A notícia deste documento no começo do século IX indicando a transação de propriedade entre o rei franco e os condes Warin é fato para nós muito significativo, pois comprova o local mesmo da origem desta importante dinastia wido – dinastia que dará origem aos reis franceses robertinos e capetos – e da qual surge, entre várias outras, a família Cavalcanti na Toscana.
Deste modo, ficaria comprovado que a genealogia da família Cavalcanti entre outras se desenvolvera no coração mesmo do reino franco e a partir dos mesmos ascendentes dos condes de Hesbaye – cristãos muito religiosos, conversores, martirizados e santificados, que no século VII haviam sofrido intensamente pelos conflitos ocorridos na mudança de poder do período merovíngio para carolíngio – conflitos politicamente cruéis para esta dinastia cristã, então sob os desígnios do decidido prefeito do Palácio da Neustria, Eboim.
Entre estes homens santos e muito cultos desta dinastia wido citamos o seu capostipide, o famoso São Warin, conde Warin I (Guerin) de Poitiers, que foi mesmo martirizado;São Lambert (Landebertus de Maastrich), conversor, referido na genealogia de Hesbaye, n. 636 – f. 705; São Liutwin (Leudwinus), Bispo ou Arcebispo de Trier e Bispo de Laon – tido como filho de São Warin I; Lampert II (Lamperthus), conde de Hesbaye em 706, indicado como abade de Mettlach, Bispo de Metz, Primaz da Gália e Germânia, primeiro abade de Lorsch. Ainda Robert de Hesbaye I falecido em 764, tido como filho de Lampert II. Robert I já bem documentadofoi dux em Hesbayeno ano de 732, conde do Alto Reno (Oberrheingau) e Wormsgau em 750, sobretudo “missus” enviado ao papa na Itália em 757 para preparar a descida franca.
Por nós comprovado que esta estirpe wido saída do condado de Hesbaye por Robert I de Hesbaye enviado como missus à Itália em 757 manteve importante seqüência geracional, especialmente desenvolvida por seu filho, o conde Warin II de Herbaye, conhecido também como Warin, conde Altdorf (n. 723 – f.772) – descendência que no século VIII precede e mesmo acompanha a descida de Carlos Magno em 775 para a península italiana, colocando seus membros em ligações não só em Spoleto por casamento, mas também nas linhas de enfrentamento e descida franca em Narbona, Barcelona, Córsega, Raecia e Friul. Fato este muito significativopara os da família Cavalcanti.
A pequena Igreja de Santo Egidio ou Saint Gilles por nós localizada e ainda hoje existente na atual cidadezinha de Seckenheimseria uma das mais antigas igrejas a direita da diocese de Worms, com assentamento e aldeia muito próximo onde se localizou um ramo dinástico de corte decaído. A aldeia mesmo citada no “Codex Lorsch” em 766, dois anos depois da morte de Robert I de Hesbaye falecido cerca de 764, e como vimos neto de São Warin (Guerin ou Guido).
Ainda outras informações coletadas na mesma região completam a história da pequena igreja de Saint Gilles. Na verdade uma antiga fazenda teria sido aí trabalhada desde o tempo dos romanos, com edifícios circundantes dedicados à produção de vinhos. Vinhedos que mesmo caracterizaram a regiãoWincingas (Vincincta), significando montanha e vinho cingidos, unidos – a aldeia referida no século VIII como Wincingas, e junto a ela construído o Castelo Winzingen nos anos 900 –castelo e aldeia arruinados já no décimo século, momento crítico da passagem da dinastia carolíngia já para a dinastia otoniana alemã.
Sobre a vila junto ao castelo de Winzingen lembramos: “A vila deWinzingen era já bem anterior ao início do século XIII, quando foi construída a Cidade Nova (Neustadt) e a cidade de Haard….. a queda da vila de Winzingen, e seu castelo de mesmo nome, ocorreram no século X – castelo…. hoje em estado de ruínas. A imagem do castelo está cunhada no antigo brasão de Winzingen. E a destruição ou queda de outros castelos ocorreu também nesta ocasião na região do Speyerbach….
Ruínas de vários outros castelos acima do vale de rio Speyerbach, e mesmo de construções posteriores, são observadas ainda hoje uma atrás do outra, como em fileira.
Foto das ruínas do Wolfsburg Castle, em cujas proximidades foram também encontrados restos romanos.
Conclusão:
A muito antiga igreja de Saint Gilles localizada na atual cidadezinha de Seckenhein, antigo centro do reino franco, era também no passado região do condado de Hesbaye, marca da Hesbania – região onde nos séculos VII e VIII tem origem a estirpe dos condes widodeHesbaye – a mesma origem dinástica dos reis franceses, robertinos e capetos como a historiografia moderna já comprova – cristãos extremamente religiosos ainda conversores santificados.
Estes fatos nos trazem à frase notável do historiador Giovanni Cavalcanti descrevendo os antepassados dos Cavalcanti como cristãos muito piedosos e provenientes da região de Colônia:
“La loro residencia delle signoria di piu castella e la principale sedia era in San Gilio. Questo Castello é molto magnífico, di popolo pienissino; del quale uscirono quatro Fratelli…..
Ainda que mudanças políticas posteriores, geradas na passagem do século X ao XI pela substituição das dinastias carolíngias para as otonianas germânicas, tenham determinado a destruição de vários castelos no vale do rio Speyerbach, em especial o castelo Winzingen junto ao assentamento de mesmo nome, é muito provável que estas traumáticas alterações políticas que chegaram mesmo a destruir estes castelos tenham também impactado as linhas de defesas francas da Toscana – episódios que a nosso ver coincidem com o súbito aparecimento dos primeiros membros da família documentados como Cavalcanti no ano 1045.
Novas pesquisas a serem expostas em próximos trabalhos irão apresentar e acompanhar, um a um, os principais membros desta dinastia dos wido saídos de Hesbaye no sec.VIII em descida para estabelecimento ao sul do reino franco, quando na Toscana bem estabelecidos aparecem como Cavalcanti documentados pela primeira vez.
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Nota: Este artigo é um resumo do trabalho original cuja íntegra, com todas as fontes está publicado no blog da autora http://rosasampaiotorres.blosgspot.com/ sob o título “Antiga origem das famílias italianas Cavalcanti, Monaldeschi e Malavolti nas proximidades de Colônia, reino franco – século VIII” – artigo sugerido para aprofundamento.
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Rosa Maria Sampaio Torres – pesquisadora em História (PUC-Rio), é também graduada em Estudos Sociais e pós-graduada em Ciências Políticas. Aluna do filósofo brasileiro Carlos Henrique Escobar acabou por desenvolver, também, seus dotes artísticos – especialmente como poeta, autora do livro “Bendita Palavra”. Já reconhecida como ensaísta, é autora de inúmeros artigos históricos sobre a família Cavalcanti, da qual descende, e agora sobre o poeta Guido Cavalcanti.
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