A PALAVRA EM SEU DESERTO – por Tito Leite

Seis poemas do livro

A PALAVRA EM SEU DESERTO

O OUTRO

Eu canto a ovelha
e o lobo,
a serpente que engole
a própria cauda
e o fim sábio
do poeta tolo.

Eu canto o limo
e o mar aberto,
a madrugada
dos poetas e o tiro seco
dos filósofos.

Eu canto o estrondo
da trombeta,
o anjo em pele de meteoro
e o monge que titubeia
entre o louco e o santo.

Eu sou o outro
que me falta
e são tantas coisas inacabadas
que me tiram o sono:

o viajante sem destino
que pega um barco
para Colômbia
e no trânsito dos planetas
atravessa
o sinal vermelho;

o místico
que doma a solidão
ou faz da serenidade
uma irmã;

um livro empoeirado
na gaveta
com Gottlob Frege
falando da estrela
da manhã;

uma pequena cidade
que morei
e não me despedi;

o sonho que perfura
minha tarde e por ele
perdi a gravidade.

Eu sou o outro
que me falta
e são tantas coisas inacabadas
que me completam

e ainda perco o juízo,
com saudade
de quando erámos
melhores.

♣♣♣

TRAVA

O poeta e a trava da escrita.

Pássaro sonoro ou coragem
da palavra, sem malabarismo

queria algo feito maçã
ou ipê: há nomes tão deliciosos
que dão vontade de comer.

Revirou conceitos e espantos,
nenhuma crônica saciou a parte

incompleta da sua garganta.

Ele foi cuidar do jardim feito
quem medita sobre a serenidade
de uma chuva temporã.

O chão semelhante a um sânscrito
numa bata indiana.

Uma imagem soluçou
nas gramíneas daquela manhã

[um pássaro morto
entre a areia e as folhas –
com um pouco mais de vento

não verei o seu rosto].

♣♣♣

MEMENTO

Se o tempo
não deteriorasse

eu o chamaria
eternidade.

Uma colheita,
uma foice.

O pássaro nasce e já é voo.

♣♣♣

THOREAU

Rasga nas entranhas.
Nos canais
úmidos
do peito,

o sonho antigo
de morar numa montanha
e tomar banho
em outros flúmenes.

E esse sonho antigo,
feito um incêndio que
incinera o crepúsculo
da língua.

E essa vontade
de subir a montanha
e aprender a língua
das plantas,

saber como o girassol
escreve infinito
com o amarelo.

Eu quero
compreender
a voz da natureza,

o dialeto das plantas,
a língua dos anjos
e o sotaque de um sino.

Eu quero uma manhã
com rosto
de flamboyant.

♣♣♣

NATURA

Cavalos selvagens em fuga
do que é domesticável,

do que se afoga na finura
das moiras dos destinos.

As patas sangram.
Respirar sem ferraduras,

livre do peso de todo
animal que calcula.

♣♣♣

TRANSPOSIÇÃO

Tirei do girassol
as suas cores matinais
e sentei a existência
num vagão embriagado.

Na angústia-férrea
de primaveras e gestos
impensáveis, extrapolei
e perdi a estação.

Nas entrelinhas
do silêncio a palavra
pesa e o sangue não pondera.

Entre bétulas e trilhos
a loucura é bilíngue.

♦♦♦

Tito Leite nasceu em Aurora/CE (1980). É poeta e Monge beneditino, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor dos livros de poemas Digitais do Caos (Selo edith, 2016) e Aurora de Cedro (7letras, 2019). Dilúvio das Almas (Todavia, 2022) é o seu primeiro romance. Participou das antologias Sob a pele da língua – breviário poético brasileiro (org. Floriano Martins, Arc Edições, 2019), Revista Gueto: edição impressa n.1 (org. Rodrigo Novaes de Almeida, Patuá, 2019).

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