UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (6) – por Lúcio Valium

MERCADO

Copio para o caderno: petúnia significa “flor vermelha” na língua dos Índios Tupi.

Foi no Grande Mercado das flores e especiarias que disse esta palavra pela primeira vez. Levámos pimenta negra feijão e alhos.

Escrevo ainda: pertencente à família Solanaceae, a mesma de pimentão, tomate e beringela, a petúnia, apesar de ser perene, deve ser replantada a cada Primavera para manter-se sempre florida.

Quando os mercados eram de ferro e ficavam no centro da cidade tu usavas saia como as petúnias e caminhavas como uma flor por entre peixes e frutas.

Petúnia é um som da cor dos teus lábios.

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“May room has two doors” de Kay Sage

CABINE

Estou só. No gabinete indesejável. Penso naqueles que teriam estado em igual recolhimento forçado. Alguma languidez no silêncio sinistro. Quem aqui vier não será por bons motivos dirão os gestores comportamentais. Haverá respostas obrigatórias agredidas por carimbos. Queimam-se os vidros psíquicos.

Aponta-se o devaneio para o formalizar em culpa. A teia obscura a manietar desabrochares. E seres de olhares acossados trespassantes alojam-se em instantes frágeis. O gabinete é uma página de segredos recortados. Uma cabine de vestir mentes. Usam-se alfinetes e bisturis. Cravam-se broches no crânio. Há ligas metálicas para atar os bailados. Tudo pacífico como um prado. Com a doçura de falácias embalsamadas.

Mas aqui há também unhas polidas a competir por títulos infames. Modos de dosear o esquecimento de si. Uma forma de autoterapia para quem não viveu. Para quem serviu. Para quem a submissão foi a única bandeira. Doentes que querem um degrau acima.

Enquanto eu te cheiro e abro os olhos debaixo dos teus lençóis.

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MENTEGRAFIAS

Será possível no futuro um mecanismo que escreva automaticamente os pensamentos pergunto-me. Pensar e aparecer na folha a escrita resultante da deambulação mental. Uma grafia pintada no branco à velocidade muda dos fluxos palavrais.

Assim registo devaneios enquanto outros caminham cegos no interior de uma máquina assassina. Insinuante verduga disfarçada de vida. Todos os dias os humanos entram no funil sugador. Há óleo perfumado nas roldanas da finança.

E um incenso tenebroso nas mandíbulas dos amos.

Nada de surpresas. Nada será igual ao que foi ou ao que poderias sonhar.

Na hospedaria seguirá o nosso baile de desprezo ao miserável capitalismo.

Faremos páginas sem número. O Malcolm Lowry é que tinha razão.

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COZINHA

Largo papeladas e imposições mando às urtigas directrizes e análises. Esfaqueio a tarde com um prazer sem medida. Viro as asas a este embuste. Saio e percorro as ruas como um indigente sem pauta.

Chego e vejo-te ainda com a imensa luz do grande sol. Sentada na cozinha do mapa. O teu vinho branco brilha na suave madeira. Trazes azeitonas verdes ao fim do dia operário. Uma fêmea à mesa na minha vida. O seu auto-estilo.

Nas artes da desordem o teu segredo continua a vadiagem. Uma arma apontada ao feudalismo do intelecto. Floresces fora dos jardins do palácio. Sorvendo outros perfumes. À vista de fogos e intempéries. Noites em trânsito com seus enredos psíquicos. E eu vou contigo pelos bosques.

Agora os meus braços fazem o teu jantar. Uma refeição sem lustre.

Já noite dentro olhar-te é um sossego narcótico.

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ALBERGUE

Na instituição usa-se pouco o silêncio. Quase a cambalear procuro um albergue sem detritos sonoros. Passei no escritório e vi pedras da praia dançar à volta do candeeiro. Vários livros e saias em desvario. O sofá mudou de sítio. Fumei e adormeci. As noites têm sido impiedosas. O cérebro inquieto atormenta o colchão. Parece um barco míope. Preciso de mar e ficar como um lagarto imóvel. Um mar de cama. Um manto de sol onde descansar os olhos. Uma cascata sobre o pescoço.

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GRAMÁTICAS

Caralho. Caminho encostado às paredes. Os ouvidos são atacados por uma febre mentecapta. As pernas sangram como pêssegos podres junto aos pés. O chão move-se parvo com sua sujidade. Puta que o pariu. As mãos estão inertes como uma bota esquecida. Custa-me andar. Pobres articulações com ponteiros viciados.

Há ferrugem nos calcanhares. Os olhos lentos são uma janela encardida.

A carcaça arrasta-se como o mundo. Esse jardim no infinito que a humanidade fode e infecta. Um lugarejo cósmico alcatifado por uma sociedade de deuses e regado a petróleo. Onde pontificam grandes líderes envernizados pela nata abastada. Arrotam progresso ao esventrar a terra. Que se fodam. Saio da sala de espera onde espantalhos humanos se babam e vou para uma cabine telefónica falar com o auscultador. Procuro fazê-lo com sensualidade. Falho. Irónica e cáustica era a voz que queria mas só sai gordura de peixe. A decadência não anula a decência e por isso olho a piça ao espelho na terceira vez que vou urinar. Não tem mau aspecto.

A puta da barba é que está cada vez mais branca. E assim afirmo os pomposos gestores de tempo e morte que desfilam sob os holofotes deviam ser corridos a pontapé na tromba.

Não obstante a vida é uma brincadeira.

Assina PL um jovem carpinteiro com aspirações à carreira biplomática. E beija sua amada das orelhas ao grelinho. Mas agora ainda tem que ir dar uma palestra sobre os Físicos da Jónia antes de enlouquecer.

Abaixo os dogmas! Viva a racha da saia de Petúnia!

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LABRUGE

Podemos deixar o chão. Sem deixar o chão terrestre. A terra as pedras.

Sabemos de vacuidades e lustres cegando festivos e ajoelhando servos. Mas há outra forma. Andar. Andar sagaz. Abrir qualquer coisa inexplicável. Linhas manchas ondulações. Rasgos abruptos. Indagar. Cartografar golpes.

Alonga-se o silêncio. Treme-se mais de inquietude.

Houve um tempo de outros. Houve ofício grandioso sem planos.

Um ficou lá mais tempo. Deu o que viu. Ainda entra em vidas após a ida.

Um lugar uma fúria de íntimos. Há qualquer magnetismo.

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PAREDE

Saio da grande sala de papagaios. Afasto-me de cérebros cravejados de naftalina. Tomo dois comprimidos. Procuro um lugar qualquer.

Entro num escritório abandonado à procura de vozes vivas. Únicas em sua história. Os comprimidos são uma cortina semiótica. Como um escapista crio o meu covil. Batem na janela corvos azuis e o céu é um teto imberbe.

Falo com um pintor de silêncios e com um poeta que foi seu amigo. Este resolveu-se pelo manicómio. Tinha as manhãs livres. O outro contraía os maxilares como portas imóveis. Quase nunca tinham respostas. Sabiam da fragilidade. E da dureza.

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POLIFONIAS

Na penumbra deste piso abeiro-me das salas do roubo de vozes. Aqui se distorce o encanto do olhar e se esfaqueia a ligação aos sons do mundo. Nada de novo. Tudo dentro da norma. Graças aos meninos de leis. E às atrocidades de tais luminárias. Antes a arte do desvario e a sinfonia inquieta dos fios nevrálgicos. Ser estrangeiro nesta podridão e tourear os cabotinos é um ofício de alfaiataria. O desprezo um vício a requintar.

Na sala principal a maior parte dos falantes revela uma inominável acefalia.

Servos consumistas com pretensões de autoridade. Pobres e emplumados mortais. O arquivário que carregam é pejado de títulos podres. Coisas como caroços de pus. Uma corja de pomposos a caminho dos tumores.

Esgueiro-me para instantes de vida. A escrita e tu fortalecem-me os músculos e dão-me vontade de galgar estas grades. Beberemos o nosso vinho. Beijarei os teus lábios de vinho. Olharei os teus olhos de vinho. No Outono meigo as minhas mãos nas linhas do teu corpo.

Por aqui ainda um capataz a menear-se junto a gráficos como se fossem troféus. Uma oratória ameaçadora e voz infectada. Este é dos que usa creolina para lavar os fantoches. Passo ao lado da sua sala com um andar pouco apresentável.

De olhar perdido beijo-te as coxas e atravesso o longo corredor.

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MAPAESCRITO

Por estas paragens está tudo programado. Coerciva vociferagem e prescrições insalubres. Criaturas adoecem brilhantes e frenéticas.

Matinais neurónios levam-me para sul.  Só a fuga vale.

Apago os ficheiros. Partiremos sem aviso. Um mapa feito por mão imprevista. Asseguro medicação e preparo caderno. Nada prende corpos às páginas.

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COLCHAS

Tendo sido atacado por bêbedas viroses feri a carne branca dos escritos. Perdoe-me menina o abandono de nobres rumos. Acontece a quem retira sons dispersos da amachucada rosa mental. Nada a esconder-lhe. A manivela da grafonola está perra. O que fazer é uma questão funda e a psiquiatria jura-o. Escreve-se senhora para lavar os olhos e deixar dormir o radar. Em queda anunciada vem o paciente que lhe dedica a sua lide manual. A caligrafia é uma gruta de vermes. Senhorita mil desculpas pois não engrandeço os seus dias com conhaque cognitivo. O que lhe ofereço são passagens dignas de um contrabandista míope.

É o que resvala das fendas de tempo nestes dias de sujidade assassina. Páginas viperinas e um real podre nos vendem em cada segundo menina. Fórmulas letais e ouro da morte ouça o que lhe digo esventram as histórias. Por isso não paro. Recuso o simulacro negociado como quotidiano e as etiquetas babosas. Por isso lhe escrevo. Ainda que seja só um ramo de beijos nos confins do bosque é seu.

Ainda que a esterqueira me queira servo estarei sempre noutro lado consigo em mim. Dou-lhe as minhas fugas.

End Game, de Dorothea Tanning

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Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!

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