James Joyce? É um escritor novo? Aposto que um tremor de terra, de média intensidade, não me teria abalado tanto, como esta, na aparente, inocente e ingênua indagação. Caprichando numa amena ironia, ripostei. Joyce nasceu em 1882. É novo sim, se comparado com um Homero, um Ovídeo, um Petrarca, um Bocage.
Apercebendo-se do deslize, atarantada, a atendente desviou o olhar e fixou-o no ecrã do computador, alheando-se do bulício da loja, onde pipocavam os mais recentes produtos da indústria “cultural”. O livro chama-se ‘Gente de Dublin’ (‘Dublinenses’), não é? Lamento, mas não consta da nossa base de dados, comunicou, articulando uma voz formal e protocolar.
Que saudades de épocas que já lá vão, em que éramos recebidos com amenidades e cortesias, sempre que entrávamos numa livraria em busca de novidades ou em demanda de um título específico. Era esse o caso – exemplar – da finada Leitura. Em inúmeras ocasiões, ficávamos surpreendidos ao verificar que, tanto patrões como empregados, sabiam mais do que nós sobre o livro e o autor em apreço. Um dia, o gerente de um desses estabelecimentos me revelou que aos candidatos a um emprego, para além de outras competências, era exigido um nível suficiente de cultura literária.
2-Terá sido um funcionário com essas qualificações que, em meados do século XX, atendeu um cidadão brasileiro, numa livraria do Chiado lisboeta, que se supõe ser a histórica Bertrand. O cliente, de nome João Guimarães Rosa, entrou, apreciou a existência e sondou -adquirindo- livros de Aquilino Ribeiro. Conforme contou em 1966, numa entrevista ao Prof. Arnaldo Saraiva, “o empregado perguntou-me se eu queria conhecê-lo, pois ele estava ali mesmo. Respondi que sim e desse modo obtive dois ou três autógrafos do Aquilino Ribeiro, com quem conversei alguns instantes.”
Conclusão do causo. Nos nossos digitalizados dias, esta singela arte do encontro, enlaçando os dois homéricos vultos da arte literária de expressão lusófona, seria de certeza, uma cena de pura ficção. Hoje, tenderá mesmo a configurar um ato de injustiça social, exigir que empregados remunerados com o salário mínimo nacional sejam obrigados a saber quem foram Camões ou Pessoa.
Neste ponto, convirá ser sensível à mais judiciosa das razoabilidades. Ela nos aconselha a entender – o que não significa aceitar-as conveniências / prioridades / sensibilidades dos empresários do setor. Afinal, para que contratar e formar funcionários culturalmente antenados e literariamente atilados se a esmagadora maioria dos fregueses que se abeiram do balcão compram o livro do “escritor novo”/do autor da moda, obra, em regra, assassinada por figuras mediáticas, idolatradas nas redes antissociais, que aparecem com destaque nos media, em especial, no medium televisivo. Clientes que adquirem, com fervor militante, os livros assinados pelos autores do regime, sagrados nos concursos/festivais com prêmios literários e consagrados pela infalível prova real das críticas da crítica especializada, dadas a estampa nos jornais de referência e nas revistas da especialidade.
Para que, portanto, investir na massa cinzenta do assalariado se é crescente o número dos que compram os livros em plataformas on line, enquanto se afiguram, cada vez mais, minoritários, tendendo para a rarefação, os excêntricos que insistem em demandar as obras de Joyce, Homero, Ovídeo, Petrarca ou Bocage.
Um sagaz conceito de economia de escala recomenda mesmo o banimento do assalariado. Ideal do capetalismo*, na sua ganânsia* de barganha imediata, hoje configurado nas profanas catedrais do hiperconsuno, onde as edições da literatura light, de auto desajuda, de paraanormal, podem ser arrematadas nas prateleiras ao primeiro olhar. Depois basta pagar e acomodar o volume, de bitola, por norma, paquidérmica, no saco de plástico, misturado, alerte-se, com rolos de papel higiênico/sanitário, pacotes de detergente, barras de sabão azul e branco, embalagens de tampões/absorventes/pensos higiênicos, garrafas de hipoclorito de sódio e de hidróxido de sódio e tira nódoas em spray. Convém ser previdente e ter à mão produtos de faxina, asseio e higiene, para limpar a sujeira causada no corpo e na mente pelo livro, se acaso for lido.
3- Em 1932, em Paris, um livreiro, Monsieur Lestingois, atirou-se ao Sena para salvar do suicídio, por afogamento, o clochard Boudu. Boudu que merecia continuar vivendo, apesar de nunca ter ouvido falar do livro ‘Les Fleurs du Mal’, de Baudelaire, e cometer a heresia de confundi-lo com flores malévolas.
Aposto que a maioria dos turistas estrangeiros que se alongam todos os dias, em fila indiana, na Rua das Carmelitas, no Porto, também nunca terão ouvido falar desse livro e desse autor malditos. Alguns, nem sequer terão visto e aberto, alguma vez, um livro de cheques. Nada que os aflija ou incomode. Seu objetivo ao entrar na Livralândia Lello não é o de praticar o (desac)ato cultural de apreciar/comprar livros. O fito em vista é fruir alguns momentos lúdicos de deleite estético, olhando bovinamente para a atraente arquitetura decorativa do bojo do charmoso estabelecimento. E memorar a visita em mais uma narcísica selfie…
Esta drástica para muita gente- porém salvífica diversificação da oferta comercial da, agora, Lellolândia, pode não ser muito curial, mas nada tem de ilegal. E até estimula as vendas. Para se reembolsar o valor pago pelo pedágio/pela portagem é suficiente adquirir um book de preço igual ou superior. E a tesouraria não tem razões de queixa, muito pelo contrário, da faturação e dos correlativos lucros.De tal forma que, num alarde novorriquista, a falta de um incunábulo imponente, os donos da Lello decidiram lançar uma OPA sobre um exemplar da 1ª edição de ‘Os Lusíadas’, de 1572, no valor de 250 mil euros.
A transformação da Lello num parque temático é um modo inusitado, embora não generalizável,de enfrentar a crise que afeta as empresas do ramo. Crise que muitos rotulam como agônica, enquanto outros catalogam como dialética. Para os românticos e líricos estamos perante um abastardamento da missão cultural e social, uma profanação do caráter sagrado da arte e ofício de ser livreiro. No problem! Ambos estão em vias de extinção.
Para próximas núpcias, se a deusa Athena tais esponsais autorizar, fica a reflexão sobre as (ir)responsabilidades das editoras e distribuidoras na crise das livrarias canônicas/tradicionais. Crise que é, antes de mais, moral.
Não será descabido escalpelizar a nefasta influência segregada pelo duopólio imposto pelas editadoras hegemônicas, a saber, a Porto Editadora e a Compre Mesmo Que Não Leya. E quem de bom grado delas não se livraria para salvar do desaparecimento esses genuínos templos de divulgação do saber cultural e da arte literária.
*Capetalismo– quando o capitalismo é coisa do capeta
*Ganânsia- neologismo mesclando ganância com ânsia
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Danyel Guerra (aka Danni Guerra) Faz parte do Conselho Editorial de Athena. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História Universal da Infâmia pela FLUP. É jornalista nas horas (mal) pagas e autor literário nas horas com vagas.
Publicou os livros ‘Tomás Gonzaga-Em Busca da Musa Clio´’, ‘ Amor, Città Aperta’, ‘O Céu sobre Berlin’, ‘Excitações Klimtorianas’, ‘O Apojo das Ninfas’, ‘Oito e demy’, ‘Fernando de Barros-O Português do Cinemoda’ e ‘Os Homens da Minha Vida’.
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