DO BOM USO DA LIBERDADE – EDITORIAL DE PAULO FERREIRA DA CUNHA

 

“Le temps des cerises”, aguarela de Paulo Ferreira da Cunha

DO BOM USO DA LIBERDADE

I

O que fazemos, fazemo-lo na nossa circunstância, como bem observou Ortega y Gasset, e passou a ser muito repetido, só que, erradamente, no plural, e por vezes até julgando que Ortega é uma pessoa e Gasset uma outra. Coisas da nossa ignorância letrada…

Falemos, assim, de alguns constrangimentos, ou, se preferirmos, regras do jogo humano (social), ainda que possam algumas ser trans sociais.

Personagens tão diferentes como Montesquieu e Gobineau falaram, cada um à sua maneira, da importância do clima. Não é hoje uma moda, é realmente uma determinante essencial – para que muitos estão a acordar já tarde. Geoffrey Parker, autor de Global Crisis (Yale Univ. Press, 2013), em recente entrevista   a “L’Histoire” (n.º 516, fev. 2014), profere esta frase lapidar: “é o clima que faz duma crise uma catástrofe”, assinalando importantes exemplos históricos que nos passaram despercebidos a todos. Se quisermos alargar a “circunstância” da radicação num lugar, recordemos o título eloquente de Yves Lacoste, A Geografia serve fundamentalmente para fazer a guerra. Continuar a ler “DO BOM USO DA LIBERDADE – EDITORIAL DE PAULO FERREIRA DA CUNHA”

APOLOGIA DOS CALDOS DE GALINHA… – Paulo Ferreira da Cunha

APOLOGIA DOS CALDOS DE GALINHA…

I

“A Parábola dos Cegos”, de Pieter Bruegel, o Velho

Ecos no Umbral

Este artigo parece ser um pouco autobiográfico (o que não é meu costume), mas nem por isso o será. É apenas um artifício retórico para melhor dizer o que tenho a dizer. Pode levar-se tudo à conta de ficção. Peço mesmo que o faça o benévolo leitor. Acredite que tudo não passa de uma fábula da minha imaginação.

Ao longo da minha anterior “encarnação”, como professor universitário, como costumo agora dizer (espero que apenas achem graça à metáfora e não me interpretem mal), tive ocasião para conhecer muito o mundo. Continuar a ler “APOLOGIA DOS CALDOS DE GALINHA… – Paulo Ferreira da Cunha”

TROVA DO CONFINAMENTO – por Paulo Ferreira da Cunha

Ao mundo sou estrangeiro:
A este mundo brutal,
Sem lei, nem rei, nem bornal,
Sem razão, tão mundanal,
Em que nem a língua entendo.
Figuras vou eu pois vendo,
Na caverna projetadas:
Em televisão vão nascendo
E morrendo – não são nada.
Na minha casa encerrado,
Poucos passos de prisão,
Abro livros que me vão
Levando p’ra todo o lado.
Pois desse confinamento
Não me queixo, nem por isso.
A minha grande questão
Está mais fundo, em sentimento.
Ao mundo sou estrangeiro:
Quer dizer, ao mundo vão.
É preciso que uma mão
Me guie, no meu intento
De entender este portento.
Não será projeto vão?
Já tenho idade pesada,
Já andei por muitos lados…
Estudei muito de Nada,
Os meus olhos estão cansados.
Os olhos e o entusiasmo!
Coisas que aos outros acendem,
A mim me causam marasmo
E tantos para o vão tendem!
Procuro o Absoluto!
Procuro em vão a Verdade!
Mas ao menos nesta idade
Não me impinjam um produto! Continuar a ler “TROVA DO CONFINAMENTO – por Paulo Ferreira da Cunha”

LEÃO NO OUTONO – por Paulo Ferreira da Cunha

 

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

I

 Cependant, il ne saurait s’agir d’un récit
 à clés, car nul ne possède la clé des songes.

 P. Debassac, Le lion et la demoiselle, Avertissement.

Sou um leão da cova dos leões de Daniel, desenterrado e fixadao em pedra andaluza.

Os meus onze outros irmãos ladeiam-me, suportando nós todos esta salva de água puríssima, estendida à sede e ao cansaço. Aqui, nesta Alhambra que nos acolhe no presente, eles são leões de pedra sem alma.

Mas eu, e eu só, sou um avatar, uma reencarnação, um clone ao menos (como vai alguém saber mesmo quem é, depois de Blade Runner?), do rei dos leões na cova dos leões. Creio que foi para minha proteção que o escultor me fez exatamente igual aos outros onze. Aparentemente, não tenho nenhum traço distintivo, posso passar despercebido. Há, é certo, dois irmãos meus com um sinal na fronte. Um triângulo, como conviria. E eles seriam os representantes das duas tribos eleitas, a de Judá e a de Levi. Mas a minha estirpe é a de Salomão, portanto anterior aos cismas…

Aqui na Hispânia para onde me trasladaram, tenho vivido incógnito e muito melhor. Deixem outros deliciar-se com a descoberta desses dois irmãos do reino dividido.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

II

Sou o leão da cova dos leões de Daniel, já vo-lo disse. Mas isso, também vo-lo confesso (mais que confesso quero proclamar, e deixar em registo), de modo nenhum me envaidece. A vaidade é apenas um adorno supérfluo e sempre ridículo dos que não têm valor real. Mas não falemos dessas futilidades.

Apresento-me sem cartão de visita. Os cartões de visita são materializações curiosas dessa mesma vaidade de que falávamos. Todavia, podem ser até elegantes: quer na escolha subtil dos dizeres, quer na apresentação gráfica (do mesmo modo que podem ser horríveis e a consubstanciação do novo-riquismo, da ostentação, etc.). Só a elegância atenua um pouco o grave pecado da vaidade.

Perdoai-me que divago.

É a idade (são muitos séculos ao serviço…). Não sem que diga algo a propósito desse lugar comum que, muito contra minha vontade consciente, saiu dos arquivos do que se diz para o discurso que eu mesmo disse… Deplorável quando se fala pela voz e pelas ideias dos outros. Pois bem. Não acho que os velhos sempre se repitam porque desmemoriados. Alguns, sem dúvida que sim, será por esse motivo. Mas outros (devo dizer que os melhores), repetem (esbracejando contra o Tempo) porque querem gravar, para si e para os demais, memorabilia, os feitos e os factos que não suportam ver perderem-se pelos ralos da memória – pessoal e coletiva.

Certamente um dono de obra velho (teria sido o vizir judeu Ibn Nagrela?) mandou um jovem e possante escultor dar-nos forma neste pátio, para que ficássemos imortais. Pigmaleão, o escultor. Sempre apaixonado pela sua obra. Sinto que fui esculpido pelo amor, não apenas com amor. O que viria depois já não o recordo. Ou não importa. Porque as estátuas permanecem, e os escultores desaparecem. Como dói a perenidade da estátua.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

III

Sou, pois, já me conheceis, o leão-rei da alcateia que poupou a vida do profeta, porque connosco falou o Espírito Santo. E que não tivesse falado. Certamente falou de várias formas: pois antes de nos ter dirigido a Palavra, já nós O ouvíamos sem que nos falasse. O Espírito Santo é, da Santíssima Trindade, certamente a mais subtil e complexa das Sagradas Pessoas. Ele é o Paráclito: ao mesmo tempo consolador e defensor, advogado mesmo em tribunal. Pois intercedeu por Daniel que injustamente havia sido condenado, e encontrou nos reis do reino animal, nos leões, pleno vencimento de causa.

Obviamente que Daniel merecia ser poupado. Desde logo, porque o suposto “crime” que teria praticado não era crime algum, pelo contrário apenas o livre (ontologicamente livre, só comprimido por normas e atos eles sim criminosos) exercício da liberdade religiosa, como se viria a dizer mais tarde, desde logo nesta Península Ibérica e nesta Europa no séc. XXI, de onde vos falo.

E sim, sou um leão velho, velhíssimo, primordial quase, mas também e afincadamente, conscientemente, um defensor dos Direitos Humanos. Não por moda, nem contraditoriamente, achando que tudo o que é a meu favor o é, e tudo o que me não convenha contra eles se revelaria.

Direitos Humanos, que um leão pode bem defender. Sem cuidar sequer de Direitos dos animais (contos largos, contos largos, em que não me vou embrenhar agora). Aliás, todos já entenderam que eu não sou um simples animal. O mítico leão nunca foi um simples animal. E um animal não é um simples animal…

Mas voltemos aos Direitos. É uma questão que ainda se coloca, que se coloca e colocará no futuro próximo decerto ainda muito, porque os Homens se desumanizam, e não respeitam essas manifestações elementares da sua dignidade enquanto Pessoas. O problema nem sequer, em tese, se deveria pôr. Uma sociedade minimamente civilizada não deveria mesmo ter essa matéria como tema, muito menos como pauta de atualidade. Tais adquiridos deveriam ser naturais. Dever-se-ia viver os Direitos Humanos como quem respira.

Mas isso é com outros. Não estamos nessa sintonia, no momento. “Traten otros del gobierno”, escreveu Luis de Gôngora. Embora uma canção de Paco Ibañez tenha chamado a atenção para os perigos da alienação… Bem sabemos, bem sabemos… Têm ambos muita razão, no meu entender de quem já viu coisas demais.

Entretanto, quando me petrificaram, aqui no Império da Andaluzia, terra de coloridos jardins, frutos suculentos e sombras amigas e suaves, entendi que não somos apenas uma vida. Era, aliás, fácil compreendê-lo, tendo a reminiscência do tempo da Babilónia.

Como vos disse, tenho gostado deste tempo de agora (tantos séculos já), apesar de preso a segurar  esta taça de límpida frescura.

Só que a prisão é ilusória. Quando andava pela terras do Médio Oriente, também me sentia um leão enjaulado. Entendes que um leão condenado a devorar condenados é de todos o principal prisioneiro e com  a pena mais cruel? Eles encontravam a liberdade na morte. Nós em cada morte que obrigados perpetrávamos, era um novo grilhão que acrescentávamos à nossa longa cadeia.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

IV

Sou o leão, quase sem rosto, com um impercetível olhar esfíngico. Isso não me despersonifica, contudo. Há uma certa bonomia satisfeita (mau “satisfecho” é só o “señorito” de Ortega… e esse é realmente muito mau)  nesta minha situação presente. O tempo angustiado das sagas, epopeias e tragédias terminou. Na Idade dos Homens (que hoje se arrisca a dar lugar a uma idade pós-humana, desde logo desertificada do que de melhor eles inventaram, os Humanismos – pois se superaram, numa reinvenção), o melhor é não perder o pé no real. Manter a serenidade, e aproveitar minimamente a vida, em geral tão fugaz, tão traiçoeira até. Um ar sereno e até aparentemente feliz (ainda que de uma falsa felicidade, porque estulta e enganada, não consciente) ainda é o limite máximo que nos é dado viver. Como há um abismo entre o sangue que por mim escorria lá nas terras de Babel e a pétrea bonomia em que poso para a posteridade como representante de uma das doze tribos de Israel… Ironia do destino…

Falava em aproveitar a vida tão fugaz. Vida fugacíssima a dos que por aqui têm passado. E nem sequer me refiro aos tais “turistas” dos últimos séculos, e em especial destes últimos. Não entendi bem ainda o que julgam eles que captam quando apontam para nós uns aparelhos, por vezes luzentes. Disseram-me que a nossa imagem entra nesses artefactos e pode ser depois reproduzida. Mas que interesse terá possuir-se uma imagem bidimensional de algo aparentemente tridimensional, embora, como sabemos (segredo nosso) tenha muito mais dimensões? O nó da questão estará certamente na posse. Os Humanos (e os animais também) gostam de se apropriar de coisas (até de pessoas e ideias – mesmo de divindades), e de coisificar entidades não reificáveis.

Os Humanos estão alucinados com algumas miragens: o rei que queria matar Daniel tinha a febre do poder; os turistas são benévolos doentes da maleita do possuir, até paisagens, lugares, memórias. Há outros venenos que os possuem, mas esses são normalmente filtros ainda mais complexos, ardilosos e mesclados de virtude e vício, e deixá-los-ei para eticistas mais experimentados. Afinal, eu não conheci senão o sangue da cova dos leões e a placidez da sombra deste pátio.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

V

O leão é também símbolo da realeza, e uma realeza sacra a que não podemos deixar de associar o rei Salomão, cujo nome consta do nosso complexo escultórico.  Nem precisava de tal ocorrer…

O leão (não me caberia a mim recordá-lo, mas vivemos tempos ignorantes), rei da criação, espécie de lugar-tenente de Adão para os animais aparentemente não humanos (porque sabemos que os animais falam, e se falam também pensam – e é óbvio que sentem: não teve Ricardo de Inglaterra um “coração de leão”?) é senhor do porte imponente e altivo (sem presunção, mas por natureza e dignidade própria) que todos lhe conheceis. Mas relendo estas palavras sinto-as não pomposas, mas parcas. A nobreza, o oiro, a magnânimidade, a independência criativa e o rasgo são traços nossos. Acrescentaríamos até a palavra soberania, se ela não se encontrasse hoje tão esfacelada e desfigurada em polémicas e dogmas muito restritos. Aliás, da definição que atribuem a Jean Bodin pouco se aproveitaria mesmo para o que é o poder e a responsabilidade do rei leão.

De qualquer forma, é um arquipélago de conotações que se concentra na imagem do leão. E tem de haver um qualquer choque na associação do leão com símbolos de conotação diversa.

Por exemplo: o leão é um grande felino, o felino dos felinos. O arquétipo do Felino. Não é um gatinho. Um leão feito gatinho doméstico brincando com crianças e uma bola multicolorida, ou um leãozinho inofensivo, sem garras e quiçá sem dentes, embalado no colo de uma moça como se fora um urso de peluche… Pior ainda o último. Não, não sei qual dos dois o pior, o mais descaracterizador.

Não posso sequer pensar nessas imagens…

Claro que muito degradante é o velho leão cansado a quem todos vão provocar ou mesmo molestar. Ou o leão desses circos arcaicos de que o malabarista escarnece, obrigados à pantomina e ao chicote.

Essas são páginas tenebrosas da nossa gente. E, contudo, tal como ocorre com os Humanos, os leões podem submeter-se por vontade própria. É possível a servidão voluntária, de que falava La Boétie. Complexa atitude, pouco leonina, e, convenhamos, certamente pouco humana também… Falando da dita “natureza humana”, na verdade um arquétipo tão pouco físico, tão pouco “natural”, romantizado, ou tornado estoico…

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

VI

Hoje, no universo das imagens fictícias ou técnicas, aquela boa parte do romance (ou de qualquer género ou subgénero de ficção) que consistia na descrição (de paisagens, interiores, roupas, ou até de traços humanos físicos), fica em algum apuro, em crise, em perda. Como pode a paleta linguística competir com as imagens virtuais, facilmente criadas ou manipuladas por meios computacionais?

A moça que afaga o pequenino (e indefeso) leão não tem na ficção um rosto. Tem-no, nas imagens oitocentistas ou dos começos de Novecentos, pela mente e pelo coração do profanador fotógrafo, que lhe emprestou o seu olhar fatal.

Mas a decisiva pergunta é como o leão de pedra consegue saltar para a foto, preto e branco amarelada, dessa moça com leão.

Aqui, no pátio a que justamente damos nome, sou um austero ainda que (creio) simpático monumento de pedra, que acabou de se restaurar há pouco mais de meia dúzia de anos, após uma década de polimentos e restauros. Sinto-me rejuvenescido, lavado, livre de poeiras e excrescências. Foi um ritual longo, esse, mas valeu a pena. Todos os rituais purificadores (que nos alijam de adjacências e restituem a depuração) elevam, assim como todos os que nos carregam de adornos nos rebaixam e pesam, ainda que pensemos o contrário. São palavras de um rei sem coroa.

Retirado do pátio, quando chegou a minha vez, tive uma espera de recreio desta petrificação, que equivale a um dos castigos do Hades helénico. Voltei ao purgatório em que, fixo, vou tentando redimir a vagância (ainda assim confinada) na cova antes de conhecer aquele que tinha no nome ser apenas Deus o seu juiz.

Digamos que fui instrumento da mão de Deus, poupando o profeta, e agora continuo espiando e redimindo-me pelos séculos afora, dos tempos em que, também enclausurado, era involuntária máquina de opressão e morte.

Não consigo deixar de pensar na fotografia de que falámos. Podemos interpretá-la de várias formas, como diverso significado pode ter esta minha guarda no pátio.

Ela parece poder também dar uma esperança de um mundo paralelo, em que adquira de algum modo vida, e encontre alguma forma de afeição e a possa irradiar também. Todos sabemos como o leão pode ser o cordeiro, e vice-versa. Basta ler o Apocalipse.

Os tais turistas, que são quem agora mais nos visita, mesmo os letrados e invetigadores que com um outro olhar de quando em vez por aqui passam, não querem de nós sentimentos; no máximo dos máximos nos tributarão admiração.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

VII

Ora eu, leão de Beltessazar (assim lhe chamaram também), estou há séculos à espera de uma dupla de dons, que alguns diriam inatingível: a Liberdade e o Amor. Claro que são conceitos (“são conceitos!” Que digo eu? Como se o fossem antes de mais…) muito polissémicos…

Que saber disso para o poder desejar? Quantos filósofos se passaram neste pátio, quantos poetas, quantos senhores do poder, da paz e da guerra, quantos amantes… Todos por aquelas janelas nos fitaram ou deambularam em poses diversas em torno desta fonte da vida (fons vitae). E alguns cuidaram saber de uma cousa e da outra, e certos não pensaram vivê-las, ainda sem as pensarem muito.

Não importa: algo me segreda que são ambos objetivos que, necessitando embora de um contexto favorável (porque dependem de outros, e mesmo de sociedades realtivamente despoluídas e saudáveis, em que sejam possíveis), dependem sobretudo de cada um. Portanto, no meu caso, de me transfigurar, porque pedra, ainda que segurando uma taça de vida, não é argila para moldar uma coisa nem outra.

Mas, insisto: há milagres. Eu já fui um carniceiro. Vede-me ainda feroz e pulsante no quadro de Rubens.

E nesse século XIX, enquanto estava o meu invólucro aqui em Granada, posso ter momentaneamente visitado essa foto pretensamente exótica. Mas, evidentemente (não quero ser mal entendido), essa moça, cujo rosto nem sequer vi, não é nem o meu ideal de liberdade nem de amor. Olhem como ela me teria (se aquele leão tivesse realmente sido eu) de algum modo preso, aprisionado, domesticado. Estou nas suas garras. Talvez me pudesse dar a afeição superficial que se pode transferir para um qualquer boneco mais ou menos animado, ou… animal de estimação. É uma afeição (se o for…) de algum modo pueril, fútil, decorrendo decerto de um fundo inespecífico de carinho potencial que em mim terá fortuitamente poisado. Muito provavelmente animado pela relativa excitação e vaidade de se poder ter ao colo um leãozinho – coisa aparentemente paradoxal, e exótica.

Esse século XIX de uma possível (mas improvável, claro) liberdade condicional e condicionada é uma advertência contra a falsa liberdade e certamente também contra o falso amor. As múltiplas falsas liberdades e os inumeráveis traiçoeiros, ilusórios e erróneos amores – de miragem e de servidão também.

Digamos que numa primeira recusa, surrealista, mais me tentaria inverter as posições da foto. Pois que a figura humana é indefesa e o leão é magnânimo e não agressividade pura, pois que ela seria afinal a imagem do cordeiro, então seria o leão que deveria tomar conta dele. Por isso a moça poderia ser consolada, embalada, e (aí é que está o maior problema, de novo: e como ele hoje ressoaria!…): pelo menos implicitamente aprisionada.

Decerto é esta tentação nada mais que o meu complexo de carcereiro da cova dos leões, que emerge, que vem ao consciente. Em Herberto Helder não há um cão que tinha um marinheiro? A princesa de São Jorge e o dragão de Paolo Uccello não traz a besta por uma trela? E não é o leão rebaixado a glutão na Dame à la Licorne e a criatura pusilânime no Feiticeiro de Oz? Há certamente forças superiores às do leão, e se as heterodoxias referidas são permitidas, mesmo afrontando a dignidade leonina, bulir com o Feminino seria muito mais sacrílego. Não se deve tocar em mistérios muito profundos.

Além disso, entrar, por que forma fosse, nessa dialética do senhor e do escravo nunca foi libertação. E muito menos ainda, a fortiori, Liberdade. Amor tampouco.

Que imagem, então, colocar na minha mente, como visualização do que muito se deseja, e espera que venha a concretizar-se, pelo turbilhão magnético dessa força do querer, que alguns consideram invencível e infalível. Confesso que o não sei, nunca o tentei.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

VIII

Shiuuu!… De novo estão a chegar trabalhadores de reparação do pátio. É uma manutenção de rotina, mas isso nos permitiu estas reflexões, sem ter de afivelar o sorriso esfíngico. Sim, só o alívio da prisão e das invasões bárbaras dos visitantes, com suas fotografias incessantes, me permitiu este desabafo.

Agora, honestos pedreiros e afins mesteirais virão embelezar o pátio, para que resista a mais uns séculos de reiterada e consentida profanação.

Sei que te devo ainda umas palavras, sobre o meu sonho, acalentado dia após dia, mês após mês, ano atrás de ano, sobre liberdade e amor.

Mas é impossível falar disso cercado pela indiscrição destes bravos empreiteiros. Requerer-se-ia recato, uma brisa de fim de tarde, e que eu saísse mesmo daqui, passeando pela savana, olhando o por-do-sol além dos embondeiros.

Não é muito importante. As minhas palavras seriam sempre as de uma metamorfose que está congelada há tempo demais na mesma fase. A borboleta tarda a revelar-se.

Pode ser que alguns destes trabalhadores me venha a transportar para um outro lugar. Oxalá não para defininhar num museu. Pode ser que uma outra imagem se projete sobre mim, numa espécie de upgrade, e eu me venha a volver em leão alado mesmo, concretizando o sonho dos meus primos assírios. E depois pelo Leão de São Marcos aqui mais perto, em Veneza.

O leão da cova dos leões do justo Daniel volvido o símbolo do Evangelista – só mesmo na confusão pós-moderna…

Não. Sejamos mais comedidos.

Há na mitologia hodierna de Nárnia, de C. S. Lewis, um bom leão, Aslan. Pode ser que, no seu enorme coração, ele se apiede de mim, e me venha a conceder as graças que eu não mereço, eu que fui o leão da cova dos leões, e também leão da coroa dos leões na resplandecente Granada, tierra sonãda por mi.

Isso será para mim melhor, certamente, que a justiça dos Homens (ou a sua História, outra espécie de tribunal), que não apenas continuam a caçar leões, como a caçar-se entre si. Por mim, afinal, só espero não acordar um dia num jardim zoológico, ou, pior ainda, como leão decorativo em entrada de casa de novo-rico.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

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Paulo Ferreira da Cunha – Professor Catedrático e Director do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

Todos os desenhos usados são autor dos textos.

EDITORIAL – ATHENA & AS ARTES, HOJE (1) – por Paulo Ferreira da Cunha

Athena faz um ano, e já nela se evidencia, como traço muito vincado, a vocação cultural geral, do pensamento, das letras e das artes. Neste aniversário, julgamos que seria importante reflectirmos um pouco sobre estas últimas, que andam, um pouco por toda a parte, em maré não tanto de crise (essa já vem de longe, e nem é muito mau que assim permaneça), mas de incompreensão e até de perseguição.

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ATHENA – Mito & Cultura – por Paulo Ferreira da Cunha

Desenho de Athena@ Paulo Ferreira da Cunha

O Mito é o nada que é tudo

Fernando Pessoa, Mensagem

1.Um Projeto Cultural

Não haverá certamente melhor nome para uma revista de cultura que o de Athena. Para mais uma revista eletrónica, em que o pensamento e a arte se associam naturalmente, indissoluvelmente, à ciência e à técnica. Assim como Athena simboliza a aliança perfeita das mãos e do espírito[i]. Continuar a ler “ATHENA – Mito & Cultura – por Paulo Ferreira da Cunha”