APOLOGIA DOS CALDOS DE GALINHA… – Paulo Ferreira da Cunha

APOLOGIA DOS CALDOS DE GALINHA…

I

“A Parábola dos Cegos”, de Pieter Bruegel, o Velho

Ecos no Umbral

Este artigo parece ser um pouco autobiográfico (o que não é meu costume), mas nem por isso o será. É apenas um artifício retórico para melhor dizer o que tenho a dizer. Pode levar-se tudo à conta de ficção. Peço mesmo que o faça o benévolo leitor. Acredite que tudo não passa de uma fábula da minha imaginação.

Ao longo da minha anterior “encarnação”, como professor universitário, como costumo agora dizer (espero que apenas achem graça à metáfora e não me interpretem mal), tive ocasião para conhecer muito o mundo.

Ao contrário de um preconceito (que alguns dizem criado por “maus alunos” que nunca gostaram da escola e dos professores) muito difundido, o professor não é um ser macambúzio, bisonho, desconhecedor da realidade e da vida, só dado a teorias que não servirão para nada. Antigamente, quando era uma profissão bastante livre, e portanto com possibilidades de ser muito criativa, quando não havia a pressão permanente das estatísticas, dos relatórios, das avaliações, da popularidade junto dos alunos (um grande poeta e professor falou em “folies bergères” pedagógicas) e da necessidade de o nariz, em geral, não desagradar, era uma profissão com algum tempo e autodeterminação por parte dos docentes, o que lhes permitia viver, cultivarem-se, darem testemunho como pessoas integrais juntos dos seus alunos – poderem ser verdadeiramente exemplo ou modelo. Hoje, os modelos que se conhecem relevam de outra área, da moda. E normalmente não falam.

Quando digo “algum tempo” não estou obviamente a embarcar noutra calúnia que consiste em acreditar que um professor só trabalha o estrito tempo das aulas que leciona. Michel Villey, grande professor francês, acreditava que para dar boas aulas, ou seja, para as poder preparar convenientemente, um universitário não poderia lecionar mais que 4 horas por semana. Se disso alguns soubessem, morreriam de raiva e inveja. E contudo, a mania do trabalho excessivo ainda não foi bem compreendida. Leia-se The 4-Hour Work Week. Escape The 9-5, Live Anywhere And Join The New Rich, de Timothy Ferriss. Está já traduzido.

Apesar de ter sido abrangido por um período de transição (no meu primeiro ano de aulas, salvo erro, ganhava muito pouco e vivia em casa dos Pais, mas dava realmente 4 horas por semana numa universidade privada, nas tardes de sexta-feira, dias em que nunca choveu – e por isso nem tive que comprar guarda chuva), em que vi (em vários países) crescerem as adaptações académicas às modas estrangeiras, e o trabalho burocrático aumentar exponencialmente, sem que tenha vislumbrado melhorias científicas, pedagógicas ou outras, ainda tive oportunidade de experimentar as delícias de ser sempre estudante. Porque o professor é um eterno estudante. Disso muito provavelmente se deu conta o meu velho amigo e colega na Universidade do Porto, o médico Prof. Aureliano da Fonseca (que faleceu aos 100 anos), quando compôs o fado académico “Amores de Estudante”. Era um grande conversador, e criou mesmo, quando esteve na Universidade de Campinas, uma tertúlia que hoje poderíamos dizer, na nomenclatura de Gonçal Mayos, “pós-disciplinar”.

Conheci, pois, as delícias de ser pago para estudar (recordo Sebastião da Gama, que se maravilhava – não sei até que ponto com simples candura de homem bom – com o facto de os professores, fazendo o que gostam, ainda por cima serem pagos…). E viajei bastante, não em férias (outro lugar-comum de incompreensão), mas em trabalho.

Nessas deslocações ao estrangeiro para conferências, seminários, congressos, reuniões de trabalho (que não são a mesma coisa que as videoconferências que certamente vão passar a imperar a partir do corona vírus), conheci muita gente. E, como é natural, pude dar-me conta do espetáculo do mundo académico: há, felizmente, uma variedade ainda muito grande de pessoas nas várias universidades do mundo.

Lembrei-me recentemente de um. Já mal me recordo do seu nome. Não tive mais contacto com ele. Mas uma noite estivemos numa roda de colegas, ao jantar, e pude fazer uma imagem desse professor universitário estrangeiro de grande erudição, ponderação que me pareceu bastante aguda, um certo conhecimento do mundo, apesar de ser ainda relativamente jovem. Por qualquer razão (talvez porque estivesse ao meu lado na mesa, pode ser que estivesse inspirado pela bebida, que contudo ingeriu moderadamente – note-se que há muito que em muitos países as refeições, e sobretudo as bebidas, são pagas do bolso dos académicos, e cada vez mais raras, aliás), abriu-se. Contou a história da sua vida.

Seria inconfidente revelar algumas peripécias, mesmo tendo ele sido discreto. Nem me lembro bem, nem é isso que interessa. Mas há uma que me ficou, e bem gravada na memória, a qual me parece ser muito reveladora de um “ethos”. E que pode ter alguma generalização, não propriamente aos académicos, mas sobretudo a pessoas que estudam, de algum modo (mesmo autodidatas) e que querem, por isso, reconhecimento. Alguém disse que não se estuda para se saber, mas para se ter o tratamento de “Rabi(no)” (Mestre).

Pois ele contou que, tendo sido um estudante brilhante (o que não é raro entre os que se tornam professores universitários – excluindo-me eu, que sempre só estudei o que me apetecia), logo que terminou o curso foi procurado por importantes empresas que lhe ofereciam mundos e fundos de salários (o que contraria também outro mito, de que a função pública é que vive regaladamente). Mais tarde, já doutorado e tudo o mais, seria a política a tentá-lo, para cargo altíssimo, mas pelo seu conhecimento especializado, de grande prestígio (acho que mencionou algo como Ministro de uma pasta técnica). Aí não era a tentação do oiro, mas do poder.

Contou-me que sinceramente se sentiu tentado num caso e no outro. Mas que facilmente recusou um primeiro impulso de aceitação: porque, dizia ele, se fascinava com a reverência dos alunos, mesmo com a fascinação de alguns por ele (graças ao seu renome), e porque, cada vez que publicava um livro (até um artigo), sentia que dava à luz uma criança que iria mudar um pouco a Humanidade.

Era um narcisista? Certamente. Mas benévolo. E isso o levava a uma dedicação total à sua profissão. Solteiro, sem filhos, mas não solitário: casado com a Ciência. Contudo, preocupado com os outros, em reflexo de si, pois confessou-me: uma vez publicado um livro, percorria livrarias que o não conhecessem, e perguntava por ele. Ficava deliciado quando lho mostravam. Cheirava o perfume da tinta recém impressa. Que exalação salvífica! Indagava se tinha vendido muito. E tinha o maior êxtase quando não só lho mostravam, como quando lhe diziam que tinha vendido alguns exemplares (livros científicos normalmente nunca vendem muito – normalmente só bestsellers de divulgação: desfaçamos mais mitos).

Esta é certamente uma versão benévola de quem se toma de amores pelo saber. Mas não deixa de ser interessante a componente da sedução pela fama.

II

“Cuidados e Caldos de Galinha”

Vem tudo isto a propósito (achamos que a propósito) porque, neste momento pandémico, se pode ver o melhor e o pior das pessoas. E uma das guerras que se trava é, evidentemente, a das fake news.

Grandes especialistas, alguns puxando pelos galões académicos (o que não estará mal, porque não são do domínio público os títulos e graus que tenham), vêm a público. Uns, provocados ou convidados; outros, mais ignorados, motu proprio, pelos meios de que disponham. Todos saem da sombra para revelar a sua verdade sobre a pandemia.

Como o meu colega académico, não tendo ido para grandes empresas nem para governos, não terão grande dinheiro nem grande poder, e a fama das suas obras (como a fama académica é frequentemente contextual, confinada a círculos…!) não terá atingido a opinião pública. Mas agora pode ser o momento dos seus 5 minutos de fama, fama  a sério. Evidentemente que, tal como o meu colega académico, a maioria esmagadora destes especialistas (não me refiro a pseudo-especialistas que buscarão a fama pela fama apenas), o seu principal fito é o bem da Humanidade. Nada menos. São verdadeiros filantropos – sem qualquer ironia. São-no mesmo.

Contudo, se ao bem da Humanidade se juntarem 5 minutos de fama, quem lhes pode levar a mal? Não será preço justo por quem sacrificou uma vida ao estudo, e certamente, como o meu colega estrangeiro, recusou dinheiro e poder? E certamente mais coisas, como tempo, lazer, diversão, convívio… Estudar implica grandes recompensas, mas insofismavelmente não um afastamento da realidade, ou do mundo, mas a vida num mundo que prescinde de muitos pequenos e grandes prazeres e faits divers do mundo do comum das pessoas que não estudam.

Mais uma historinha verdadeira. Abandonei o meu confinamento por uns minutos para, armado de luvas, óculos e máscara, ir comprar uns medicamentos à Farmácia e atrevi-me a dar um salto para levar um par de livros aos Correios para leituras de quarentena de uns amigos. Lá, a simpática funcionária, que estava de viseira e máscara, queria persuadir-me a ler mais, comprando livros que agora os Correios vendem, desde que se privatizaram, creio. Lá me desculpei educadamente. Se ela soubesse os livros que tem sempre para ler quem anda nestas vidas: e não só académica. E que inveja de quem está em confinamento, e lê, porque “não tem mais nada que fazer”…

Voltando às declarações dos “especialistas”.

Sugiro que o cidadão normal desconfie sistematicamente das revelações bombásticas em ciência, como o faria (ou deveria higienicamente fazer) com previsões de qualquer guru esotérico. Sugiro que, pelo menos como dúvida metódica, não acredite nas teorias da conspiração, agora embaladas com linguagem científica e (o que não acontece normalmente com os gurus de outras latitudes epistémicas) títulos académicos. Algumas “revelações” a circular com pretensas verdades retumbantes lembram perigosamente o desvendamento das “grandes verdades” que haviam de salvar cada um e quiçá o mundo, propagadas por iluminados de seitas, ou em nome individual.

Na vozearia imperante, mesmo de tantos “especialistas”, qual será a receita para se produzir maior impacto? Se quisesse renome nesta chinfrineira, que faria o avisado leitor? Eu, que não sei nada de epidemiologia nem de infetologia, nem de medicina em geral, nem de estatística, cálculo de probabilidades e afins, sei como se pode construir um discurso falso: com manipulação de estatísticas (mesmo sem dados falsos!) e com um leitmotiv: uma tese simples e diferente do que é em geral acreditado.

Assim, se o fito fosse apenas audiência, ser falado, diria que os outros estariam a mentir, os outros teriam interesse em esconder a verdade, e eu, que represento a ciência pura, desinteressada, iria revelar a verdade. Ora essa verdade, para ter impacto, não pode ser o que a gente toda sabe: a relativa opacidade dos números, a sua suscetibilidade de manipulação, a grande incógnita sobre o significado de um dia baixarem os óbitos e no dia seguinte poderem disparar… Todas as reticências e reconhecimento da falibilidade humana não vendem, não entusiasmam. É preciso (como nas práticas “mágicas”) ter total autoconfiança. Apresentar-se como dono da verdade.

Os candidatos à fama científica à maneira dos gurus esotéricos têm uma receita muito simples: o exagero, as revelações contra o mainstream, a teoria da conspiração.

Numa situação em que, ao que tudo indica muito justamente, as pessoas andam preocupadas e respeitam o confinamento, há um moderado alarme social. Não é pânico, não é alarmismo. Mas não é inconsciência. Por isso os Portugueses, em geral, quando começaram a aperceber-se do perigo, tomaram as suas precauções. E parece que isso tem resultado.

Ora, na nossa muito modesta e leiga opinião, as opiniões que mais inflamarão as almas simples, crédulas, e já aborrecidas de estar em casa, serão as bombásticas. A mais suscetível de alcançar fama é, em países como o nosso, em que não há um poder a fazer a desvalorização da pandemia (como há noutros), tratar a situação como uma gripezita, ou ainda menos grave que a gripe.

Amanhã, quando se virem pessoas na praia, aos magotes, talvez elas mostrem nos seus telemóveis vídeos ou artigos como salvo-conduto para a sua irresponsabilidade. Presume-se que as discotecas não abrirão ainda… Se não, lá teríamos esse álibi nas discotecas.

Perante uma situação de perigo, dizer-se que é tudo uma invenção, uma conspiração, pode ter sucesso, até porque alguns irão difundir essas teses apenas por curiosidade, e poderá ter sucesso viral.

Habituei-me a desmontar a mentira e a inconsistência dos textos pela análise das suas fontes e muitos outros critérios de “crítica”.

Há um critério muito importante, que é o fito não filtrado dos autores dos textos. Algo que ressalta a um observador atento, mas que o autor deixa passar inadvertidamente. O cidadão deve estar atento a esses “atos falhados”… Por exemplo, se um texto que deveria ser estritamente científico repetidamente deixar passar críticas políticas contra os poderes que decretam estados de emergência (sobretudo se denotando completo desconhecimento jurídico), tal poderá quiçá revelar os objetivos não só científicos do mesmo. Pelo menos será caso para investigar com acrescida desconfiança. Já que será inegável que o que alguns acabarão por reter será apenas que os poderes teriam respondido mal (sabe-se lá com que intenção… sempre remissão para as intenções ocultas e perversas) a uma gripezita, e que se trata apenas de uma gripezita.

Do mesmo modo, nos antípodas desta linha, porém, também o catastrofismo (sanitário ou económico) pode ser um meio de procurar audiência. Em geral, os profetas da desgraça acertam – porque a situação, naturalmente, não irá melhorar. Portanto, mesmo que se pinte o monstro com cores um pouco pesadas, o alívio relativo que possa vir a ocorrer desculpará aos que exagerem.

Entre os catastrofistas e os desvalorizadores, à cautela, é melhor prepararmo-nos com esperança e responsabilidade para ainda muita luta. Não creio que seja uma posição civicamente louvável dar palco e fama aos propagadores de teorias da conspiração desvalorizadores da dimensão e gravidade da pandemia.  Não estou, obviamente, a falar de limitação da liberdade de expressão, mas apenas da inconveniência de uma ingénua propagação viral de ideias que a todos podem custar muito caro por levarem a baixar das defesas. “Cuidados e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém”. O descuido, o baixar as guardas, sim. Pode ser fatal.

O meu colega estrangeiro nunca terá os 5 minutos de fama de um especialista destas matérias médico-matemáticas. Pelo menos, nunca os terá desta forma “à maneira dos gurus”. É tranquilizador, porém, como podemos vê-lo (se ainda estiver vivo, se não tiver contraído o vírus) a utilizar o confinamento para escrever mais uns livros sábios, que não farão, em princípio, mal a ninguém… e o encherão de vaidade quando, passada a pandemia, pelas medidas de contenção e pelos avanços reais de uma ciência biológica, farmacológica e médica que não busca o protagonismo, puder voltar a fazer a sua ronda das livrarias, e perguntar, como uma criança: “_ E o livro do professor Fulano? Têm?”.

“_ Sim, Senhor Professor Fulano. E tem-se vendido como pãezinhos quentes” – responderá, faceto, o vendedor.

Os dois com máscara.

Li de soslaio o título: “O Estado de Emergência não suspendeu nunca a Constituição”.

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Paulo Ferreira da Cunha cursou as Faculdades de Belas Artes e de Letras da Univ. do Porto, onde chegou a Catedrático da Faculdade de Direito. Doutor de Coimbra e Paris e Pós-Doutor da USP. É Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Portugal. Publicou vários livros de poesia, ficção e ensaio, tendo ganho um Prémio Jabuti.