TROVA DO CONFINAMENTO – por Paulo Ferreira da Cunha

Ao mundo sou estrangeiro:
A este mundo brutal,
Sem lei, nem rei, nem bornal,
Sem razão, tão mundanal,
Em que nem a língua entendo.
Figuras vou eu pois vendo,
Na caverna projetadas:
Em televisão vão nascendo
E morrendo – não são nada.
Na minha casa encerrado,
Poucos passos de prisão,
Abro livros que me vão
Levando p’ra todo o lado.
Pois desse confinamento
Não me queixo, nem por isso.
A minha grande questão
Está mais fundo, em sentimento.
Ao mundo sou estrangeiro:
Quer dizer, ao mundo vão.
É preciso que uma mão
Me guie, no meu intento
De entender este portento.
Não será projeto vão?
Já tenho idade pesada,
Já andei por muitos lados…
Estudei muito de Nada,
Os meus olhos estão cansados.
Os olhos e o entusiasmo!
Coisas que aos outros acendem,
A mim me causam marasmo
E tantos para o vão tendem!
Procuro o Absoluto!
Procuro em vão a Verdade!
Mas ao menos nesta idade
Não me impinjam um produto!

Ainda tenho em coração
E na cabeça bem clara
Um mapa da situação
E imaginação não para.

Ainda tenho a Esperança
E sei o que é o Amor
Ainda sonho co’a Bonança
E creio em Nosso Senhor.

É imensa a Compaixão
Quase sem fim solidário.
Mas não me peçam, ai não,
Que acredite num otário,
E cometa a vil traição
De trocar a integridade
Por qualquer meia verdade,
Ou então falsa verdade,
Que me venda a Ilusão.

Prefiro sem paz morrer
Prefiro afundar n’angústia
Na dúvida quero arder
Se tiver que me perder
Na Mentira dos sem rosto.

Tudo o mais é fogo posto.
Eu não compro a Hipocrisia.
Só lamento, com desgosto,
Que ela ludibrie e ria
Dos pobres que ilude a gosto.

Volto para o meu castelo.
Nele tenho amigos leais
Os meus livros, pouco mais.

E fico com meu cutelo
Que corta a eito os rivais
Deste meu puro desvelo.

https://youtu.be/3LjU7e9nz60

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Paulo Ferreira da Cunha cursou as Faculdades de Belas Artes e de Letras da Univ. do Porto, onde chegou a Catedrático da Faculdade de Direito. Doutor de Coimbra e Paris e Pós-Doutor da USP. É Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Portugal. Publicou vários livros de poesia, ficção e ensaio, tendo ganho um Prémio Jabuti.