RECEITUÁRIO DE SONHOS – por Wander Lourenço

 

Receituário de sonhos através da literatura

Em sua obra intitulada A interpretação dos sonhos, o psicanalista Sigmund Freud explicita que esforçar-se-ia por elucidar os processos a que se devem a sua estranheza e a obscuridade, ainda que pouco ou nada que aborde a sua natureza essencial possibilite uma solução final para qualquer dos enigmas dos sonhos. Deste modo, aviso aos navegantes: a crônica não se predispõe a elucidá-lo, absolutamente; entretanto, se inclina a utilizá-lo como metodologia de leitura, que prognostica a prevenção como modo eficaz de combate às aflições psíquicas do Homem pós-moderno. Neste compasso, eis que se prescreve o Receituário através da literatura, sob forma de breve contribuição ao estado de saúde mental do Leitor, que se quer são e hígido em lucidez. Assim sendo, o indivíduo apto ao ato de Ler anteceder-se-ia ao diagnóstico clínico, subscrito pela consternação agônica do espírito, às margens do abismo da existência que, por vezes, impele o ser humano ao suicídio físico ou moral. Continuar a ler “RECEITUÁRIO DE SONHOS – por Wander Lourenço”

EDITORIAL – EM LOUVOR DO EFÉMERO – por Rodrigo Costa

Em Louvor do Efémero

… Continua a ter-se por sabor a injusto o fim das coisas e dos seres a que nos apegamos. E, tratando-se de coisas e seres que amemos, o desaparecimento provoca, para além do desconforto, a reformulação no modo como passamos a olhar tudo o que nos rodeia, sendo a consciência abalada pelo reconhecimento de que a nossa evolução depende da importância que atribuirmos ao efémero e, consequentemente, ao desprendimento como defesa que ameniza os ímpetos do Instinto de Posse —instala-se a certeza de ser ilusão sentirmo-nos mais do que usufrutuários. Continuar a ler “EDITORIAL – EM LOUVOR DO EFÉMERO – por Rodrigo Costa”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (3) – por Lúcio Valium

 

Le Mirroir, by Pablo Picasso 1932

ANTONÍMIAS

Sair da cama após duras batalhas por bocados de sono. Azuis laranja nascem na escuridão enquanto olho o rio. Escrever-te na sala de máquinas de alta temperatura. Afastado de vozes e vacuidades. Reencontrar o doente do 24 e ignorar os figurantes da sala central. Algumas antonímias na jarra do dia.

Bem vistas as coisas uma delícia num rasgo cósmico. Assim me apresento à geometria demente da eternidade. Com o casaco insondável que me deste. E me é querido na sua compostura irreal. Com sublinhados de alfaiataria ébria. Diz-me o do 24 que estou a andar mais lentamente e com cadência melancólica. Coitado dele o mesmo lhe acontece. Mas tem ainda argúcia para detectar traços novos na história repetida dos homens. Saberá ler os olhos. Quem terá sido o que terá lido pergunto-me. Conhece certamente a poesia do não escrito. As palavras que nos olham por dentro. Encontros ao nascer do dia com o inesperado. O belo nas garras de uma fêmea. O único ocupante do quarto 24 é livre em seu pensamento de bebedor solitário.

Na verdade há uma lentidão nos passos. Mas apesar do feroz ataque da insónia a disposição é boa. Ler no espelho a tua escrita foi o melhor dos vinhos. Sempre gostei de palavras em vidro. De sensuais letras vermelhas. E vi o dia nascer na rua. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (3) – por Lúcio Valium”

ESCRITOS DE LUZ E DE SOMBRA – por Cassiano Russo

by Ondosan Sinaa

O Espírito do Niilismo

Eu sigo o caminho das nuvens escuras. Sou como o Sócrates de Aristófanes. Sim, sou um sofista. Minha função é levar a dúvida aonde houver fé. Mas não se enganem, meus senhores, não sou um pregador, sou apenas alguém que duvida. Só isso. Nas horas de folga, duvido de mim mesmo, pois carrego o espírito da dúvida, que dissemino por todo o globo. E vocês, com suas certezas, precisam entender que fabulações de mau gosto não são melhores do que a estória de chapeuzinho vermelho. Eu não sou o lobo mau que devora a avozinha.

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A VIAGEM DO ELEFANTE – por Celso Gomes

A VIAGEM DO ELEFANTE         

Em maio deste ano, publicamos na Athena o artigo Quem Porfia Mata a Caça, no qual procurávamos analisar o romance O Homem Duplicado de José Saramago. O tempo passou, outras leituras vieram e me esqueci por completo do escritor português até que li uma notícia antiga sobre sua doença em um jornal do Rio de Janeiro, meses antes, de Saramago ressurgir nos cadernos literários brasileiros com entrevistas e um novo livro publicado: A Viagem do Elefante. Continuar a ler “A VIAGEM DO ELEFANTE – por Celso Gomes”

RESENÃ A “PUPILAS DE LOCO” DE VICTORIA MORRISON – por Claudia Vila Molino

Leer este libro implica adentrarse en la pequeña y gran muerte, como sombra que levita en forma trascendente y no opone resistencia. Sabiendo que en nuestra cultura occidental la actitud frente al suceso de la muerte lleva consigo una gran carga de temor, desgarramiento y dolor frente a un hecho ineludible, como es enfrentarse cara a cara con el temor a lo desconocido. Debido a esto, asombra esta hablante quien transita desde el inframundo hacia el exterior, en cierta medida su poética posee sesgos del gótico, llevado a nuestra época contemporánea. Ella descansa en las aguas mortuorias adquiriendo naturalidad y como una transeúnte con experiencia en estos lugares se desplaza hacia la vida y luego vuelve a sumergirse en los hábitos del antiguo mundo. Continuar a ler “RESENÃ A “PUPILAS DE LOCO” DE VICTORIA MORRISON – por Claudia Vila Molino”

TEM PATRICIO NOS SETS BRASILEIROS – por Danyel Guerra

FERNANDO DE BARROS (Foto: Leo Feltran)

“Silvino Santos não foi mais um nome para os empoeirados arquivos de cineastas primitivos. Soube sempre colocar sua consciência profissional acima de quaisquer especulações esteticistas”           

                                 Alex Viany

Em Portugal, está ainda por inventariar e historiar, de modo sistemático, abrangente e rigoroso, a muito estimável contribuição dos imigrantes lusos para o fomento, incremento e desenvolvimento do cinema brasileiro. Continuar a ler “TEM PATRICIO NOS SETS BRASILEIROS – por Danyel Guerra”

UM GATO É UM GATO É UM GATO – por Fernando Martinho Guimarães

 

by kirsten bühne

Do gato se pode dizer o mesmo que se diz da tradição: já não é o que era. Mas como o gato não faz a mínima ideia do que isso quer dizer, continua sendo o que sempre foi, o único ser que nos olha sempre de cima para baixo. Na impossibilidade de o domesticarmos, tudo indica que o gato tomou, algures no tempo, talvez há nove mil anos, a iniciativa de nos domesticar. A medida mais recente é a invenção da internet e das redes socias, cuja serventia mais prolífica consiste no facto de podermos partilhar pequenos filmes de e com gatos. Neste processo, não é de desprezar o filme Aristogatos que nos faz crer que toda a gente quer ser gato. E, porque esta metamorfose está destinada ao fracasso, ficamo-nos pelo arremedo de ter um gato…em casa. Trata-se, como é fácil de ver, de mais uma estratégia de gato. Continuar a ler “UM GATO É UM GATO É UM GATO – por Fernando Martinho Guimarães”

POESIA – de Francis Kurkievicz

 

MAGO

Na floresta para Waldberta
O guia perde o poeta.
Na serpentecostal selva remotta
Um criancião paracleto
O aguardava com sinais cristântricos.
Do cóccix à pineal
Pousou o mestre a mão
E alçou alucifeéricos fogos pecúlios
Despertando-lhe uma pedagogia petrográfica aprendiz.
E o poeta petiz
Reencontrou-se guia apóstata
Ifá de Orumilá.
Axé! Ave! Amém!

Continuar a ler “POESIA – de Francis Kurkievicz”

POESIA de – Lua Pinkhasovna

 

Espelho de Afrodite

Entre constelações, esferas rochosas, violentas estrelas mortiças e cintilantes cometas, nascer Vênus pode ser considerado uma afronta ao restante dos planetas
Pisando em trompas, ventres, ovários e vulvas e aquela mistura que poucos sabem ao certo o nome, lambuzo-me de sangue menstrual derramado nas ruas
Há polícia? O que há? Será que alguém me escuta? É claro que não, eu sou notícia corriqueira de uma realidade fantasticamente banal
O sangramento da violência não é repudiado, apenas é visto com asco aquele que mostra que sou um ser próprio, forjada em minha natureza
sem ser sexy, sendo apenas espécie
e que sinto por fora e por dentro me desmanchando em vermelho Continuar a ler “POESIA de – Lua Pinkhasovna”

A ÚLTIMA CEIA COM AS ESTRELAS – por Madalena Medeiros

“The Sacrament of The Last Supper”by Salvador Dali

 

Na eternidade boreal…

Vislumbra-se rumos dissipados em névoas!
Fragrâncias fortes e inesquecíveis,
Patentes num céu boreal.
Onde vou cear e adormecer esta noite?

Volvido nos rodopios da noite boreal,
As minhas Asas esbatem-se, num
Céu turquesa e anil, reluzem
beijos eternos de seres florescentes.

Felizardos dos eternos olhos!
Sentados em estrelas, donos
De um universo escuro e eterno,
Pincelam singelas e extemporâneas vidas.

Eternidade boreal! És sobejamente,

Luz de milhares de anos,
Despertar do adormecido,
E de estrelas que cintilam
aos olhos famintos de indignos de ti!

♣♣♣

ALCANÇADA A TUA LUZ, ELA É…

Mundo invisível, leve e solto
Em que as penas, são POESIA!
Onde a alvura é daltónica
Aos olhos do Ser espiritual…

Ouvem-se Gargalhadas e correrias,
nas estradas de luz em série!
Avistam-se Campos de feno matizado,
Em telas exuberantes e infindáveis..

 

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7 POEMAS DO CORAÇÃO (…) – por Maria Toscano

… de trevos e rosas imaculadas
by hernan pauccara

1.

há muitas palavras para mentir e apenas uma para a verdade.
no jardim das maravilhas da minha vida
jazem vários caules hercúleos,
eternamente iluminados pela seiva
interna
a correr desde o coração.
morrerei já não jovem, sei-o agora.
e do passar dos tempos sei, também agora,
que as convenções podem matar o brilho de um olhar
uma covinha no rosto
um arrepio na nuca.
só que nunca o amor será vencido.
mora em lugar altaneiro
onde poucos acedem
de onde muitos desabam
– ali
ao alcance da tal palavra pura. Continuar a ler “7 POEMAS DO CORAÇÃO (…) – por Maria Toscano”

3 POEMAS DE “AZUL INSTANTÂNEO”*- por Pedro Vale

É preciso viver sem paixões.
Mergulhar no absoluto anonimato,
Permanecer morto ou vivo até ao fim.
Aclamar o tumulto escuro e bruto.
Encenar o drama clemente e lento.
Sentir um amor ideal por anjos nebulosos.
Descobrir um novo fundo de poesia e aguardar
uma voz que nos ordene docilmente:
– Não te movas, nem te inquietes,
nem traias o que
ainda não
és.

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A GUERRA E O AMBIENTE – por Ricardo Amorim Pereira

A guerra e o ambiente.
Preocupações coexistentes.

Praticamente ninguém nega que vivemos tempos de exceção. Ainda não ultrapassamos, por completo, a mais grave pandemia em 100 anos e, no início deste, deparamo-nos com uma guerra de contornos anacrónicos. Como fruto dessa guerra, ressurgiram os fantasmas da confrontação nuclear; a ordem internacional foi abalada, abrindo-se a porta para o reaparecimento de um tipo de guerra que julgávamos fechado nos livros de História – o que visa o alargamento territorial; o custo de vida, um pouco por todo o mundo, disparou. Neste contexto, que lugar passou a ocupar a questão ambiental na escala de prioridades dos cidadãos comuns bem como na dos políticos que nos governam? Em 1971, Ronald Inglehart afirmou que, desde a Segunda Guerra Mundial, na Europa Ocidental, terá havido uma mudança nos valores priorizados pela sociedade. Segundo este autor, nesses países, o aumento, quer do bem-estar económico quer dos níveis de segurança, permitiu a passagem de paradigma nos valores de um, assente no materialismo, para um outro, assente no pós-materialismo. A ideia subjacente a esta teoria é a de que apenas quando as necessidades mais básicas estão satisfeitas é que a atenção se move para questões que não se prendem, diretamente, com a subsistência. Na mesma linha de raciocínio, Müller-Rommel (1998) referiu que, nos anos 70 e 80 do século passado, nos países desenvolvidos, se assistiu a uma mudança cultural, marcada por um forte crescimento das preocupações sociais que vão para além da satisfação das necessidades básicas. A igualdade de direitos, a atenção às minorias, as preocupações ambientais, a solidariedade para com o chamado Terceiro Mundo, as exigências de desarmamento, entre outras, assumiram-se como novas exigências da sociedade para com a classe política.

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ARQUITECTURAS – de Ricardo Amorim Pereira

Foto de Paulo Burnay

1.

Falta paz
Não apenas a ausência da guerra
Falta faz termos paz
Nada desejarmos ou querermos mudar
Falta nos seres algum “deixa para lá”
“Tudo bem”
“Não faz mal”
Ninguém pediu para nascer mas depois tudo nos é pouco
Quando o pouco do que não pedimos
Quando nada éramos
Nos devia bastar
Contentar
Se assim fosse
Se o pouco dado ao nada que corre para o nada fosse muito
Teríamos tudo
Tudo temos porque sim
Por Deus ou pelo destino
Só nos falta a lembrança do que somos e para onde iremos
Quando nada formos e não nos acharmos
Nem mesmo a reclamar   Continuar a ler “ARQUITECTURAS – de Ricardo Amorim Pereira”

CONVERSA DE ESTÁTUAS – por Wander Lourenço

 

Conversa de estátuas

Drummond, Caymmi, Pessoa e Clarice

 

Dorival Caymmi

Eram meados de maio do ano da graça de 2022 e a imperiosa Copacabana transpirava uma brisa à Jonny Alf, quando a estátua do compositor Dorival Caymmi, que saudara a “princesinha do mar” em antológica canção praieira, se aproximara da escultura do poeta Carlos Drummond de Andrade, para dois dedos de prosa sobre as amenidades da vida e a arte da sobrevivência nesta São Sebastião do Rio de Janeiro.

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DA ERRÂNCIA DO MAL (…..) – EDITORIAL – por Artur Manso

“A Guerra” by Sara Vasconcelos

…OU DA NATUREZA DA HUMANIDADE

 

Onde está o perigo cresce também o que salva

Holderlin

24 de fevereiro de 2022. Mais uma vez, em plena Europa, a Rússia, Pátria de Gogol, Turguêniev, Tchékhov, Dostoiévski, Tolstoi, Pushkin, Borodin, Stravinsky, Eisenstein, Tarkóvski, por decisão do seu governo presidido por Vladimir Putin, irrompeu pela vizinha Ucrânia, causando destruição, sofrimento e morte inusitadas, sem qualquer propósito para lá do domínio territorial e da desmesurada manifestação brutal da força bélica. Mais uma vez milhões de pessoas que apenas querem ter uma existência tranquila, são expulsas do seu território que a força das armas reduz a escombros. A segunda grande guerra na Europa só findou em 1945, a horrível guerra na ex Jugoslávia teve inicio nos anos de 1990 e arrastou-se até ao inicio do século XXI. A invasão do Iraque aconteceu em 2003. Na Síria decorre uma guerra civil que foi iniciada em março 2011. Se a isto juntarmos diversos conflitos menores e a sangrenta e quase permanente disputa entre israelitas e palestinianos, os confrontos na Irlanda (só em julho de 2005 o IRA anuncia o fim da luta armada) ou no vizinho País Basco (só em janeiro de 2011 a ETA adotou o cessar-fogo permanente), o ataque às torres gémeas nos Estados Unidos da América a 11 setembro 2001, os massacres em França, do Charlie Hebdo a 7 janeiro 2015 e em 14 novembro no teatro Bataclan, ficamos com uma panorâmica recente da peregrinação do mal e da guerra. Como lembra o dramaturgo Bertolt Brecht (1898-1956), seja por questões metafísicas ou por corriqueiros interesses materiais, a civilização que os homens construíram, tal como relatado na Bíblia, em Homero, nos trágicos gregos, Shakespeare, Dante, Cervantes e tantos outros, está a transbordar de guerras cruéis e fratricidas, dos maiores horrores e atrocidades. Também Hanna Arendt ao relatar os testemunhos dos carrascos julgados no pós guerra, conclui que a natureza humana é servil aos maus instintos daqueles que detêm o poder, levando pessoas normais a obedecer cegamente e provocar sofrimento nos seus semelhantes. Continuar a ler “DA ERRÂNCIA DO MAL (…..) – EDITORIAL – por Artur Manso”