RELÓGIO
O que marca o tempo? O que decide que é hora? Sendo estas frases interrogações olho para dentro, depois de ser usado pelo mecanismo impiedoso. E acontece ver. Sentir nas vértebras o uivo da resposta. O agora é a medicação. A fórmula falível. Farei do corpo uma mercadoria saqueada. Será roubado dos lugares coercivos e irá visitar imprevistos. Será uma vida enviada para desvendar. Furtando-se aos limites institucionais terá a arma do homem sozinho, um pensamento em movimento. Eu respondo ao que vivi e vou sem rumo sabendo do conforto da hospedaria. Sei quanto te quero, em desvio sempre para ti.
AO LONGE
Deram-me medicação errada. Sem saberem foi melhor assim. Andei semanas à deriva. Desertei da instituição em transe. Não tinha sítio onde ficar para onde fui. Havia montanhas monstruosas, e grandes planícies. Era uma zona fria. Depois indicaram-me um quarto com duas pequenas camas. Um velho sofá e uma cadeira a desfazer-se. Um guarda-fatos torto. A janela não abria. Escadas de pedra levavam-me ao cubículo. Eram dias de estranheza. Eu era uma experiência. Decorria no meu corpo um ritual animalesco e doloroso. Tinha alucinações. Ouvia a tua voz na música ventosa e escorriam em mim as memórias das nossas noites. Via as coisas com os teus olhos e falava com ninguém como se ouvisses. Um voo solitário sem guia ou prescrição. Teria que procurar um terminal. Estava mergulhado numa intensidade de imprevisto a sugar dias narcóticos e agora vi as tuas novas botas em tons de azul.
FERIDAS
Hienas famintas cravam-se nos passos que tento dar. Na instituição anunciam-se testes lógicoencefálicos. Abstrações de horizonte pragmático. Cadáveres teóricos tentam ferir-me as livres associações. Desenho um risco com fracasso assegurado. Os corredores voltam a ser um circuito inflamado. Regressa o outono quente e doentio em sua inusual vestimenta. Os humanos empurram os dias sem interrogações. Mantém-se a ausência. Aquisições orientadas por usurários Implacáveis. Produtos infiltrados nos seres. Aqui os documentos colam-se às têmporas do indivíduo. Grelhas para anular opções. Saio das salas da administração com dias contados. Faço o caminho para a hospedaria para inventar caminhos.
PLANOS
É um transe de Liberdade que move a doce vertigem. Encontro cláusulas na estrutura que podem ser movidas. Removidas. Vou remar. Há uma vida. Teremos ainda outras. Subo a rua por trás da grande estação. Procuro um poiso para beber. Ao balcão peço um copo de vinho e não penso enquanto bebo. Peço o segundo. Depois outro. Viro o olhar e reparo no do 24 sentado ao fundo. Sozinho. Bebe bagaço e parece um pouco embriagado. Dirijo-me à sua mesa com ebriedade em curso e sem o cumprimentar puxo uma cadeira e sento-me. Levanta os olhos lentamente e eu murmuro insólito. Ele pergunta quem é o insólito. Eu respondo o próprio. Pede dois bagaços. Bebo de um trago e saio sem que ele mova o olhar. Nesse silêncio nessa ausência de olhares está muito do que nos une. Já na rua vem-me à mente como foi bom jantarmos na cozinha e como ficam bonitas as caixas de madeira que trouxeste.
ESTRADA
A instituição fará a sua investigação. Haverá decretos para encurralar doentes perigosos e medidas para reprimir os inadaptados. Uma intervenção cosmética virá amaciar corações insubmissos e compensar almas sensatas. Tudo dentro da partitura quotidiana. Viro as costas às grandes portas. É um gesto. Saio dali. Na hospedaria as horas meigas viram o mundo do avesso. As páginas vivas colam-se às paredes óticas. Outro jantar na cozinha tão bom. O gengibre e a canela a ajudarem os corpos golpeados. Palavras e beijos. O do 24 escreveu-me. Está em Cortegaça a passar uns dias na caravana de um amigo. Falou-me de um livro de história das utopias que vi por acaso na tua mesa junto à jangada. E disse por fim, não há utopias. Faça uma.
SILÊNCIO
Murmurar os eflúvios raros para melhor os acariciar. Sabendo do furor das grandes iluminuras e da cegueira convincente. Mas destilemos a loucura que nos vier. Que seja um sopro de fogo nos ossos. Que se fodam. Não vamos vestir o colete deles, nem saborear ração de amoníaco ou inalar o odor da farsa ininterrupta. Farejar a fenda é mais inebriante. E mergulhar em sonoridades íntimas. Seguir medicação de improviso. Na instituição regressam as marcações. Designam controladores. Reprimem corpos e aprisionam mentes jovens. Não respondo aos recados e desapareço outra vez. Entro num bar como se tivesse chegado de um oceano longínquo. Bebo. Fico por ali a beber. Mais tarde vou estender-me na hospedaria e esperar que chegues para saborearmos as primeiras chuvas do outubro doente.
NÓ
Breves sirenes indicam os ritmos temporais. Há máquinas educadas para delinear as atividades viventes. Batas brancas e azuis como insetos mecânicos. Discursos corroem vozes. Olhos embaciados gastam o real suportado por imposição. Tudo aqui é linha repetida, montagem miserável. Nas saletas não utilizadas é ainda possível o inventário. Fico sentado de olhar quieto. Apetece-me subitamente beber absinto. Há largo tempo que o não bebo. Penso em homens duros que conheci e na vontade de partilhar o balcão com eles. O corpo fala em sua gramática de afetos. Uma oficina de arquivos. Aparece a virose que mede as luas antes do cadafalso. Na terra há homens que põem os pratos para falar e vão longe até às casas com cheiros. Retomam diálogos parados há muito. Fazem travessias solitárias encontrando o seu canto mental. Assim bebem alguns desafiando a vida como cárcere. Absorto sou interrompido pelo do quarto 24. Bate na porta e faz-me um sinal indicando o bar. Levanto a mão agradecendo mas não vou. Hoje preciso de espaço para falar sozinho. A passagem do homem de pouca palavra levou-me a ti. Ao conforto da jangada com suas mantas decentes. Às pedras que repousam na tua mesa. Ao voo da fêmea vestida de branco que te perfuma o olhar. E voltaremos ao tinto do norte mais aveludado e encorpado. Das tuas mãos saem bordados. Móis café. Podas plantas. Misturas legumes. Falas com mel gengibre hortelã e canela. Com orégãos alho salsa limão. Eu olho-te. Sabendo do tempo que vivemos farei a refeição da nossa noite. Os teus olhos e as velas na cozinha.
CIRURGIAS
Fico na hospedaria mergulhado em paisagens sonoras seguindo linhas de texto. Audiovisões íntimas. Deixo que o tempo faça atividade mental. Não tenho ofícios assegurados. Desconheço que poiso esperará o forasteiro. Saio dos fluxos para os compartimentos. Há material de carpintaria e químicos. Um silêncio com raízes inquietas contrasta com a verborreia da instituição. O tempo e as paredes não oprimem. Palavras e passos são folhas no vendaval. Mentes de gato voam em sua busca.
COSTURAS
Não se trata de coser os lábios de uma ferida mas de enfiar outras linhas na vida. É um ofício. Poesia. Chamemos-lhe golpe na face do que existiu. Na instituição o que resta são condenados à morte. Os mais velhos arrastam-se um pouco mais de tempo. Os jovens atropelam-se para encontrar finalmente a sua doença. Há quem ainda saiba o que é ser. Muito poucos. A normalidade abriga-se na cortina opressiva. É preciso manter as máscaras. São elas que habitam aqui. Têm histórias individuais e prezam as hierarquias. Limitam-se a inspirar e espalhar os vírus de sempre. Repetições contínuas. Consumismo ordem e aparência. Obediência frivolidade e formatação. De maneira que um quarto vazio é um oásis. Uma caixa de música ou um armazém de encontros. Aí o cérebro é errante. Aguardente em noite de invernia. Arqueólogo do que está para vir. Deste modo se move o sonâmbulo que pensa na tua pele enquanto rasga fórmulas medicamentosas.
ARES
Estava encostado a um poste e um decreto apareceu. Foi um gajo que passou e me fez sinal. Eu já tinha dado umas voltas. Era o passado. Uma vez precisei de um médico especialista em coisas da vida. Estava danificada a zona de componentes íntimos. Mas não estava distraído. E havia os que abriam sempre uma garrafa. O que se aprende é para a vida. É isso arte. Uns bons anos tinham passado e fui abraçado por uma história antiga. Há mais de uma década que almoçava sopa. Um exercício que me enternece. Como camas de presidiário e sofás a dois. No entanto continuava o progresso diziam. E a devastação digo. Não faltam avisos. O que acontece aos que andam atentos. Pergunto. Não há tempo o corpo acumula-o. Logo virão outros abutres ocupar os ecrãs e brilhar nas salas. E um homem pensa a vida está a passar. O melhor é ir comprar umas beringelas. Ultimamente tem aumentado o zumbido nos ouvidos. Não é bom. O interessante é que está tudo aqui. Assim surgiu o plano. O que é um fracasso pergunto. A questão é que os meninos nunca irão acalmar. A ganância é um gerúndio implacável. O ser interrogante deve tentar respostas. Cicatrizes lambidas e voltamos à mesa de bilhar. Com os dados que tenho não irei longe. Que a queda me atraia não é de estranhar. De onde veio isso. Não respondo. Com as mãos nos bolsos desloquei-me ao bairro das ampulhetas encardidas. Aí saboreei um bocado de real. Eu e o ambiente. Quietos. Em curva descendente para lado nenhum. Entretanto recebo um telefonema simpático. É necessário acertar agulhas. Indicação dos estilistas do reino para gamar o pessoal. Às vezes caía em mim e sonhava enquanto me arrastava por vielas esconsas. Fazer tudo ao contrário. Tinha pensamentos oblíquos vistos de um certo ângulo. Começou o vendaval quando tudo parecia calmo. E foi em noites mal dormidas que se anunciou o virar da história. Ainda não vieram à minha procura mas não devem tardar. Tenho aqui um furúnculo para lhes oferecer. Vi há bocado os classificados no jornal. Há pequenas redes teias fortes como vento louco.
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Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!
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