UMA NUANCE NAS NÓDOAS IV – por Lúcio Valium

Fotografia: © Carlos Silva,

BECOS

Parece que só ouço ecos e vozes imberbes. No grande átrio os serventes espalham neurose. É preciso nervos de aço. Uns tiros para o ar seriam ouro. Dói-me o corpo. Sinto frio e arrepios. O peito rasga-se quando vem tosse. Arrasto-me junto às paredes intoxicado em fármacos. Gemem articulações e narinas. Parece que fui espancado. Era bom ouvir a chuva contigo. E oferecer-te flores, delírios, prosas e gerúndios.

A diretora já teve outras vidas, penso. Continua a aceitar o meu jogo. Deixa-me dormir nos intervalos e pegar em livros sem avisar. Acomoda as minhas falhas. Emociona-se com as minhas fugas. Permite que me abram compartimentos pouco usados. Aí saboreio linhas de tempo, uma fuga sonora. Lavo a gordura do interior craniano. Limpo cicatrizes e invento monólogos implacáveis contra este real podre. Mantenho-me à margem das imposturas diárias. Sou um ser inviável, dirão alguns com a sua pragmática. Ou intratável, considerarão outros. Em sua intocável gravidade, não verão melhorias, digo eu. Estou vivo e já não tenho muitos anos para enlouquecer. É um pensamento que me preocupa. Estaria interessado em abordar o assunto. Saibam senhores que caminho cada dia para ser mais livre e encontrar companheiros da mesma laia. Dos que não fazem vénia às montras, onde tirania e santidade  são vendidos como salvação. Negócios de carne humana e sangue da terra. Como diria o do 24 uma história de terror fino corre nas veias grossas do poder. A eternidade é um programa de injetar cegueira nos humanos. Vou a outro lado.

OPERAÇÕES

Aparente calma nos longos corredores sanguíneos. Há salas vazias. Funcionários de casaco azul passeiam e encostam-se como gatos lentos. Deslizam secretamente violentos relatórios e erguem-se grelhas demoníacas. É possível radiografar a fragilidade dos homens. Tratam-se dados para um comando mais eficaz. Movem-se fios para aumentar a obediência e aprofundar a servidão. Eu como sozinho. Olho os juízes e os objetos com asco. Resolvo pequenos enigmas e corto arames. Quer dizer treino fórmulas e afio pensamentos. Desejo que os dias sofram golpes. Desenho-os em cálculos fundos de silêncio e em guerrilha solitária. Desobedecer é como viajar sem dizer onde foste.

Vejo a pele da hospedaria mais pintada. Tu fazes o encanto dos momentos. Fogo e especiarias acompanham a tua noite. Uma cozinha de olhar despojado. Tintas que mantêm o seu vestuário. Tudo nos teus dedos antes do sono e da morte. Depois chegas e acaricias suavemente as costas do homem que dorme ancorado nas tuas mãos.

PLANTAS ÍNTIMAS

O improviso pode ser belo e o vagar a ligar fios de cabelo, um ópio raro. Ninguém prende o tempo. Querer saltar do agora é uma doença íntima. A música desenha líquenes cerebrais. Tudo se joga na escuta das aranhas. Eu também de algum modo te via pensar, com os bichos. Sabemos que os doidos se atiram sem esperar óbvios festins. A resposta está nos gestos e uma noite de trovoada que é o ouro da alma. Especialmente para quem ensina gramática aos morcegos. As enfermarias não tratam esta equação e ignoram os golpes dos que não têm alma nem ouro. São humanos de chão, decretam as chefias. A atenção vai para os que se elevam, dizia-me o homem do quarto 24 um dia destes ao almoço. Mas temos as nossas armas. Saiba ser invisível. Continuou. Faça os seus dias, e se os trâmites o sufocam saia e não diga nada. Saia como se eles não existissem. E ele saiu com um sorriso meigo. Um sorriso tão simples como as suas palavras. Ao anoitecer passei no escritório. Havia folhas escritas espalhadas pelo chão.  Deve ser da fúria dos mares. Li algumas e desapareci algum tempo. Regressei já tarde. Chove cá dentro em alguns sítios. Deve-se aumentar o uso da hortelã. Construíram uma casa antiga na janela da hospedaria, elegante e grandiosa. Cheia de invisíveis. Não quero pensar neles. Já temos armários e cabides, e a tua facilidade em problemas elétricos. Aprecio a literatura de medicamentos caseiros que deixas sobre a mesa da cozinha. Na instituição levam-nos por vezes ao teatro porque descobriram que tem propriedades terapêuticas. Que é bom para a circulação sanguínea. Os da secção de meditação indicaram-me a biblioteca para evitar suores frios. Tenho que ser mais enigmático para o delegado para escapar ao seu radar formatado. Qualquer relatório pode inviabilizar o meu sossego. Não estranhes as músicas que vierem do escritório. É ligação psiquiátrica. Usa cores. Sabes tão bem a arte de as ligar com os olhos que possuis!

ELO

Escrever uma gota.
Fazer fogo.
Ter cara.
Dizer por vezes um momento de espanto.
Depois andar ao abandono.
Saber renegar.
Escolher o pouco.
Um infindável.
E em cada dia abrir o lugar íntimo.
Para que te alcances.
E te deixes por aí.
Dançando nas vielas.
Vivo em furor.
Apalpando e sorvendo.
Em desobediência.
Interrogando os veios do vulcão.
Ser amplo.
Ver de outros cantos.
Abraçar os teus.
Beber nas nascentes do encanto.

MUDO

Mudo de mundo em alguns dias. A estadia neste armazém vai terminar. Cheguei há uns anos vindo da margem sul do grande rio. Aí jantava por vezes com um alcoólatra de barbas que em tempos se dedicara às Matemáticas. Tinha um olhar e uma voz fascinantes e nunca se penteava. Bebia bagaço com serena devoção. Quase todas as tardes aparecia com livros, mas raramente os abria. Depois do primeiro copo, ler é falar. Ouvir-se era leitura. O que dizia a melhor escrita. Não voltarei a vê-lo. Aqui houve pessoas que vieram e saíram pouco depois. Outros ficarão até ao fim. Eu desconheço o que me espera. Quando as horas voarem farei o saco. Esquecerei vidas. Muitas memórias serão o fim de uma vela. E haverá frases ou momentos que farão périplos invisíveis. O do 24 uma vez disse-me: sabe há pessoas que vivem com frases suas. Levam-nas e tratam delas. Duram um tempo. Depois as coisas mudam. Uns cegam. Outros vivem ofuscados. Muito poucos inventam algo interessante. E resistem. Muitos são anulados. Consomem. São pobres, amarrados pelo ter. O do 24 não quis alongar-se e ficou-se por aí. Isto é assim. Nestes aposentos quase ninguém se apercebe. Vão caindo as aterradoras pétalas de tempo bailando lentamente à frente de olhos cegos. E são desfeitas por solas humanas, à pressa. Sem ver a neve com vagar, mentes desfiguradas perdem o corpo e infantis máscaras se pavoneiam nas alas doentes.

SUORES

Caíam suaves frutos nas noites cerebrais.
Era a pele que vivia o sonho.
Sabores e suores abruptos.
E movimentos em volta do silêncio.
Durante o sono alguns pensamentos
preparavam lentamente
o olhar para rasgar as grades diurnas.
Inventar as liberdades e levantar o insólito.
Estava o mundo no íntimo caderno.
Visões do fundo a ganhar fúria para irromper.
Partirem o vidro dos olhos
e saírem dando arte às mãos
para fazerem a substância do instante.

Assim lia em voz alta o do 24 quando o surpreendi ao sentar-me na ponta do banco. Ao fundo do corridor guardou a folha dizendo ser o resultado de medicação excessiva. Há um garrote no tempo. Luto com ele. Devo ser e escrever mais. Não fazer o tempo é uma lasca de morte. Dedico-me agora a inventar um método de usar o tempo. Trate também da sua oficina. E olhando-me com serenidade quase a medo, levantou-se. De imediato acelerou o passo. Eu olhava a parede. Sabia do tempo perdido, dos grandes voos que não se repetem. Depois colei os olhos ao chão e pensei no que está para vir. Que farei com aquelas palavras! Atordoou-me a questão. Ele queria provocar esse calafrio. Desequilíbrio dos que fazem atravessar abismos. Regulei o som íntimo e inventei uma cara. Saí dali e fui até ao beco das injúrias. Pedi um brandy e apareci três dias depois. Chamaram-me para uma reunião. Perguntaram que motivo me levou a não comparecer. Respondi: falta de tempo.

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Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!