“Mais amigo é aquele que me critica porque me corrige, do que aquele que me adula para me corromper”
Santo Agostinho
Ao longo da vida, muitas vezes encontramos o que queremos sem procurar. Em regra, essa epifania acontece depois de muito procurarmos sem encontrar. Eu já estava desistindo, quando, por acaso, numa loja do Shopping Cedofeita, avistei o disco pousado na vitrine. Entrei, pedi autorização para apreciá-lo. Solícita, a balconista indagou: quer ouvi-lo? Não, obrigado. E anunciei. Vai virar um disco voador…em direção ao Brasil. É uma encomenda.
Chegando em casa, antes de rodar LP no toca-discos, vibrei. Tomara que o Paulo César tenha gosto refinado. Ele adiantou que é do gênero eletrônico, estilo experimental. Aos primeiros acordes o som gerou em mim uma brusca sensação de estranhamento. No final, dei o agrément Ave Caesar, valeu! .
Consultando o line up, leio os nomes dos anarbandistas: Jorge Lima Barreto/JLB (percussão, piano e sintetizador Arp Odyssey) e Rui Reininho/RR (guitarra elétrica de braço duplo…traficada).
Rui Reininho!? Este Rui deve ser o meu (quase) colega do Alexandre Herculano. Quase porque no ano em que ingressei no liceu, ele se mudou para o António Nobre. Uma mudança surpreendente, sabendo-se que residia a uns cinco minutos (a pé) do Alex. Ele aparecia de vez em quando no pedaço para conviver com os ex-colegas, vestido segundo o lisérgico figurino hippie.
Anar Band na Fac de Letras
Nos anos seguintes, nos perdemos de vista, em tempos tingidos de ilusão, utopia e delírio, pelas convulsões pós Abril 74. E a arte do reencontro se concretizou em dois capítulos, tendo como senha “Anar Band”. Primeiro, em 1977, mediada, pelos sulcos sonoros do vinyl em apreço. A segunda, em 1978.
Na Associação de Estudantes da Faculdade de Letras do Porto pintou a ideia de se convidar o Anar Band para um concerto aberto. E de bom grado e com agrado, aceitei a incumbência de coproduzir o inusitado show, que lotaria o grande auditório. Nas tarefas de produção, o Rui foi meu interlocutor mais próximo. E aproveitamos para pôr a conversa em dia. O tema dominante teria de ser a rockamrrolesca atualidade da seara da pop rock, semeada de cizânia e de trigo pelo movimento punk.
Não seria preciso aprofundar muito o diálogo para intuir que Reininho já não estava muito antenado nas inebriações sônicas deste projeto “de música improvisada num contexto eletro-acústico, de duas cabeças anarcas”, segundo a definição de JLB. Muito pelo contrário, nesse tempo, ele já tentava atravessar a bridge over troubled water, sintonizando uma nova frequência cuja senha podia ser clamada em tom de mantra: “God save the king… pop rock!”
E 1979, seria para ele e para o rock um ano crucial. Nesse tempo, Rui estanciava na Londres de Camden Town, Camden Lock, do Electric Ballroom, em demanda de unkown pleasures, captando os acordes de uma nouvelle vague. RR sondava, à imagem do Joy Division, an ideal for living, um território firme onde sediar seu reininho. No final da década, assume a opção de se mirar no Espelho e de tomar Atitudes, muito inspirado na brisa soprada pelo paradigma new wave, finalmente escapada à tutela do punk. Formações que, todavia, se finaram sem registrar sequer um single. A maior proeza do evanesente Atitudes consistiu no privilégio de fazer a primeira parte dos concertos de Joe Jackson em Portugal. Uma atitude drástica estava à caminho.
“Sê um GNR, Rei!”
Em setembro de 1981, leio nos jornais que RR passava a integrar o line up do GNR, acrônimo de Grupo Novo Rock. Rei foi a um concerto da banda, no Pavilhão do Académico, no Porto. No final, entrevistando os “guardas,” escutou a convocatória para ser um gnr. Ele que tinha as malas feitas para ir estudar cinema na escola do Conservatório de Lisboa, aceitou alistar-se na corporação. E logrou, sagaz como é, conciliar os projetos.
Num depoimento a Blitz, o baixista Vítor Rua esclareceu que Rui foi convidado para tocar guitarra, “mas rapidamente se chegou a conclusão que ele era um excelente “performer” (mais que um cantor) e era o que precisávamos: alguém que assumisse o lugar de vocalista (…)” Liderada pelo quadrumvirato Rua, Alexandre Soares, Tóli e Reininho, a força musical compõe, em tempo record, o álbum ‘Independança’(1982). Um certeiro, apunhalante soco no estômago das convenções e vulgaridades do nacional pop-rockeirismo. Não hesito em classificá-lo como o mais disrruptivo agente provocador, agitador do estereótipo que se impunha no país, um movimento em crise, perdido na Rua do Carmo, perfumado pelo aroma Patchouly. Uma obra-prima, em duplo sentido, visto que o quinteto (com Miguel Megre) atingia o ápice dos Himalaias, à primeira tentativa de escalada da indú$tria fonográfica indígena.
“Yes, isto é mesmo novo rock”, comentei, efusivo ao terminar a audição, escutando uma, duas, três vezes, a faixa «Avarias», instrumental de 26’, alardeando audácia, ousadia. Porém, o cúmulo do desplante aconteceu no Festival de Vilar de Mouros desse ano, com a banda avariando quase meia-hora, enquanto o gado, em manada ululante, queria era ouver «Portugal na CEE». Será quase escusado recordar que o álbum foi brindado com críticas muito estimulantes. Constituiu, todavia, rotundo fracasso de vendas. Portugal no seu melhor…O que, por paradoxo, pode ser lido como uma bom sinal. “O flop estourou com o grupo”, resumiria o guitarra Alex. Os desaires não são bons conselheiros.
É a primeira avaria na máquina, provoca a deserção de um de seus mentores intelectuais. Vítor Rua joga a toalha no palco. Ao longo desses anos 80, o GNR foi desertando do novo rock e eu também fui desertando das suas operações discográficas. Enquanto ouvinte, sua música deixou de estar sob escuta, de fazer parte do meu show. Nessa década falo com o Rui uma única vez, no Fantasporto, onde ele era jurado do festival.
Grupo Novo Roxy ou Novo Reininho…
No começo dos anos 90, agendamos uma entrevista para o CM, motivada pela edição do álbum «In Vivo» (1990). Ao vivo, disparo à queima-roupa. GNR significa agora Grupo Novo Reininho, em que só as líricas não são descartáveis? Ele replica, justificando “estar cansado da atitude altiva típica da avant-garde.” E eu elucido que, embora irônica, a indagação aponta para um reconhecimento. Sempre é melhor ser esse GNR do que ser confundido como Grupo Novo Roxy…, riposto.
Nesses anos, pelo menos do ponto de vista da visibilidade pública, Rui assomava como o líder carismático, o porta-voz inconteste do grupo, a imagem de marca, o ator do papel protagonista, o performer, dando razão a Rua quando sugeriu sua cooptação. Falava-se de Reininho e numa associação sinestésica configurava-se o GNR ou, em rigor, o GN(R)R. E vice-versa. Numa comparação –nada elogiosa-, ele ameaçava tornar-se o Brian Ferry do rock –ou roxy- lusitano. Embora “os homens não se querem bonitos”. O meu Reininho não é desse mundinho. Auguro-lhe um mundo mundo. Um mundo limpo do lixo ocidental pop(ulista), em que ele seja entronizado como um soberano RR, Rebelde e Radical.
A avaria provocada pelo viru$ do pop main$tream parecia ser irreparável. A correnteza da deriva popless tendia a se precipitar imparável, suscetível de transbordar o (Rock in) Rio Douro. Então desertei de vez da egrégia instituição a$$olada por defeito$, embora e$peciai$. O $om não era me$mo, a minha praia de Ipanema. Todavia, se tapei os ouvidos para as estragagância$ $onora$ da formação, abri, rasgados, os olhos para as extravagâncias das régias letras nunca protestadas.
Foi essa verve fulgurante, exuberando no jogo perigoso e primoroso das palavras, que o bardo soube plasmar nas líricas poético-literárias. (leia-se ‘Sifilis versus Bilitis’). Continuei não visitando a (Psico)pátria geenerriana. Porém, com a Ana, lee ‘Líricas Come on & Anas’, testemunhando que se a mú$ica do agrupamento não se sustentava sem as letras reininhianas, estas além de autorais tinham essência e existência autônomas, dispensando o acompanhamento da guarda pretoriana. Mesmo em voos domésticos, el comandante não ligava o piloto automático. Suas líricas podem não ser sempre hardcore, mas nunca abandonam o 1º escalão. São luxo só!
Em março de 2002, tomei chá, café & etc com o monarca num sunset boulevard da Praia de Leça da Palmeira. E sublinhei o benfazejo lenitivo de suas líricas me terem livrado das errância$ errática$ da banda. Afinal, não abdicaste, de todo, de estar vinculado à vanguarda. Rui sente-se alfinetado e reitera gratidão e gratificação pelos múltiplos dividendos da aposta na onda pop. “Pode ser uma coisa mais boba, mas é, de certeza, muito mais sincera”, enfatizou.
Das Indias à Gloria
2008, ano talismã. Um álbum “indie” indicia que era possível o reinado da sinceridade, isento do pecado original da bobagem. Rei desfila ladeado por um séquito invejável, na Companhia das Indias, de Yoko Mono, de Laika Virgem, de MORGana Penélope, do Al Fakir, do Dr. Optimista, do Amante Preguiçoso, das Doce, de Cazuza., Não sendo um bem bombom registro, o disco teve o condão de me reconciliar musicartisticamente com sua majestade.
Rui me disse um dia que não curtia glórias efêmeras. Para ele, Gloria só vale a pena se for a Swanson. Se decidisse manter a esboçada Independança, ainda teria tempo de deixar a Gloria Estefan e conquistar a Gloria Gaynor. Então, ele poderia regiamente proclamar: I Will Survive’ ao GNR.
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Danyel Guerra (aka Dannj Guerra) nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História pela FLUP. E tem-se dedicado ao estudo da História do Cinema. Após ter lecionado História no Ensino Secundário, transitou para o Jornalismo, trabalhando como repórter e redator efetivo (Carteira Profissional nº 803) nos diários Notícias da Tarde, Jornal de Notícias e Correio da Manhã. É o colaborador mais regular da Revista Athena.
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