O PARADOXO DO MÉRITO – por Francisco Traverso Fuchs

Muito se fala (contra e a favor) da chamada “meritocracia”, mas não é incomum que toda uma discussão sobre esse tema tenha início com definições de “mérito” bastante primárias, o que, a meu ver, acaba prejudicando o debate. Se desejamos avaliar a pertinência (ou impertinência) de uma determinada maneira de organizar a sociedade, faz-se necessário, em primeiro lugar, investigar o conceito que está na base dessa discussão. O propósito deste artigo pode muito bem ser descrito como cirúrgico, pois não pretendo, aqui, examinar a noção de “meritocracia” e nem mesmo definir a noção de mérito, mas apenas explicitar um paradoxo que parece ser inerente a essa noção.

O mérito como noção moral

A origem da noção de mérito é jurídica e moral. Do verbo mereo (ganhar, merecer) deriva o substantivo meritum, que significa, em primeiro lugar, o ganho, o salário devido por um serviço prestado.[1] Desse mesmo verbo derivam inúmeras palavras que sobreviveram quase inalteradas em nossa língua, como meritorius, meritissimo e meretrix; dele também deriva a forma verbal frequentativa merito, que significa trabalhar por um salário ou por um soldo (ser soldado).

Esses aspectos contratuais da palavra mérito parecem desvanecer na filosofia de São Tomás de Aquino, onde ela assume um significado exclusivamente moral: “Ora, os méritos ou os deméritos humanos estão em nós, na medida em que somos senhores de nossos atos pelo livre-arbítrio.”[2] De acordo com essa visão, castigos e recompensas serão distribuídos de acordo com os méritos e as faltas de cada um, mas isso porque “a criatura racional possui, pelo livre-arbítrio, o domínio de seus atos”.[3] A filosofia tomista delineia claramente uma versão moral do pensamento meritocrático, já que méritos e deméritos seriam os únicos fatores de desigualdade entre os homens: “Todos os homens são iguais quanto à natureza e quanto ao pecado original; neles só encontramos  desigualdades quanto ao mérito ou demérito de suas próprias ações.”[4] Dessa forma, o mérito seria puramente pessoal na medida em que cada homem seria possuidor do livre-arbítrio e, por isso mesmo, senhor de seus próprios atos.[5]

É importante assinalar que o mérito, para São Tomás, é diretamente proporcional à dificuldade da renúncia virtuosa.[6] Em que medida será possível comparar os méritos do covarde que oferece a outra face e do mulherengo fiel à esposa? Tomás de Aquino aborda esse problema formulando a seguinte pergunta: a bem-aventurança do anjo é meritória? Servindo-se do método escolástico que caracteriza a estrutura argumentativa de suas questões, o filósofo inicialmente põe em dúvida o mérito angelical: “Com efeito, o mérito resulta da dificuldade do ato meritório. Ora, o anjo não teve dificuldade alguma para bem operar. Logo, sua boa obra não lhe foi meritória.”[7] Na sequência, ao cabo de uma argumentação complexa envolvendo a graça divina, o filósofo concluirá, entretanto, que mesmo o anjo bem-aventurado mereceu sua bem-aventurança.

O mérito como expressão da potência

Ponhamos agora entre parênteses qualquer referência ao livre-arbítrio e às doutrinas morais baseadas no livre-arbítrio, ensaiando, assim, um espécie de retorno à dimensão estritamente jurídica do mérito. Esse retorno não deixa de ser problemático, pois a obrigação costuma ser, ao mesmo tempo, jurídica e moral; e como a obrigação jurídica geralmente acarreta uma obrigação moral — por exemplo, o cumprimento das cláusulas de um contrato livremente acordado entre as partes — é difícil separar de maneira absoluta os dois aspectos. A despeito disso, e embora os dois tipos de obrigação tendam a se sobrepor, há casos em que a distinção é suficientemente clara. A pessoa que perdeu sua casa por não conseguir pagar ao banco as parcelas do financiamento não honrou sua dívida e descumpriu um contrato; no entanto, a não ser que o tenha feito de forma deliberada (por exemplo, para prejudicar seus herdeiros), dificilmente se poderia dizer que ela cometeu uma falta moral. Supondo-se que ela fez tudo o que estava ao seu alcance para realizar os pagamentos, a única coisa que lhe faltou foi o poder, ou a potência, de reunir a tempo os recursos que lhe permitiriam saldar sua dívida.

A pedra de toque, aqui, é a noção de esforço. Assim como o mérito moral, para Tomás de Aquino, implica a noção de dificuldade, o mérito como exercício da potência implica a noção de esforço. É por um esforço (ou melhor, por uma série de esforços) que o trabalhador produz um bem ou serviço, que o aluno compreende um problema e que o atleta se classifica para uma prova. Nessa perspectiva, a única cobrança moral concebível passa a dizer respeito apenas e tão somente ao esforço, e desde que este tenha sido realizado, não são moralmente reprováveis o estudante que não consegue responder corretamente uma questão e o corredor que chega em último lugar numa prova esportiva; muito simplesmente, o primeiro não alcançou a resposta, e o último não foi capaz de superar um ou mais competidores. Assim, em resumo, o mérito torna-se expressão da potência e do exercício da potência quando ele deixa de ser referido a uma decisão moral e passa a decorrer de um desempenho que pode ser aferido objetivamente.

O mérito como resultado de um esforço coletivo

É porque o estudante exercitou suficientemente sua potência de resolver problemas que ele passou na prova. Entretanto, atribuir o mérito apenas ao seu esforço individual equivale a tentar explicar um longa metragem tomando como referência somente seu último quadro. Para que o estudante consiga resolver um determinado problema foram necessários múltiplos e continuados esforços de seus pais, de seus professores, dos pensadores que estabeleceram os termos daquele problema e assim por diante. A lista é praticamente infinita, e o mérito, coletivo. Inversamente, se uma criança apenas tem acesso a uma alimentação e a um estudo de má qualidade, o que porá em risco o pleno desenvolvimento de sua potência de agir e de pensar, é porque existe toda uma cadeia de demérito: de seus pais, se vivos estiverem, de seus professores e, em geral, de todas as pessoas que, naquela comunidade, estão encarregadas de seu bem-estar; no limite, o demérito é de toda a sociedade. Se Cultura é ação do homem sobre o homem para produzir o homem, a falta de oportunidades para a plena realização das potencialidades de uma criança indica que, no meio social em questão (família, comunidade, sociedade, civilização), a Cultura está sendo negligenciada.

O mérito como resultado de esforços individuais

Existem longas correntes de mérito (e de demérito), mas essas correntes são compostas por elos individuais. Não há como exaltar o mérito de um esforço coletivo sem, ao mesmo tempo e pela mesma razão, celebrar o mérito de cada indivíduo que participou daquele esforço. Assim como é absurdo pensar o mérito de forma puramente individual, é absurdo pensá-lo de forma puramente coletiva. Albert Einstein certamente desfrutou, em sua infância, de boa nutrição e de ótimos professores, mas também é certo que, se chegasse à idade adulta dedicando-se exclusivamente às corridas de cavalos, seu nome não estaria, hoje e para sempre, inscrito na história da ciência. Todos os elos são importantes e o último elo da cadeia é tão importante quanto qualquer outro. Mesmo o esforço coletivo mais extraordinário irá fracassar caso o indivíduo não aproveite as oportunidades que lhe foram oferecidas.

O paradoxo do mérito

Ao contrário do mérito moral, que depende de uma decisão íntima, o mérito como expressão da potência dá margem a uma dúvida: se o desempenho de um indivíduo é sempre amparado por um esforço coletivo, de quem, afinal, é o mérito? Não estariam justificadas as críticas à noção de mérito segundo as quais o mérito nunca é apenas individual?

A existência de correntes de mérito demonstra, com efeito, que este nunca é puramente individual. Não há produção de si que não dependa do outro.[8] Até o mais recluso estudante autodidata possui uma dívida para com os vários homens que escreveram, publicaram e conservaram os livros aos quais teve acesso, sem mencionar os homens que o vestiram e alimentaram. “Falando propriamente, não existem no mundo homens que se façam sozinhos [self-made men]. Esse termo implica uma independência individual do passado e do presente que nunca poderá existir.”[9]

O problema é que, como vimos acima, não há como aludir a uma corrente sem mencionar cada um dos elos que a compõem. Cada corrente de esforço coletivo é constituída por esforços individuais, culminando no esforço do indivíduo que constitui seu último elo. Por isso a noção de mérito como exercício da potência exprime uma espécie de paradoxo: é impossível admitir que por trás de cada esforço individual existe um esforço coletivo sem admitir, ao mesmo tempo, que todo esforço coletivo integra uma infinidade de esforços individuais.

Esse paradoxo do mérito, a meu ver, é apenas aparente. A solidariedade indissolúvel entre o mérito coletivo e o mérito individual simplesmente exprime a impossibilidade de pensar indivíduo e coletividade como realidades à parte. Para explanar essa idéia com um pouco mais de precisão e em termos familiares àqueles que já conhecem minha própria formulação do conceito de Cultura, ninguém se produz sem o outro, mas ninguém é produzido pelo outro.

[1] https://www.lexilogos.com/latin/gaffiot.php?q=mereo [2] Sed merita et demerita humana sunt in nobis, inquantum sumus nostrorum actuum domini per liberum arbitrium. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, Parte I, Questão 23, Artigo 1. São Paulo, Edições Loyola, Vol. 1, 3ª edição (2009), p. 450. [3] Idem, Parte I, Questão 22, Artigo 2. Op. cit., Vol. 1, p. 445. [4] Idem, Parte I, Questão 23, Artigo 5. Op. cit., Vol. 1, p. 458. [5] Embora esse ponto não seja pertinente ao plano deste artigo, cabe notar que, no contexto da teologia tomista, o indivíduo não pode alcançar o mérito sem a intervenção da graça divina, que é “a raiz do merecimento”. Idem, Parte I, Questão 95, Artigo 4. Op. cit., Vol. 2, 2ª edição (2005), p. 660. “A obra meritória do homem pode ser vista de duas maneiras. De um modo, segundo procede do livre-arbítrio. De outro modo, segundo procede da graça do Espírito Santo.” Idem, Parte II (1ª Seção), Questão 114, Artigo 3. Op. Cit., Vol. 4, 2ª edição (2010), p. 925. [6] “Para que haja merecimento, é preciso que haja luta e dificuldade”. Idem, Parte I, Questão 95, Artigo 4. Op. cit., Vol. 2, p. 660. [7] Idem, Parte I, Questão 62, Artigo 4. Op. cit., Vol. 2, p. 225. [8] “Privado de cultura, o sapiens seria mentalmente deficiente, incapaz de sobreviver senão como um primata da mais baixa categoria; ele não conseguiria nem mesmo reconstituir uma sociedade de complexidade semelhante à dos babuínos e dos chimpanzés.” MORIN, Edgar. Le paradigme perdu: la nature humaine. Paris, Éditions du Seuil, 1973, p. 100. [9] “Properly speaking, there are in the world no such men as self-made men. That term implies an individual independence of the past and present which can never exist.” DOUGLASS, Frederick. Self-Made Men: An Address (March 1893). IN Speeches and Writings, New York, Library of America, 2022, p. 697.

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Francisco Traverso Fuchs é mestre em Filosofia pela UFRJ.