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O sertão é por um fio. Insetos, folhas, raízes e formigas em volta da terra. Tudo tão seco e ao mesmo tempo inteiriço. No sol escaldante, uma flor luta e sobrevive. Mesmo trincada, a vontade de vida insiste. Na cidade de Jenipapo, tudo é quebradiço, a moeda de troca circula nas lavouras de algodão. Plantam, colhem e se submetem aos três compradores. Não há banco na cidade. Roberto, um dos usineiros que começou como intermediário, disponibiliza o dinheiro e as sementes de baixa qualidade. O pagamento vem com as futuras safras do ouro branco. Um santo mártir, no momento de sua morte, certa vez falou: “Serei trigo nos dentes das feras”. Um pouco isso, o que acontece, as pessoas são trituradas e ainda agradecem, sorridentes. Elas vendem o fruto do seu trabalho praticamente de graça e esbanjando contentamento, como se a compra fosse um gesto altruísta.
Ontem, Ivanildo entrou num bar e pediu uma pinga. No entanto, queria uma cerveja, e se perguntou: Mas que porra de vida é esta em que o trabalho não paga uma cerveja? No lado curto do horizonte uma fila em que cabiam todos os corações da cidade. Naquele instante, ele fez parte daquela horda, diluída em sujeição. O horizonte tinha sangue nos olhos e foi o começo do que finda. Todo o modelo de vida de uma família pode acabar feito a morte luminosa de um relâmpago.
Judite procura o pai, conta o que aconteceu na cidade.
“Ivanildo é burro? Não mediu o próprio tamanho com o dessa gente?”, diz o pai.
“Meu pai, presta atenção, o Ivanildo tem o intestino na cabeça. Ele é muito desgrudado do chão. Deveria saber que em Jenipapo uma parte do povo é cruel, outra parte também, mas pensa que não é”, responde Judite.
Nonato, com um discurso pronto, espera o filho. O problema é que Ivanildo tem a língua amolada feito uma faca de ponta fina.
“Meu filho, você reclama de barriga cheia. Olha a ruma de gente com os filhos cagando lombrigas e sem remédio. No meu modo de ver, devia agradecer a vida que tem. Cada um aqui é o seu próprio patrão. Sabe o que é importante? É a barriga cheia.”
“Só temos que baixar a cabeça ao preço estabelecido pela família Palmares. Pai finge não saber que eles não passam de um bando de cretinos”, o filho retruca.
“Eu quero saber da sua boca, o que realmente aconteceu”, pergunta Nonato.
Ivanildo não deseja responder e nem perder tempo confrontando Nonato. Era pungente a sua vontade de sumir no mundo. Ele é um estrangeiro em seu próprio solo. Uma aurora nômade na casa do pai. Nutre paixão pelo risco. Deseja conhecer São Paulo e outros lugares, queria ser cosmopolita. Queria se impregnar do cheiro da poeira de vários lugares. Queria a vida se abrindo qual a maçã do algodoeiro, quando se torna capulho. Trabalhar sol a sol para vender o fruto do seu trabalho, de acordo com as negociações estabelecidas pelos usineiros, é uma situação que não pode aceitar. Não tolera ser animal da superfície. Ele sente a ausência de uma vida rica em significados. Ivanildo não percebeu, mas seus dramas e questionamentos são universais. É um sujeito universal e não sabe. Na verdade, ele é um sonhador. Numa ocasião, contou a Sandro que sempre tinha o mesmo sonho. Fugindo de algo, mas não conseguia sair do lugar. Era uma sensação horrível, tentar correr e não conseguir. Acordava ofegante como uma mãe em trabalho de parto. Ivanildo não duvida da força do sonho e conta sobre cada um deles. O curioso é que alguns parecem cenas de filmes. Ontem, contou a Walter que sonhou sendo perseguido por um bando de jagunços. No meio da correria se escondia atrás de uma pedra. Da pedra abria-se uma porta, de lá saindo um exército de anões vestidos como se fossem vikings. E o couro comia em cima da jagunçada. Levando seus sonhos a sério, ele pôs uma caderneta debaixo da rede e acertou no jogo do bicho. Na imaginação tudo é possível, mas no cotidiano nada é perdoado. Com o tempo, a sua família e a cidade não entendiam a sua língua.
O pai pergunta novamente, diz que não vai repetir a pergunta pela terceira vez. Ivanildo conta a sua versão. Assim foi o começo do fim:
“Eu estava na fila, sendo torrado pelo sol. Ao meu lado estava Dora, vocês sabem, né, a dona do bar mais agitado das redondezas. Ela fala sobre a sua plantação, gabava-se porque não vivia somente da lavoura. Quando chegou a vez dela, vendeu toda a safra e depois virou-se para mim: “Menino, se eu dependesse só disso, não sobraria dinheiro nem para comprar um picolé. Eu estaria pobre de Jó”. Naquele momento, pensei em Geraldo, o nosso vizinho. Ele pegou um adiantamento em dinheiro, sementes e até uma máquina manual de plantar algodão. Vocês devem lembrar, foi um ano de seca e não conseguiu nem noventa arroubas de algodão. Pai se lembra? As terras dele estavam empenhoradas, o pobre perdeu tudo. Geraldo teve um pensamento louco. O Walter falou que era piromaníaco, o nome desse pensamento. Geraldo quis tocar fogo em toda a propriedade, mas nem dinheiro para comprar um fósforo tinha.”
“Meu filho, não gosto de conversas compridas, seja breve”, diz Nonato.
“Certo, vou resumir. Então, senti um nojo quando olhei para uma das máquinas de descaroçar algodão. O senhor sabe, tudo aquilo só foi possível graças aos empréstimos em nome da cooperativa.”
Ivanildo fica em silêncio, observa rapidamente a indiferença da irmã. Judite coloca a mão na boca como se estivesse com sono. O que ela nega é o lado selvagem do irmão que quer nascer. Ela nega porque também é gritante no seu peito.
Ivanildo retoma o assunto e conclui.
“A usina só prosperou por causa do nosso sangue, do nosso trabalho. Todos sabem disso. Não aguentei e reclamei mesmo. Reclamei do preço do algodão. Reclamei da cooperativa e, reclamei principalmente, dos créditos que nunca chegaram no bolso da família. O Roberto me encarou. Eu consegui fazer uma leitura do que o maldito pensou, sabia? Então, ele me olhou como se falasse: será que esse condenado vale uma bala? Isso só aumentou a minha raiva. E o pior é que ele ainda falou alto: “Se você e sua família não quiser vender, a gente não compra e pronto. Procure outro lugar, dou a minha cara a tapa se conseguir um comprador. Algodão que não compro, eu cavalgo”. Coloquei tudo de volta na carroça, e guardei as palavras de Roberto como quem anota uma dívida para um dia fazer as prestações de contas. Algodão que não compro, eu cavalgo.
Ele é doido mesmo, pensa o pai, depois que escutou tudo.
Jenipapo Western Tito Leite Editora Todavia https://todavialivros.com.br/livros/jenipapo-western
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Tito Leite nasceu em Aurora (CE) em 1980. É mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Poeta e ficcionista, é autor dos livros de poemas Digitais do caos (2016, edith), Aurora de Cedro (2019, 7letras) e A palavra em seu deserto (2023, Cloe). Estreou na prosa em 2022 com o romance Dilúvio das almas (Todavia). Jenipapo Western, é o novo romance (2024, Todavia).
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