UMA NUANCE NAS NÓDOAS
PELE
eu procuro a luz senhora.
uma luz de pele nua.
viva.
em abandono.
uma eternidade fêmea
e o suave rosnar das peles.
música arrepiante
engolindo lentamente o abismo.
eu procuro a luz de fogo.
negro como uma ideia livre.
e o licor demencial.
a doçura aterradora dos corpos.
serpenteiam entre si como águas gélidas
nas rochas quentes.
eu procuro a luz senhora.
uma luz de gato. noctívaga.
luz de vinho. sanguínea.
sem rédea.
e solar.
vejo-a por vezes na madeira da mesa
inundada pelo sol gato.
errante. solitário. altivo.
como os que denunciam a morte da vida.
com seus corações felinos.
essa luz foge para a lua
e vem queimar-nos a pele.
deitados na cama no tempo.
beijando línguas
amando a espiral.
assim voamos nas inebriantes
partituras.
não tendo ouro como lei.
a senhora sabe de luz.
a sua pele é o lugar
onde o gato a encontra.
AZUIS
Apetece-me outro lugar, desaparecer algum tempo. Passo o cartão nas linhas de controlo. Sem falar. Saio com desfaçatez. Fui ver o mar antes da noite. Já sem sol. Devagar o azul sossega os olhos. Lava-os. Leva-me. Algo se liberta. Para longe. Regresso tarde. Caminho sem me ter. Ao chegar é nula a comunicação com os defensores da ordem. Olham em silêncio. Deixam funções por exercer. Bloqueados. Pareço-lhes uma sombra sem alma. Não ousam atingir uma ausência à deriva. Resta-lhes o incómodo de observar um não-ser em levitação. Deitei o corpo como um gato distraído antes de jantar. Li algumas páginas de L. M. Panero. Agora vou ao escritório beber vinho barato enquanto chove. Negando obediência à gramática deambulo pelas veias do teto. Durmo aos poucos e sonho quando calha. Se vieres podes escrever nas paredes do escritório. Na minha pele também.
PALAVRA
Ando às voltas ao Bloco C. Não tenho noção das horas. Disseram-me para ir ao gabinete de um de bata branca. Recuso o honroso convite. Apetece-me não estar. Ser uma falha. O desdém. Fazer os lugares onde a mente pode vaguear. É isso que os meus passos inventam. Tenho outros assuntos. Leio o texto de um homem sobre a vida e a arte de outro. O que escreve diz de si. E revela o modo clínico e mordedor de ver. De ler. Do outro. E seu. Nenhum deles é um qualquer. Sempre em desajuste. Há uma lucidez de beco e de lua. E eu leio. A escrita é incatalogável. Errante. Como as suas vidas. Livrista o escrevente. De livre léxico. Voz de bicho astuto e odor a tabaco. Empurra-nos para o inventório indecifrável da arte viva. Ver de um modo único o único. Dois cadastrados. Com ficha em confrarias ignóbeis. Um luxo. Recortados na urgência dos instantes e na sagacidade visionária. Uns trinca-espinhas aos caídos. Prato de arroz cigarrada e tinto manhoso. Mais o dos óculos de massa grossa. O cérebro um brinquinho. Fusca bem oleada. Língua e olho como radar lunático. Anjos morcegos líricos. Lírios. Livrai-nos da sua falinha melosa.
ENREDO
Tu deixas-me doente. Olho para a secretária e vejo isto. Folhas a voar. Leio volto a ler. Caio no sofá. Esfrego os olhos. Fico ali saciado. Longos minutos imóvel. Sem pensar. Preso. Desativado e inerte. É impossível dormir. Quero fruir esse encantamento. Garras florais de escrita fêmea. Estou perdido. Enleado em palavras que imobilizam. Só a rebelião me salvará. Um motim individual. Vejo que não há salvação. Nem para os perdidos. A graça nunca me viu. Nem entrei nos ofícios do espírito. Mas tenho nódoas na memória que empurram as horas. E levanto-me de repente escapando ao feitiço. Há legumes e tinto à espera. Textos dos malucos de sempre. Com felino corte semiótico. Ainda há comprimidos.
INCERTO
O comboio desaparece ao longe perto do rio. Água imunda sob espelho melancólico. Em volta ruas antigas e pedra negra. Aí envelhecem silêncios de crime e dor. Cheira-se a música ameaçadora dos abismos. Há segredos e esqueletos em jarras douradas. Documentos no fundo de carótidas inacessíveis. Repetem-se jogos carnais golpes e quedas. Alguém de olhar mudo parte. Talvez para sempre. Barcos melancólicos adoecem. Veem-se casas envelhecidas. E mortas. Espectros frágeis caminhos estreitos. Enormes muros escondem eternidades e facas. Sujas. De sangue vísceras pedaços de cérebros. Ornamentos obscenos brilham em tenebrosos salões de encenação. Também cabelos femininos de prata delicada. E olhos de homens viciados no cheiro a notas. O poder como cobardia ao enfrentar tempo e morte. A cidade antiga em conluio com a cidade de hoje. Outros escravos. Envernizam as unhas anjos ávidos os meninos.
GEMIDOS
Sabotei parcelas da instituição. Alguns gráficos perderam a face. Confundi satélites protetores. Terei ameaçado a harmonia neste antro de santidade. Dizem alguns. E a boa nova espalha-se. Quanto a mim mantenho o diferendo. Ando pelos cantos. Fico encostado às paredes. Olho seres que passam e não encontro. Não vejo. É caso perdido sussurram as irmandades. Uma alma calculista ainda me recomenda o confessionário. Fico-lhe grato donzela. Mas sou muito sensível. Incapaz de intimidade com os mandatários do divino. Não suporto a sua pureza. Saiba ainda que tendo para a hermenêutica carnal. Respondo com serenidade à senhora. E que lhe parece a religiosidade bukowskiana pergunto. Em silêncio beatífico vira-me as costas e atando as mãos acelera o passo. Fico estático perante a carga bélica do seu exemplo. Sou um doente. Penso. Um erro em noite de bebedeira do dramaturgo. Esta patologia impede-me também de qualquer afinidade com os santos da hierarquia. Os que pisam quem está em baixo. Entretanto o do quarto 24 aparece ao fundo do corredor. Cruza-se com a alma apressada. Tira o gorro que lhe tapa as orelhas com deferência. Ao passar por ela não levanta os olhos do chão. E segue com fé imaculada sem sujar o olhar com o gajo dos instantes únicos. Não há mistério ou surpresa. Sempre as linhas da história foram escritas com medo do invisível. O do 24 aproxima-se enfiando o gorro até aos olhos e estende-me a mão. Aquela mulher é uma engrenagem. Pode explodir a qualquer momento, diz. E avança pelo corredor. Eu regresso à zona das ciências do esterco.
PINTURAS
A terra anda à volta do homem.
Está tudo cá dentro é só procurar.
O céu é infinito delimitado por uma linha.
Disse ela a meio da noite.
Por vezes no imenso voo noturno as ideias surgem fatalmente limpas. O movimento dos barcos quando os azuis e os verdes serpenteiam como as cores do fogo. Também as teias sinápticas se inebriam se o tempo não tem dono. E o alvo sente no âmago a seta felina. Ela tem conchas mentais onde se juntam ideias esquecidas. Órfãs que vieram de longe ter com ela. Por isso fala ao mesmo tempo a um caracol e ao cosmos. Em certos momentos sai de si para andar no meio delas. Aí permanece. Silenciosa. E há um delírio íntimo. Ligações e renúncias surgem-lhe como plantas raras. Saboreia essências e combinações estranhas. Normalmente regressa cansada. Não lhe é fácil sossegar as ideias. Então fuma. Fuma. Assim as fecha numa caixa de música. Para que a deixem com as tarefas do chão. Sai muito de dentro e atravessa até aos seus olhos para que estes ordenem aos ouvidos e à voz que o tempo regressou.
Foi o que escrevi no armazém de químicos em papel antigo. E andei com palavras no bolso. As nuvens experimentam perucas e na instituição oferecem dias. Coisas para meditar. Penso ir para os montes. Em busca de um sítio a que chamam os cornos do inferno. Águas bem frias e muito silêncio. A subdiretora e outros fizeram uma avaliação ao meu comportamento. Extraíram conclusões. Orquestradas. Não me tocam. Poderei mudar para outra secção. A boa economia no despejo dos homens. Que se conhecem pouco. O que é um homem. Haverá ainda quem pergunte. Pergunto. Aqui nada sabem dos ventos íntimos. Não revelarei os traços que me seguram. Para eles sou um figurante. Assim continuará ainda que seja noutro local. Passei no escritório e vi alguns livros que lês. Espero que te façam amá-los. Que possas descansar num livro e encontrar algo do que fica no silêncio das coisas. Que o livro cuide de ti. Eu vou arrumar papelada. Ficar com o mais simples. Na depuração verei o que faço por cá. Menos livros e nada para fazer ajudam-me a encontrar o que não procuro. Vejo pior. Sei que as garrafas vão voando no escritório. Como morcegos que encantam. Que os corpos decidam. Olho-te quando não vês e continuo a perder-me nas tuas pinturas. As noites costumam arrefecer nas montanhas altas.
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Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!
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