“Quando os jornalistas mencionavam La Dolce Vita, eu
respondia, direto, Anita Ekberg…”
Federico Fellini
UMA NINFA MUITO FELLINA
Certa noite, alguém importunou a Srª D. Kerstin Anita Marianne Ekberg indagando quantos homens ela já tivera. A deusa escandinava ouviu, suspirou e não podia ter sido mais sibilina. “Você quer dizer quantos homens, além dos meus?!”
Não serei eu a cometer a deselegância de tentar calcular quantos homens a diva terá tido, além dos seus. “Isso não é da sua conta”, poderia ela ripostar. Contudo, sou menino para arriscar a ousadia de sugerir que um dos “seus” foi, é e será o donjuanesco Marcello Rubini de La Dolce Vita (1960), de Federico Fellini, a quem aliciou para um mergulho matto, matto no líquido subitamente escaldante da Fontana di Trevi.
“Marcello, come here!”
Era notte a Roma, quando visitei a barroca fonte. Perante o monumento, tentei resistir ao truísmo e ao turismo. Desiderato igualmente perfilhado por Glauber Rocha em Claro, 1975, longa filmado nos territórios sagrados e profanos da cidade (e)terna. E evitei capitular a superstição. Coerente, não cumpri o ritual votivo de atirar nesse leito aquático, a lira augúrio de boas venturas.
Embevecido, preferi puxar La Dolce… atrás e recordei a mítica cena. Eis ainda agora, la bionda Sylvia Rank, fellina náiade, vestindo/despindo um tomara que caia preto, afeito a desnudar o generoso torso, encimado por lívidas saboneteiras. “Marcello, come here!”, desafia, num cálido apelo de inocência e sensualidade, se a associação é autorizada.
“Eu a vi pela primeira vez numa revista americana:
uma pantera poderosa representando a menina
travessa montada no corrimão de uma escada.
Meu Deus – eu pensei – não me deixes encontrá-la!”
Contudo, a prece de Federico não foi, bemaventuradamente, escutada. Um certo dia, numa intervista com Tulio Kesich, crítico de cinema e biógrafo de Fellini, eu não desperdicei a oportunidade de lhe perguntar se ele conhecia a origem da luminosa ideia do banho de Silvia Rank nas Acqua Vergine da fonte dedicada a Trívia, a menina que, reza a legenda, indicou a nascente de água a sedentos legionários romanos.
Na resposta, Kezich tendeu a enredar o enigma, porém sempre foi adiantando que o insight terá sido sugerido pela própria intérprete da fogosa Sylvia.
“O Federico nunca esclareceu, nem tinha que esclarecer, esse mistério, urdido pelos críticos, jornalistas, imbuídos de um espírito voyeur. Eu tenho a minha teoria. O Fellini vira uma foto de 1958, em que ela aparecia com água até aos joelhos num riacho. Era uma imagem muito impressiva, prenhe de uma estética deslumbrante. Ele terá tido, nesse momento, a inspiração de a incluir no enredo.”(1)
O banho santo nas águas benzidas pelo Papa Federico não teve, de todo, o efeito de fechar o venerado corpo de Marianne para trivialidades fílmicas similares aquelas de que participara na década de 50.
Personalidade suficiente parecia não escassear, todavia, a Miss Suécia-1951, desde as eras em que foi starlet da Universal Pictures.
Prova dessa virtude é a veemência com que contestou as pretensões de Howard Hughes. O excêntrico produtor “exigira” a americanização do seu sobrenome e uma plástica corretora do nariz e dos dentes, para lhe acender em pleno as luzes dos spotlights. Pelo menos a primeira intimação, ela recusou.
Afinal, Kerstin apenas precisava de deparar com um diretor que iluminasse o carisma da sua cinegenia. Quis a buona fortuna que esse cineasta fosse alguém que acreditava na música da luz. Não será descabido afirmar que se Deus criou a Mulher, se Vadim criou a BB, Fellini inventou a Anita Ekberg. O ser venturosamente modelado não poderia almejar maior fellicidade.
A teofania da ninfa da Fontana renderia amplos dividendos, financeiros e estéticos, a ponto da cena se ter tornado uma das mais representativas da História da Beleza nas Artes. Ou o Cinema não fosse a arte do terno e eterno feminino. La cinecittà delle donne é uma felicidade, uma venturosa Cinelândia.
Êmulo de Mandrake, Fellini continuou obtendo, com as luci del varietà a capitalização artística da sua magicarte. A auréola de Ekberg refulge em Boccaccio 70 (1962), no episódio Le Tentazioni de l Dottor Antonio, onde a bombshell de Malmö dá corpo a um modelo de outdoor, que se transforma numa tentação obsessiva na vida de um puritano cavalheiro.
Um ajuste de contas de Fellini com os moralistas que patrulharam as “licenciosidades” de La Dolce… Posteriormente integrada no cast de insípidas produções comerciais, a “pantera poderosa” faz uma fulgurante aparição cameo em I Clowns (1970) , da lavra do seu protetor.
Regresso a Fontana
Decorria o ano de 1987 e a cinquentona Anita continuava bonita. Embora mais volumosa, ainda que sempre voluptuosa. Em Intervista, sequestrado por Fellini, um Marcello Mastroianni fantasiado de Mandrake visitou-a na Villa Pandora, a sul de Roma. Surpreendida, a anfitriã passou depressa da frieza protocolar –“Federico, tu sei un gran bugiardo” (és um grande mentiroso)- a expansão dos sinceros afetos.
E enquanto a visitada serve vinho e castanhas assadas, Marcellodrake maneja sua bengala de condão e todos são transportados para dentro da aguardente da Fontana, num comovente flashback da lendária passagem. Comovida, a “menina travessa” não consegue evitar que uma lágrima rebelde deslize por suas alvas facies.
Lágrimas de raiva foram aquelas que libertou, anos depois, ao saber que um grupo anarquista protestara seu repúdio a sociedade burguesa, inquinando de tinta vermelha as venerandas águas da Fontana . A desfaçatez deixou Anita escarlate de revolta e de repulsa. “Foi um deplorável ato de vandalismo e uma ofensa a Roma”. E o detalhe da fontana do filme ser uma réplica erguida na Cinecittà não retira legitimidade a sua indignação.
Apesar do desaparecimento físico da diva, estou certo de que no que de Anita depender, nunca a sua fonte mergulhará nas águas polutas das trevas, nomeadamente as do esquecimento que ameaçam a memória do Cinemarte, essa bela, imorredoura, imarcescível grande ilusão que torna la vita mais dolce.
Nota:
1- Rembrandt é o autor de uma tela intitulada Hendrickje Bathing in a river, que surpreende uma mulher em pose semelhante a de Anita na aludida fotografia. Fellini conheceria, certamente, esse óleo do pintor holandês, datado de 1654. Integra o acervo da National Gallery de London (United Kingdom).
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Danyel Guerra nasceu na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, Brasil, num novembrino dia de Vênus, sob o signo de Escorpião. No ano em que Lygia Fagundes Telles publicava ‘Ciranda de Pedra’, seu romance inaugural.
Editou e/ou publicou os livros ‘Em Busca da Musa Clio’ (2004), ‘Amor Città Aperta’ (2008), ‘O Céu sobre Berlin’ (2009), ‘Excitações Klimtorianas’ (2012), ‘O Apojo das Ninfas’ (2014), ‘Oito e demy’ (2015), ‘O Português do Cinemoda’ (2015), ‘Os Homens da Minha Vida’ (2017) e ‘Corpo Estranho’ (2021).
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