BIBLIOTECA
demasiadas
palavras,
um supérfluo
de frases
empilhadas
por toda a parte
em colunas
de equilíbrio,
atravancando
a casa
de mofo
e cheiro a papel
— devo
despachá-las?
todas,
flamejando
polpa de madeira
e nódoas de tinta
numa alegre
fogueira
ou arrojá-las?
janela fora,
deixando
que as suas folhas
se misturem
com aquelas
caídas
das árvores,
num redemoinho
de literatura
outonal
ou enviá-las?
encomenda
postal,
para a morada
de um verão
longínquo
— devolvam-me
a prateleira
de parede,
de espaço
apenas
para uma contingente
fileira de livros
lado a lado
com
o porta-lápis
e o despertador
de corda
para que
os leia,
devagar
e casualmente,
sob a vigilância
incandescente
de uma lâmpada
amarela,
como se ao luar
— deixem-me ter
o meu quarto
de novo na casa,
onde dormir
é um assunto da manhã
e pensamentos gentis
me visitam
a horas tardias
em direcção
a uma noite
onde a primavera
é a ocorrência trivial
ao meio-dia
em campos
iluminados
por sóis
de tantos céus
— pois tal como
a paleta dos olhos
não vê a cor
impossível,
assim nenhuma
palavra pode
soar
para lá do seu
soar escutado,
numa onda
de língua,
reposta laringe
sobre os lábios
— talvez que
o balbuciar
dos bebés,
com o seu adágio
ululante,
lhes lembre
o idioma sem gramática
dos anjos
que eles
aprenderam
na antecâmara
do tempo,
antes de vivos,
e esqueceram,
assim que a voz
os constrange
— oh, quisera
que não lembrasse
de esquecer,
mas esquecesse,
ainda,
como ser esquecido,
num vazio
tão vago
que não pode
deixar de ser
princípio da Criação
ao qual,
na verdade,
estas palavras
estão em oposição,
instruindo
o leitor
sobre a lição
de um fracasso
— deixem-me ter
a minha cama
de volta ao quarto,
acomodada
junto à parede
para que
possa
embrulhar
o meu corpo no lençol,
como se mortalha,
e ficar onde o sono
amanheça
pés de torpor
tal que
a morte,
no escuro,
por engano,
não tinga a minha
pálida pele
— deixem-me
liderar
o coro da manhã,
num bocejo
distendido céu
cheio de chilreante,
e florescente
travessura —
até ao inverno,
sobre as nuvens
♣♣♣
COPAS
que seres
são estes?
colunas vivas
de um templo
erguendo-se ao alto,
num aplauso
de vozes em júbilo
que cores
são estas?
cortando
o azul a golpes
de espada
batalhas
entre
a folha e o ramo,
triunfos
do verde
na claridade do dia
visão
acrobática
de um espasmo
— ora esticando
os braços
em desesperos
nus,
ora irrompendo
em saltos
de ouro e lume
que vida
é esta?
alheia à vida
que é nossa,
cidades de fruto e flor,
onde reinam
insectos e aves
que som
é este?
inquietando
o mundo,
no clamor estrangeiro
de uma língua vegetal,
falada entre
a terra e o céu
♣♣♣
MONTANHA
fátuo
percorro,
e vacilante,
tão inclinados
corredores do tempo
rugas
na face
de um planeta
que envelhece,
e que são
o trabalho
de há muito
esquecidos gigantes,
o abrigo
de deuses
agora vago —
e pauso,
saudando
estas
para sempre
longínquas pedras,
atento, ainda,
ao eco da sua alta,
esculpida canção
numa súplica
de pureza — de frio,
dirigida
ao próximo
perto céu
deixada
pelo afã
dos seus antigos
obreiros,
e diligência
dos seus outrora
habitantes
— um vento,
acariciando,
amante invisível,
os contornos
do meu corpo,
junto a um jardim
de cardos
de beleza
espinhosa,
florindo
na cerâmica
selvagem do granito
que sangra,
às riscas,
a pele dos
meus membros
exaltados
dando forma
e espanto,
a este majestoso
êxtase
de solidão
— desculpa
de insuficiente
vigilância,
o propósito
não é o cume
senão o pretexto
para olhar
a humanidade
em desprezo,
e alcançar
por eminência
gramatical
e delírio,
sobre
o que somos
enquanto somos,
até que sejamos
o que somos,
não mais
— pois a gravidade
não basta,
para fixar
os pés a qualquer chão,
qualquer
um vestígio
de lembrança,
prendendo
a memória
à mente,
a predita queda,
pelo mero exemplo
da vertigem
— pois pode o céu
fracturar,
ou ermo,
com apenas?
a ponta de um dedo
ou, como
ondulações
num lago celestial,
pulverizar
cada núvem
errante,
pela mera deslocação?
de um salto
— para onde,
e porquê,
os convocadores
de estrelas,
os transportadores
do cântico,
foram,
logo?
antes da aurora
deixando-nos
a pensar,
ébrios
de remorsos,
por redondos
circulares círculos,
as causas e os princípios
— foi pela nossa
falta de maneiras,
ou o efeito
apenas,
de um secundário
clima?
inclemente
uma indisposição
de estação,
emendada
quietude
em órbitas altas
— em equilíbrio
teatral,
eu, todavia,
afago
o caminho
instado
de luxúria
e alegria pagã,
até ao termo
desta viagem adiada
até que
me torne
num verdadeiro
aprendiz das flores,
e um botânico
de perfeição exemplar
flectindo
os músculos
contra a terra
subjacente,
como um Atlas
invertido,
evitando a queda
até que
só haja
este amplo
sem degraus,
de uma religião
reagendada
— tal que,
tão rápido
como luz
fulminando som,
eu me encolha
e agache
em preconceito
expectante
lembrado,
do insuperável
grito uterino
de Jove
entre rochas
que já foram
seixos
por os dedos
de titânides mãos
♦♦♦
Henrique Miguel Carvalho nasceu em Lisboa em 1970. É formado em filosofia e os seus interesses, muito variados, incluem, a par da literatura, a música, a arquitetura, a matemática e a história do pensamento em geral. Publicou alguns artigos de natureza académica, mas nunca poesia. Gosta de fazer longas caminhas pelo campo, onde vai à procura de inspiração.
henrique_mm_carvalho@yahoo.com
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