No fim do século passado, houve lançamento de vários livros contendo listas das cem melhores obras de arte do século que terminava.
Na noite de Natal do último ano do século XX, ganhei de um amigo o livro Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, organizado por Ítalo Moriconi, ed. Objetiva. Imediatamente após recebê-lo, fui para um canto da casa e comecei a leitura. Dei cabo da tarefa em poucos dias. O livro é ótimo, os contos escolhidos convivem bem, apesar das discrepâncias de estilos, épocas, gerações. Com certeza, o livro contém o que de melhor se publicou no Brasil no Século XX, bem como deixou de fora alguns contos que gosto muito, por exemplo, o conto Venha ver o pôr do sol, da Ligia Fagundes Telles. Mas listas são assim mesmo, sempre há reclamações e injustiças. No entanto, de todos os contos reunidos, apenas um não sai da minha memória, apesar dos anos passados: A Força Humana, do livro A Coleira do Cão, de Rubem Fonseca.
Rubem Fonseca usa do próprio personagem principal como narrador – o que faz com que o conto contenha fortes elementos de oralidade – evitando a estrutura de narrativa policial, que é uma das características mais presentes em seus escritos.
Em A Força Humana, não há nada de policialesco, não há um crime, ou um mistério a ser desvendado, não há nada para deslindar, interessa apenas registrar o drama humano de um praticante de halterofilismo. Há toda uma atmosfera de tensão que fará com que não se desgrude das páginas antes do desenlace. Todavia, o leitor precisa ficar atento, tomar alguns cuidados, pois Rubem Fonseca é um escritor que parece cortar o fim, ou o início de seus contos, ou seja, o leitor precisa complementar a história com sua própria experiência suprindo as lacunas propositais deixadas pelo escritor. Talvez Fonseca suponha que sejamos todos muito inteligentes, ou apenas preguiça, quem sabe ainda para criar uma atmosfera de mistério, quiçá estava apenas seguindo Hemingway, vá lá saber.
Em A Força Humana, o autor parece fugir de suas características como escritor, pois seus personagens comumente são perversos e não são atormentados por qualquer culpa. Outro tema dominante em sua obra é abandonado nessa obra: a violência que percorre as cidades brasileiras. Também não há uma obsessão sexual como alternativa ao vazio do personagem. Pelo contrário, o narrador percebe antes da amante que o fim, inevitavelmente, chegou. Há sutilezas, como, por exemplo, a solidão dos personagens que vivem isolados, sem satisfação física do desejo, ou seja, o erotismo cru de Fonseca também é deixado de lado.
O conto beira as raias da perfeição. Talvez seja o melhor conto brasileiro que li após A missa do galo, de Machado de Assis. Comparável aos grandes momentos da literatura universal, como, por exemplo, Os Mortos de James Joyce.
Todos os elementos da estrutura do conto estão bem delineados: uma situação inicial aparentemente estável; uma crise que se inicia com o surgimento do personagem negro; a complicação da crise com a disputa entre ambos; o desembocar em um clímax com a queda de braços; para, logo em seguida, chegarmos ao desenlace em uma situação final inesperada que leva o leitor ao conto subjacente de forma inesperada. O leitor se pergunta: de onde saiu isso (?) e o desespero já o tomou, a epifania aconteceu.
Eu o reli várias vezes e a sensação da primeira leitura sempre retorna. Arrisco a dizer que descobri o segredo da literatura de Rubem Fonseca: é soco! Aliás, a literatura deve ser soco. Um soco bem dado, seja no estômago, no esôfago, no meio da cara, no pau do nariz, para usar a linguagem de Fonseca, de forma a sangrar, fazer doer. Literatura tem que fazer o sujeito se arrepender de ter nascido, ou, arrepender-se de sua existência inútil. Levar o sujeito satisfeito de si, dar ao desespero, conforme ensinava Manuel Bandeira. Tirar o leitor do marasmo e levá-lo a buscar algo de novo, querer mudar tudo, deixar tudo de lado e recriar o mundo, pois, no ensinamento de Merleau-Ponty: abro os olhos e crio o mundo.
Com certeza, Rubem Fonseca não escreveu A Força Humana para leitores felizes. Esses devem passar longe do livro, não o abram e partam silenciosos para o outro lado da livraria.
♦♦♦
Celso Gomes da Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1960. É advogado e pós-graduado em Filosofia. Em 2017 publicou o romance A gruta de Calipso, pela Editora Macabea.
You must be logged in to post a comment.