DEZ POEMAS INDIGESTOS – de Henrique Duarte Neto

 

O ÓPIO DO POVO

No passado, o ópio do povo
era a igreja.
Agora, em tempos mais etílicos,
é a cerveja.

No passado, o ópio do povo
era o capital minimamente disseminado.
Agora, em tempos mais lúgubres,
é o capital exclusivo, privado.

No passado, o ópio do povo
era o bom futebol.
Agora, em tempos mais frívolos,
é reality show, besteirol.

No passado, o ópio do povo
era a ideia do paraíso.
Agora, em tempos mais mercadológicos,
é lucrar, desdenhando o último juízo.

♣♣♣

ARS I

À mercê do inefável.
À espera do inimaginável.
Ser volúvel buscando amparo.

Medeias, Medusas, Pandoras
da agonia e do desastre,
destino transformado em arte.

Glutonarias melômanas,
ressoa em seu peito
o dó do mais cavernoso lamento.

Formas formosas, formosuras,
toda a criação é elo
de consonante e dissonante veio.

Que vida enseja consumição?
Que arte traduza perfeição?
Seja o criador o operário-padrão!

Que não macule vida e arte,
e não esqueça que mais que glória,
sua luta é jogo e história.

♣♣♣

LITURGIA DA DESCRENÇA

Entre a devoção e o rito,
um hiato, um vazio,
locus de um deus claudicante.

♣♣♣

VIVÊNCIAS

Viver a vida,
de preferência em alta voltagem,
prescindindo da serenidade,
veio quase inatingível.

Vivências… daqueles que ignoram
a beatitude que há no ato de se elevar,
transpondo a urgência do agora
e a retumbância do há pouco.

Vitimizar ou vilanizar, vis querelas!
O humano esforço tende a fraudar
aparentes bons princípios e intenções,
vitaminas indigestas e vomitivas!

O raio laser que atravessa os corpos,
desperta em mim, em ti, em nós,
as pestilências verde-amarelas
da civicomicagem mais rasteira.

Vivências… vislumbrar o ignoto véu,
a fórmula ainda não formulada,
cara e coroa da moeda valiosa,
salvaguardando viscosidades etéreas.

O amplíssimo átrio é espaço
para convescotes, peraltices e desfiles.
Não! A horda nefasta não passará,
será contida em seu frisson ebúrneo.

Vivências… as sanguessugas devoram
os paramentos das noivas e das daminhas!
Solidificam-se os sons de vagas antífonas,
morrendo exaustos os sacros cantores.

Um Grão-duque expõe planos mirabolantes…
Toda a tropa perdeu as calças e os fundilhos…
Choram as viúvas de um palhaço sem graça…
Já o cortejo espera pelo troar do clarim…

Vivências… a alameda se alarga ao cão.
A nação vira-lata reza e impreca,
expressando sua dúbia tendência:
Crer e maldizer.

♣♣♣

FIM DO MUNDO

O apocalipse
e a apólice de seguro.

As trevas
e as folhas de trevo.

O juízo final
e o juiz de futebol.

♣♣♣

FILOSOFIA DA ROÇA

O desacorçoado
vê até na palha do milho
só ruína:
Niilismo caipira.

♣♣♣

POLITEÍSMO

Pelos colhões de Osíris.
Pela cachaça de Dionísio.
Pelos abracadabras bruxescos.
Pelos feitiços de Odin.
Pela carranca do Pai Preto.
Pelo cajado de Moisés.
Pelos pentelhos de Penélope.
Pelo criado e pelo incriado.
Pelo Deus feito menino…

Cresce a torrente mística
e, preso à necessidade de crer,
o ser humano reverencia seus deuses,
criados à sua semelhança.

♣♣♣

NINHARIAS DO COLOSSAL

Consciência:
Ferrugem,
puro dejeto.

Amor:
Nem um níquel,
valor abjeto.

Sabedoria:
Falso ouro,
ciência sem objeto.

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LADAINHA REACIONÁRIA

Bandeira,
hino,
nação.

Família,
Deus,
tradição.

Elite,
mercado,
privatização.

Ditadura,
preconceito,
corrupção.

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EPITÁFIO PARA A BOMBA ATÔMICA

Podes tudo?
Pó de tudo!

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Henrique Duarte Neto. Poeta e ensaísta, nascido e residente no interior de Santa Catarina. Já publicou alguns livros de poesia, sendo que está também se encontra parcialmente disseminada por algumas revistas e blogs nacionais. É graduado em Filosofia e doutor em Literatura, pela UFSC, com Pós-Doutorado em Estudos Literários, pela UFPR. Persegue no poema aquilo que seria o seu sumo – inesgotável e salutar busca.