Tive já a oportunidade de, nesta Revista, comunicar sobre a importância da prática da reciclagem. Retomarei este tema. De uma forma crescente, as sociedades têm despertado para o facto de caminharmos por um trilho de insustentabilidade, no modo como exploramos os recursos naturais e poluímos o ambiente. É do senso comum que uma redução nos níveis de consumo contribui para o mitigar deste mal. Este discurso anticonsumo, que não ouso contrariar, todavia, parece-me pecar por não conferir a devida atenção à vertente da chamada economia circular. Não me canso de referir que a apropriação do tema ambiental pelas correntes ideológicas das esquerdas extremadas, anticapitalistas, possivelmente, é parte do problema e não da solução. Entendamo-nos – a questão ambiental deveria estar acima de qualquer conflito ideológico. Trata-se de uma matéria de sobrevivência da espécie e de manutenção de qualidade de vida da mesma. Politizar o tema ambiental seria equivalente à politização de uma hipotética estratégia científica, desenhada com o fito de, no sentido de se evitar uma catástrofe global, se desviar um asteroide que se aproximasse do nosso planeta. Uma total falta de sentido, portanto.
Observa-se, lamentavelmente, que certas correntes ideológicas, desde sempre contrárias ao capitalismo, veem nos problemas ambientais, mormente no do aquecimento global antropogénico, o mais recente instrumento de ataque a esse modo de organização social. Como toda a ação tem a sua reação, do lado oposto, junto daqueles que defendem o capitalismo, cai-se na tentação de, num esforço de se reagir a este discurso, negar ou minimizar a existência dos problemas ambientais. Todo este ruído político leva à inação. Da minha parte, reconheço que não estou aqui para discorrer sobre as vantagens ou desvantagens do capitalismo. Cada um é livre de pensar o que entender. Não obstante, chamo a atenção para o facto de que, para o bem ou para o mal, no meu entendimento mais para o bem do que para o mal, o mundo moderno está assente neste tipo de organização social, pelo que, se estivermos à espera de uma mudança total de paradigma para, assim, começarmos a responder a estes desafios urgentíssimos, com os quais nos confrontamos, o mais certo será perdermo-nos pelo caminho.
O mais avisado será, portanto, tentarmos enfrentar estas ameaças dentro do quadro existente. Com a Revolução Industrial, primeiro no ocidente e, mais tarde, noutras longitudes e latitudes, as sociedades passaram a beneficiar da chamada produção em massa. Este modelo de produção levou a um abaixamento imensamente relevante do preço dos bens, aumentando-se, assim, o consumo dos mesmos. Como resultados destes movimentos, temos, de um lado, o aumento do bem-estar material e, do outro, a poluição, nas suas mais variadas formas. Acredito que será muito difícil resolver a questão ambiental, exclusivamente, pela via da diminuição do consumo. Importa notar que as sociedades, principalmente as ocidentais, já se habituaram a um determinado nível de conforto material de que, dificilmente, estarão disponíveis para abdicar. Como bem referiu Garrett Hardin, no seu ensaio sobre aquilo que ele designou de Tragédia dos comuns, sempre que o benefício de uma determinada prática recai em exclusivo num determinado agente, ao passo que o custo associado a essa prática é, para o próprio, menor do que o benefício e, para além disto, aduzido ao conjunto da comunidade, mostra-se racional ao agente prosseguir com a mesma. É o que se verifica com o consumo. Quando consumimos, todo o benefício recai em nós, enquanto o custo, sob a forma de poluição futura, versa na sociedade como um todo. Além disto, mesmo que optássemos por diminuir o nosso padrão de vida, reduzindo o consumo, não teríamos garantia alguma de que a restante sociedade fizesse o mesmo, podendo, assim, o nosso sacrifício ser em vão. Por motivo de imperativos de consciência, é evidente que algumas pessoas, independentemente destes cálculos, estão e irão persistindo na redução do seu consumo. Fazem bem em fazê-lo. Com isto apenas pretendo sustentar que, realisticamente e olhando à natureza eminentemente egoísta do ser humano, dificilmente se conseguirá, pela via do abaixamento do consumo, uma solução sustentável e duradoura dos problemas ambientais. Creio que, em larga medida, a mesma poderá encontrar-se na revolução da economia circular, já em marcha, mas que necessita de ser acelerada.
A economia circular prende-se com a ideia de que, contrariamente ao verificado na tradicional economia linear, o desperdício de uns será a matéria-prima, de outros, num interminável círculo. No tradicional modelo económico, herdeiro da Revolução Industrial, os materiais extraídos da natureza são processados, transformados em bens de consumo, consumidos e, de seguida, quando deixam de apresentar valor, depositados em aterro ou incinerados (na melhor das hipóteses porque, na pior, acabam na natureza). O que, cada vez mais, começa a ser compreendido é que, na realidade, o lixo é um estado dos materiais que poderá ter mais de transitoriedade do que de perpetuidade. Através de meios tecnológicos, progressivamente mais e mais avançados, de facto, é possível pegar no dito lixo e, qual máquina do tempo, fazer a linha temporal recuar, levando o mesmo a assumir, novamente, formas e características úteis à sociedade. As mais brilhantes mentes da engenharia percebem bem que, para os problemas do quotidiano, a natureza apresenta as soluções mais eficazes e eficientes. Veja-se que, tendo em vista a procura do formato “perfeito” das suas aeronaves, cada vez mais, os engenheiros aeronáuticos estudam a forma aerodinâmica dos corpos de diferentes espécies. Também no concernente à economia circular, há, por parte da nossa espécie, uma clara imitação da natureza. Como bem referem os biólogos, na mesma não existe desperdício. Tudo é transformado e reaproveitado.
Num mundo utópico, se a humanidade conseguisse reaproveitar a totalidade dos seus desperdícios, ganhar-se-ia em várias frentes. Viveríamos num planeta com oceanos e território sem resíduos, sem aterros sanitários, e, talvez ainda mais importante, tudo o mais se mantendo constante, com níveis significativamente menores de emissões de gases causadores do efeito de estufa. Importa não esquecer que a decomposição dos lixos, nos aterros, é um dos principais responsáveis pelas emissões antropogénicas do gás metano, um gás de efeito de estufa, por grama, oitenta vezes mais poderoso do que o dióxido de carbono. Se os nossos desperdícios forem incinerados, de igual modo se gera poluição atmosférica. Para além disto, uma vez que necessitaríamos de quantidades menores de materiais virgens, que, atualmente, somos forçados a retirar do meio ambiente, também aí haveria um menor impacto no mesmo: menor desflorestação, menor consumo de energia para extração e transformação das matérias-primas, só para referir dois exemplos. A tecnologia necessária para tornar esta utopia em realidade está, cada vez mais, ao nosso alcance, faltando, agora, uma intensificação na mudança das mentalidades. É necessário que todos entremos numa espécie de “orgia de reciclagem”. Reciclar tudo, desde o folheto que nos entregam na rua ao velho frigorífico que, após vistoria técnica, é dado como inoperacional. Isto do lado da gestão dos nossos resíduos. Do lado do consumo, devemos consumir produtos que provenham de materiais reciclados. Há já todo o tipo de bens de consumo que seguem essa orientação. Calçado e embalagens feitas a partir de plástico reciclado e retirado dos oceanos, enfim, é um mundo de possibilidades. Basta que estejamos atentos às informações existentes nas embalagens.
Do ponto de vista individual, é isto que se afigura possível fazer. E já não é pouco. Na ótica governamental, defendo que os governos de todo o mundo, numa ação porventura concertada pela ONU, deveriam tornar o lixo, que se encontra espalhado por todo o lado, num recurso com valor económico. Tal levaria os cidadãos, até mesmo aqueles, possivelmente, menos preocupados com o ambiente mas atentos à sua carteira, a se tornarem recolectores de lixo. Imagino um futuro em que o cidadão comum é financeiramente recompensado pela entrega, em centros de reciclagem acreditados, de resíduos. Quando tal acontecer, um pouco por todo o lado, teremos, recolhendo lixo (algum dele com dezenas de anos) exércitos de cidadãos. Deste modo, obter-se-ão resultados que departamento camarário algum, sozinho, algum dia conseguirá obter. Esta utopia começa a apresentar muito de realidade. Existem já, por todo o mundo, experiências de incentivos financeiros à reciclagem. Será, de igual modo, importante que os Estados legislem, no sentido de, por um lado, obrigarem as empresas a incorporar nos seus produtos quantidades cada vez maiores de materiais reciclados e, por outro, sempre que haja alternativas viáveis, de proibi-las de utilizar materiais, em relação aos quais, ainda não exista a possibilidade técnica da reciclagem (a lista deste tipo de materiais é cada vez menor mas, ainda, é uma realidade).
Está nas nossas mãos transformar o mundo. Encontramo-nos num ponto de desenvolvimento tecnológico em que, felizmente, em larga medida, já não necessitamos de claudicar o nosso conforto material para, assim, se salvaguardar a preservação ambiental. Basta que usemos a nossa inteligência.
♦♦♦
Ricardo Amorim Pereira, Doutorando em Ciência Política, com interesse na área da ecologia política.
You must be logged in to post a comment.