Escapei enquanto ele se descuidou e deixou o portão aberto, não sei nem como eu fiz para correr com todos os filhotes que carrego na barriga. O homem que me maltratava naquela casa repetia que enquanto eu parisse, ele iria matar os meus bebês porque eram lixo: “Que nem você, cadela feia”, dizia ele com um cinto na mão prontinho para me bater com raiva.
Nunca soube o que ele fez com a minha primeira ninhada, acho que vendeu. Tive mais de sete filhotes e quando o último nasceu, eu desmaiei; só lembro que meu corpo inteiro doeu por dias e que nenhum dos meus nenéns conseguiu provar meu leite porque o homem levou eles longe de mim na hora.
E não quero que isso aconteça com esta ninhada, é por isso que estou fugindo, porque meus filhotinhos não merecem o maltrato que recebi daquele homem malvado, tão violento, tão mesquinho.
Continuo correndo o mais rápido que as minhas patas, e a minha enorme barriga, me permitem.
Faz dias que não como e estou me sentindo muito fraca, mas parar não é opção, tenho que continuar. Vai que ele me acha, vai que ele mata todos nós. Ele é capaz, e não, não vou deixar que isso aconteça.
Não sei muito bem para onde que eu posso ir porque aquele homem nunca me deixou sair, então vou cheirando tudo no meu caminho e tento ficar bem longe do fedor daquele cara.
Corro até que não sinto mais seu cheiro.
Estou tão cansada, tô com sede, tô com fome.
Não posso mais.
Me deito fora de um lugar que tem um cheiro muito gostoso, tem cheiro de comida, daquela que nunca pude experimentar, daquela que fazia meu focinho encher de água. Minha respiração está alterada e sei que é uma péssima ideia parar, mas as minhas patas não conseguem mais correr.
Fecho os olhos e me resigno.
“Quê que foi, Caramelo?”, escuto aquela pergunta vindo de uma voz muito meiga, desconhecida.
Abro os olhos e vejo a dona dessa voz: é uma mulher baixinha; eu sei o que é uma mulher porque o homem malvado tinha uma morando com ele, a tratava como me tratava.
“Você se perdeu, neném?”, ela pergunta e acho que está falando comigo.
Que coisa esquisita, ninguém tinha falado comigo desse jeito, sem gritar, com calminha.
Olho para ela e dou uma cafungada disfarçada: o cheiro da mulher é gostosinho, tem cheiro de fruta, mas também percebo outro aroma, uma coisa doce que não consigo decifrar.
A mulher se aproxima a mim, mas eu ainda tenho medo, então fico encolhida aguardando o pior.
“Não, não, calma, eu não vou lastimar você, só quero ver se você está ferido. Está ferido, Caramelo?”, a mulher me pregunta.
Sinto uma vontade enorme de falar para ela que sim, que estou ferida faz muito tempo, que aquele homem malvado de quem estou fugindo batia em mim, que ele me cruzava com muitos cachorros e que eu não queria. Mas não falo como ela, não posso confessar para ela todas essas dores.
A mulher passa as suas pequenas mãos na minha cabeça delicadamente e nesse momento choramingo, jamais tinham me tocado dessa maneira e pelo meu peito passam um monte de coisas que não consigo entender.
É isso que os humanos chamam de carinho?
“Tá chorando por quê? Não, não chore. Tudo vai dar certo, não chore porque eu também vou chorar”, ela fala baixinho e sinto que ficou triste pela minha culpa.
Paro de choramingar, não quero que a mulher fique triste.
Me levanto com dificuldade e ela me olha, surpresa.
“Eita! Você não é Caramelo e sim Caramela, meu bem! E cê está prenha!”, a mulher diz animada e vejo que dá uma risadinha.
Como assim que tô prenha?
“É por isso que você está sensível pra caramba, né, vida? A gravidez nos deixa assim a todas. Olha, eu também vou ter um neném”, a mulher fala e bota as suas mãozinhas na barrigona dela, que é igual a minha, só que um pouco mais arredondada.
Aproximo meu nariz no ventre dela e dou uma cheirada, agora entendo de onde que vem o outro aroma doce.
“Você está com fome? Tá, né? Olhe para você, tá só no osso!”, ela reclama.
Vejo ela entrar no lugar que tem cheiro de comida e volta depois com um prato cheio de algo que me faz babar sem controle.
“Você pode comer tudo, viu? É o que a gente tem hoje no boteco. Eu sou a dona, sabe?”, a mulher me explica e tento escutar ela, mas a fome está me deixando maluca, então começo a comer, bom, a devorar o que ela deixou no prato.
Caramela.
Será que esse é meu nome? Nunca tive um nome.
“Quando você terminar, não vai embora, fique aqui que nada ruim vai lhe acontecer, eu juro”, a mulher garante, faz carinho no meu lombo e o meu coração dispara.
Meu rabo, que estava quieto, fica abanando desenfreado.
“Amor! Venha ver a Caramela, venha ver que linda que ela é!”, a mulher grita cheia de alegria pro fundo do boteco.
Acho que estou bem.
Acho que estou em casa.
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Via Plaza (Cidade do México, 1989)Estudante de Letras Modernas Portuguesas na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), membro do mapa de escritoras mexicanas contemporâneas
(https://mapaescritorasmexicanas.wordpress.com/),
participante do X Encuentro de Jóvenes Escritores de Iberoamérica y el Caribe em La Habana, Cuba; participante do Encuentro Internacional de Escritores y Artistas del Movimiento Internacional de Escritores por la Libertad – M.I.E.L. e participante da Feria Nacional del Libro de Escritoras Mexicanas – FENALEM 2021.
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