POESIA de – Lua Pinkhasovna

 

Espelho de Afrodite

Entre constelações, esferas rochosas, violentas estrelas mortiças e cintilantes cometas, nascer Vênus pode ser considerado uma afronta ao restante dos planetas
Pisando em trompas, ventres, ovários e vulvas e aquela mistura que poucos sabem ao certo o nome, lambuzo-me de sangue menstrual derramado nas ruas
Há polícia? O que há? Será que alguém me escuta? É claro que não, eu sou notícia corriqueira de uma realidade fantasticamente banal
O sangramento da violência não é repudiado, apenas é visto com asco aquele que mostra que sou um ser próprio, forjada em minha natureza
sem ser sexy, sendo apenas espécie
e que sinto por fora e por dentro me desmanchando em vermelho

A liberdade nas linhas sinuosas das páginas Legais só existe por lá
Lá, lá onde a lei é dos homens e julgada por eles, onde ela morre sem ser usada enquanto a sociedade ainda não evoluiu ao ponto de efetivá-las nas calçadas, nas pedras soltas que marcam, dentro de casa, que muitas vezes machuca mais que as ruas desconhecidas
Há alguma que diga que de fato sente-se livre? Tem certeza? Grite para o mundo! Veja as mãos lhe tapando a boca

Mas eu nasci sob este manto, eu sou pudica para quem decide que sou, mas sou promíscua por pouco, pois não nasci com respeito em mim, eu preciso me dar, preciso me encaixar no que consideram uma mulher correta antes
pois sou espelho de Vênus, Afrodite, com Ártemis escondida na mente
Na beleza estranhamente contraditória dos males do mundo que em meu colo foram jogados
Sou Eva, Pandora, Lilith
Atiramos fogo nos deuses
Só servimos quando somos santas e não como seres
A causadora não foi a maçã, a caixa, ou a força
Mas a liberdade, que é a verdadeira desgraça causadora de tudo desde os primórdios para quem não aceita que existimos por nós mesmas
Eu não vim de uma costela, você veio de um útero!
Sou espelho de Afrodite, ensinada desde a infância a ver o outro refletido nele
Que tem dentro do peito contos de fadas, o amor idealizado, as belezas, mas sempre encontrando pelo caminho tudo aquilo que prefere deixar esquecido no passado
O papel feminino delicado criado socialmente não condiz com a realidade
Ser mulher é violento, feio, pesado!
Não por nós mesmas, mas pelo que nos é ofertado

Que minhas características não sejam consideradas fraquezas, uma vez que, ser forte não é apenas criar dor, mas também aguentar, ultrapassar, superá-la
Quero ser considerada louca, histérica, desequilibrada
Pois a mudez me rasga e aquelas que a utilizam não personificam-se em ser, elas nunca vivem suas próprias vidas pois nessa realidade o tom de voz que chega aos tímpanos é apenas o grito
Quero o luxo de desagradar, de não servir, de não me preocupar com os reveses de apenas existir
Não quero ser tocada, chamada
Quero passar despercebida nessa jornada
Quero ser o centro do meu problema, quero falar de mim, não do outro
Agora sou eu, fique em silêncio e espere a sua vez!

Desejo não ser considerada complicada, complexa, incompreensível, pois julgam-me a partir deles mesmos e não a partir de minhas próprias características
Eu existo, eu existo!
Eu possuo vontades
Eu não quero ter filhos, não quero casar, quero liberdade!
Pois sem ela, tudo que eu fizer apenas me aprisionará mais dentro do gênero dessa casca
E a pergunta que nunca quis calar, desde Nietzsche até Freud, ninguém conseguiu nos entender, será que ao menos tentaram?
Pois respondo
O que quer a mulher? Poder ser ela e dela mesma!

Somos a mater dolorosa que sangra pela vida, sem vontades, que é usada ao bel prazer alheio, aberta quando necessária, fechada para si mesma, sem nunca dar à luz a sua própria existência no mundo
Em uma constelação escura de galáxia sem saída ou então, debaixo do mesmo teto, em plena luz do dia, eu não estou segura
Não interessa a idade
Como de costume, no caminho, olhos maliciosos, boca salivando espreitando coxas, seios e nádegas. Na mira, a passos rápidos pela rua, ela questionava-se: o que mais precisaria fazer para demonstrar ser apenas uma criança voltando pra casa?
E aquelas ruas nunca mais a viram passar por lá

Há pouco tempo, a poetisa que vos fala, inundada em preconceito, estaria assinando esse texto apenas com as iniciais do seu nome ou com um pseudônimo masculino, hoje em dia bato no peito e digo: — SOU LUA! — em caixa alta
Sou mulher escritora! Escrevo porque quero, escrevo porque acredito que a arte muda a realidade e embeleza o mundo, escrevo porque sinto e as letras são a minha voz,
escrevo para não ser só mais uma nas estatísticas de um país omisso a nós!
Mas enquanto redijo torto e coloquialmente sobre ser mulher
buscando as palavras necessárias para findar a poesia,
só encontro significados dolorosos em cada linha do dicionário feminino.

♣♣♣

Café de Amanhã

Pão na chapa enche de açúcares
os vasos sanguíneos do burguês ao acordar
de açúcares padece o corpo cansado
sem pão na chapa na mesa ao levantar

Frutas fornecem nutrientes essenciais,
lipídeos e vitaminas que enchem o cérebro de energia;
uma uva, uma manga, uma banana
trocam de preços todos os dias no mercado:
a saciedade está tão cara comprar!

Mas o pão, o pão têm simbolismo divino
na alimentação
foram multiplicados, são o corpo de Cristo
cada pedaço fora dividido após terem sido ungidos
em suas santas bênçãos

Hoje, à mercê do Estado
que não é divino,
nem pai, nem democrático,
o pão, de tão caro contrasta desigualmente
com miseráveis salários
condenando à inanição!

O pão divide o burguês do proletário;
enquanto a mão de um estica-se
para no miolo algo ali passar
outras, juntas, rezam à noite
para quando, no café da manhã
do amanhã,
o estômago logo acordar.

♣♣♣

Léxico dos Sentidos

Cansei de regras
Teoremas
Cansei das ênclises
Próclises
E sempre detestei as mesóclises

Querer-te-ei?
Como poderia querer-te no futuro?
Ter você agora seria o único presente mais que perfeito aceito pelas minhas linhas

Preciso criar um novo tempo pro pretérito
Um que eu possa usar em qualquer texto
E sirva para todos os momentos com você

Eu quero rasgar o verbo
Expulsar todas as minhas hipérboles
Como alforria
Quero gritar interjeições
Sem analogias
Quero a palavra nua
E sentir todos os paradoxos da minha existência saindo pela boca

Não quero o uso correto do idioma
Quero gaguejar
Me lambuzar nos erros
E delirar entre as palavras tão livres expressadas

Quero cuspir palavrões
Buscar o sentido pejorativo
Escrever fora das linhas
Rabiscar tudo escrito
E quem sabe rasgar a folha

Quero me libertar da minha forma humana
Amar outras espécies
Afiar minhas presas
Usar minha prosopopeia
E me transformar em quem
talvez seja quem de fato sou

Eu quero a sinestesia
Aprender
Prender
A tua língua em mim
E jamais usar amar no verbo oculto

Eu quero abusar dos neologismos
E encontrar a palavra exata que sirva como palíndromo
Que mesmo que você leia de outras direções, o sentido será o mesmo

Mas antes, não se esqueça de respeitar meus parágrafos
Pois são eles que definem o começo
das minhas histórias

Então, engula minhas reticências
Não pause nas vírgulas
Saboreie cada silêncio
E você estará sentido o verdadeiro gosto do meu léxico
E o que vem depois serão palavras sinceras
sem pontos finais.

♦♦♦

Lua Pinkhasovna é o pseudónimo de Maria Gabriela Cardoso, 24 anos, gaúcha atualmente morando em Santa Catarina. Apaixonada por todos os tipos de artes, mas principalmente as que envolvem letras. Escreve contos, poesias, crônicas e novelas com o pseudônimo Lua Pinkhasovna para revistas, podcasts e antologias, assim como também para seus canais próprios intitulados Excertos Diários.

@luapinkhasovna