A GUERRA E O AMBIENTE – por Ricardo Amorim Pereira

A guerra e o ambiente.
Preocupações coexistentes.

Praticamente ninguém nega que vivemos tempos de exceção. Ainda não ultrapassamos, por completo, a mais grave pandemia em 100 anos e, no início deste, deparamo-nos com uma guerra de contornos anacrónicos. Como fruto dessa guerra, ressurgiram os fantasmas da confrontação nuclear; a ordem internacional foi abalada, abrindo-se a porta para o reaparecimento de um tipo de guerra que julgávamos fechado nos livros de História – o que visa o alargamento territorial; o custo de vida, um pouco por todo o mundo, disparou. Neste contexto, que lugar passou a ocupar a questão ambiental na escala de prioridades dos cidadãos comuns bem como na dos políticos que nos governam? Em 1971, Ronald Inglehart afirmou que, desde a Segunda Guerra Mundial, na Europa Ocidental, terá havido uma mudança nos valores priorizados pela sociedade. Segundo este autor, nesses países, o aumento, quer do bem-estar económico quer dos níveis de segurança, permitiu a passagem de paradigma nos valores de um, assente no materialismo, para um outro, assente no pós-materialismo. A ideia subjacente a esta teoria é a de que apenas quando as necessidades mais básicas estão satisfeitas é que a atenção se move para questões que não se prendem, diretamente, com a subsistência. Na mesma linha de raciocínio, Müller-Rommel (1998) referiu que, nos anos 70 e 80 do século passado, nos países desenvolvidos, se assistiu a uma mudança cultural, marcada por um forte crescimento das preocupações sociais que vão para além da satisfação das necessidades básicas. A igualdade de direitos, a atenção às minorias, as preocupações ambientais, a solidariedade para com o chamado Terceiro Mundo, as exigências de desarmamento, entre outras, assumiram-se como novas exigências da sociedade para com a classe política.

Deste modo, será de esperar que, efetivamente, com o agudizar da guerra e seus impactos um pouco por todo o mundo, a questão ambiental – na qual, indubitavelmente, se destaca a ameaça do aquecimento global – vá, quer na mente do cidadão comum quer na do decisor político, perdendo força. Esta é uma tendência que precisamos, na medida do possível, de contrariar. Não haja dúvidas de que, prevalecendo o bom senso e afastado o cenário da confrontação nuclear, por mais terrível e chocante que seja a guerra que opõe a Rússia à Ucrânia (ou, melhor dizendo, a Rússia, aqui e além apoiada pela China, ao mundo sob a esfera de influência norte-americana), a maior ameaça que a Humanidade enfrenta continua a ser a ambiental. É por este mesmo motivo que o Secretário Geral da ONU, o “nosso” António Guterres, não deixando de manifestar, amiúde, repulsa e preocupação pelo que se está passando na Ucrânia, persiste em não deixar de salientar, uma e outra e outra vez, a questão ambiental, mormente o aquecimento global antropogénico, como a grande ameaça atual com que a Humanidade se confronta. O leitor mais crítico dirá que é fácil afirmar-se tal, não tendo bombas a cair em cima dos nossos telhados e havendo o que comer. É evidente que assim acontece. Não é justo nem sensato querer que, nesta fase, o povo ucraniano veja no aquecimento global a sua principal e imediata ameaça. Não podemos, todavia, perder de vista que a Humanidade esgotou já os seus créditos para com o ambiente. Sim, o cenário é grave. Segundo o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), para que o aquecimento global antropogénico, até ao final do século, seja contido nos 1,5 graus Celcius – o nível considerado pela comunidade científica como relativamente seguro para a estabilidade climática, logo, para a estabilidade da nossa Civilização –, é necessário que se atinja o pico das emissões globais de CO2 no mais curto prazo possível (nunca após 2030) e que, depois de se atingir esse pico, se inicie uma trajetória consistente de descida (tanto mais acentuada quanto mais tarde se atingir o tal pico). Para já, as emissões globais de CO2 continuam a subir.

Importa, todavia, clarificar alguns aspetos sobre a relação entre as guerras Rússia vs. Ucrânia / Humanidade vs. Aquecimento Global que, me parece, têm estado envoltos numa certa confusão. Surgiu a teoria de que, por via do embargo ocidental ao gás russo, estaríamos a incorrer num atraso irrecuperável na nossa ambição de fazer baixar as emissões globais de CO2. No cerne desta ideia está o facto de que, na produção de energia elétrica de alguns países europeus (destaca-se a Alemanha), o gás russo estaria, antes da guerra, a ser usado como alternativa ao carvão, esta, uma forma mais poluente de se produzir eletricidade. Sobre isto gostaria de referir que a queima de gás natural não é uma forma limpa de se produzir energia elétrica. Apesar de ter “natural” no nome, o gás natural não deixa de ser um combustível fóssil. Não se trata de uma energia limpa e renovável, como o são as energias hídricas, solares, eólicas, entre outras. Veja-se que, por exemplo, segundo a Federação Europeia de Transportes e Ambiente, o aumento do uso de gás natural no transporte rodoviário será, em grande parte, “ineficaz na redução das emissões de gases com efeito estufa (GEE)” Veículos a gás natural são forma dispendiosa e ineficaz de cortar emissões nos transportes – Quercus.

Segundo o conhecimento atual, é um facto que a produção de energia elétrica resultante da queima do carvão é a forma mais pesada de se produzir energia elétrica (do ponto de vista da sua emissão de CO2) mas isso não significa que a produção de energia elétrica através da queima de gás natural representasse emissões zero. Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer que um outro impacto da atual guerra – o aumento do preço do petróleo –, por muito que tal nos custe, quer por via de uma maior racionalidade no uso dos transportes quer por via dos incentivos criados, às empresas e indivíduos, para a compra de meios de transporte mais eficientes do ponto de vista energético, apresenta um impacto positivo na redução das emissões globais de CO2. Desconheço se esta guerra virá a ter um impacto líquido negativo ou positivo – os aumentos subtraídos das reduções – nas emissões globais de CO2. Em rigor, creio que, ainda, ninguém o saiba. Contudo, importa salientar que, seguramente, a análise é mais complexa do que aquela que tem sido oferecida às opiniões públicas por uma comunicação social que, há muito sabemos, evita as explicações complexas e aprofundadas.

Impõe-se que as sociedades fujam do debate troncado centrado numa suposta dicotomia “apoio à Ucrânia vs. defesa ambiental”. Claramente, as duas realidades são compatíveis. Podemos sancionar a Federação da Rússia, decretando embargos ao seu gás, enquanto apostamos nas energias renováveis e limpas. As únicas que são inesgotáveis e que estão disponíveis em todo o lado onde haja água, vento e sol. Impõe-se que as opiniões públicas dificultem a vida aos políticos e elites económicas que, eventualmente, possam ver na atual guerra um pretexto para o imobilismo na matéria da transição energética. Sim, é verdade que, no muito curto prazo, não há como evitar substituir o gás russo pelo carvão mas, no médio prazo, isso só acontecerá, apenas se se quiser que assim aconteça. Quanto ao mais, esta é a hora de a nossa espécie mostrar que merece ter o epíteto sapiens. Por mais chocante que seja a miséria humana passível de ser vislumbrada, atualmente, na Ucrânia, importa que todos saibamos que, provavelmente, esta é uma amostra da desgraça com que a Humanidade terá de se confrontar, caso não se domine o mal das emissões de gases causadores do efeito de estufa. Assim, infelizmente, não há mesmo possibilidade de se colocar o tema ambiental em segundo plano.

Fumos ascendem na atmosfera, após um ataque a uma refinaria de petróleo, na região de Donbas, no leste da Ucrânia. Aris Messinis/AFP via Getty Images//

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Ricardo Amorim Pereira, Doutorando em Ciência Política, com interesse na área da ecologia política.