EDITORIAL – OS DESCAMINHOS DO PENSAMENTO – por Francisco Traverso Fuchs

 

Henri Bergson

“I would rather have questions that can’t be answered than answers that can’t be questioned.”

Richard Feynman

O que é pensar? Como responder, sem afetação e sem aduzir enigmas, uma pergunta que gerou e continuará gerando intermináveis questionamentos? Pensar é estabelecer (e resolver) problemas. Porém mesmo esta resposta simples, ou aparentemente simples, oculta um abismo de complexidade. O que diríamos, por exemplo, se descobríssemos que estabelecer e resolver um problema não é uma atividade puramente intelectual, mas envolve toda uma dimensão afetiva? E se chegássemos a descobrir que o problema é uma virtualidade inesgotável que exprime a dimensão ontológica do pensamento?

É bem possível que tais complicações só interessem aos estudantes de filosofia, mas a noção de problema, nela mesma, interessa (ou deveria interessar) a todos, filósofos e não-filósofos. Há boas razões para isso. O alcance da noção de problema é universal: os problemas são de toda ordem (especulativa, prática, estética…) e emergem em todas as áreas de atividade. Eles nem mesmo estão necessariamente circunscritos à esfera humana, pois todos os seres vivos são, por hipótese, capazes de estabelecer e solucionar problemas. Se essa hipótese estiver correta, a capacidade de problematizar seria coextensiva à vida, e a noção de problema seria, mais do que uma categoria humana, uma realidade vital.

Mas se todos os seres vivos resolvem problemas, foi apenas no homem que a potência de problematizar conquistou uma relativa autonomia. Se os seres vivos constroem máquinas moleculares, o homem é capaz de estudar e compreender o funcionamento dessas máquinas; se seres vivos fazem de seus corpos obras de arte e de engenharia, o homem é capaz de produzir poesia e catedrais; e se, como mostrou Frans de Waal, seres vivos não-humanos são capazes de sentimentos morais, o homem é capaz de escrever uma Ética. Em resumo, a vida é sinônimo de evolução criadora, mas (até onde sabemos) apenas o homem levou a criação às últimas conseqüências.

A potência de criação do ser humano não é, contudo, garantia de sucesso. Em primeiro lugar, ela não garante sua sobrevivência; também a espécie humana pode, como tantas outras na história da vida na Terra, ficar pelo caminho. Em segundo lugar, a sobrevivência — a mera adaptação ao meio — está longe de ser o mais distintivo signo de sucesso de uma forma de vida qualquer. Muitas espécies obtiveram sucesso adaptativo às custas de se meterem em conchas e carapaças, e perderam, com isso, a mobilidade (que, de acordo com Bergson, caminha pari passu com a consciência). Rigidez e torpor caminham lado a lado. E não devemos iludir-nos quanto a esse ponto: a despeito de sua notável potência de agir e de pensar, também a espécie humana produz para si couraças que a levam a meter-se em becos sem saída. Os automatismos e a tendência ao fechamento multiplicam essas couraças. O florescimento de diferentes culturas e civilizações, que tanto ampliou e diversificou a experiência humana, é também fonte de conflitos que ameaçam a própria sobrevivência da humanidade.

É notável que a espécie mais capaz de estabelecer e resolver problemas possa cair nessas armadilhas (e em tantas outras). É notável, mas não é surpreendente. Nossa competência não é tão grande quanto imaginamos. Muitos problemas são difíceis de equacionar, pois envolvem a compreensão de sistemas complexos que interagem uns com os outros. Mas além de enfrentar dificuldades reais para resolver problemas legítimos, nós produzimos uma quantidade inacreditável de falsos problemas. Segundo Bergson, a crença de que o verdadeiro e o falso são categorias que se aplicam somente às soluções ou respostas não passa de um preconceito adquirido nos bancos escolares; e ainda que sua obra não possuísse nenhum outro mérito, ela já poderia ser considerada fundamental por ter estendido aos problemas a prova do verdadeiro e do falso, e por ter definido as regras segundo as quais pode-se determinar a falsidade de um problema.

Muitas vezes, a ausência de dados não permite que um problema seja estabelecido de forma adequada. Mas o falso problema não deriva, ou não deriva necessariamente, da falta de informação; ele é, nele mesmo, um problema inexistente ou mal formulado. Em outras palavras, a ausência ou a má qualidade dos dados pode dificultar a posição de um problema, bem como pode impedir a resolução de um problema que foi bem equacionado; mas nem mesmo o uso do método científico e o acesso a todos os dados pertinentes são garantias de que um problema terá sido bem colocado. Encontra-se aqui mais uma maneira de compreender as palavras de Heráclito: πολυμαθίη νόον ἔχειν οὐ διδάσκει, muito saber não ensina a pensar.

Os falsos problemas fazem parte das dificuldades intrínsecas que estorvam o pensamento. Mas além dessas dificuldades intrínsecas, inerentes ao próprio pensamento, existem também dificuldades extrínsecas, que são as interferências externas que impedem o correto estabelecimento de um problema. Elas são de toda sorte — pensamento de grupo, agendas diversas e interesses corporativos, políticos, financeiros ou outros — e se manifestam de várias maneiras: supressão ou distorção de dados, manipulação de pesquisas, propagação de falácias e falsos problemas. O esforço da indústria de tabaco para ocultar do público os males causados pelo cigarro é um exemplo bem conhecido de interferência externa.

Assim, o trabalho intelectual possui uma dimensão ética que lhe é inseparável. Sob pena de renunciar ao pensamento, ou de substituí-lo por uma contrafação, o pensador (o filósofo, o artista, o cientista…) não pode deixar-se aliciar por agendas, interesses e pensamento de grupo. Essa autonomia é particularmente difícil, por exemplo, no âmbito da pesquisa científica, cujos custos são geralmente muito altos. Do mesmo modo, seria necessário que governos, universidades, agências reguladoras e meios de comunicação se mantivessem inteiramente apartados de interesses corporativos, privados ou estatais. Isso também é reconhecidamente difícil, pois eles são financiados por esses mesmos interesses.

Nas palavras de minha amiga Júlia Moura Lopes, Athena é “um órgão de comunicação independente de todos os poderes” que garante “a liberdade de expressão do pensamento dos seus autores.” Essa é uma das razões pelas quais muito me orgulha participar desta iniciativa, tanto mais importante numa época em que a liberdade de expressão sofre ataques diários. O filósofo, ou ao menos este filósofo, sonha com uma humanidade que aprendeu a dissolver os falsos problemas ao tempo que se esforça para solucionar, cada vez melhor, os verdadeiros problemas. Há muitos obstáculos à realização desse intento, mas nenhum deles é tão preocupante quanto a ausência de liberdade de expressão; pois, lá onde ela falta, todas as outras liberdades estão ameaçadas. Sabemos que não existe transparência e liberdade de expressão em países totalitários, onde a informação é estritamente controlada e o cidadão comum não tem voz; mas é possível que estejamos assistindo, enquanto escrevo estas palavras, ao nascimento de regimes totalitários no seio de democracias que antes pensávamos consolidadas. Temos, contudo, a vantagem de já saber os rumos que os acontecimentos podem tomar quando uma parcela da população é cerceada, desumanizada e falsamente acusada de ser a portadora de todos os males; e podemos, se quisermos, evitar que a história se repita.

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Francisco Traverso Fuchs é filósofo e leu na revista Nutrients o recente artigo de Lorenz Borsche, Bernd Glauner e Julian von Mendel, que infelizmente será ignorado pelas autoridades de saúde mundo afora.