‘DA VIDA DOS ESCRITORES’
“A própria vida se converte numa citação”
Ralph Waldo Emerson, citado por Jorge Luis Borges
Caro El tigre, sem ousar desacatar este prensamento de Emerson, eu prefiro que a própria vida se converta numa excitação.
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”No seu entender qual é o papel do escritor brasileiro hoje em dia?”
Entrevistador da TV Cultura (1977)
“É o de falar o menos possível!”
Clarice Lispector
É isso aí, querida Lispector. A função cultural e socialmente útil de um escritor é a escrita. A falação não lhe compete. Deve calar-se e deixá-la para os falastrões, os políticos e os pulhíticos.
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O escritor é uma espécie ameaçada de extinção. O que grassa, pulula por esse imundo afora é o escretor, um raquítico espécimen, a dois, três passos de se transviar num excretor. E também medra por aí o escrotor, um escroto* que escrevinha.
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Quanto mais conheço os escretores, os escrotores e mesmo alguns escritores, mais gosto dos analfabetos.
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Atualmente, o papel social dos escretores, dos escrotores e até de certos escritores, tende a ser um papel muito pouco higiênico. Em alguns casos, um papelão um tanto sórdido.
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Pai conversa com a filha sobre o namorado dela. E indaga. Qual é a profissão dele? É escritor, responde ela. Escritor?!, espanta-se ele. Eu perguntei qual é a profissão dele, insiste.
Diálogo do filme ‘Baisers volés’ de François Truffaut
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“Quando me falam de cultura, eu não hesito em sacar da bazuca”
Atual primeiro-sinistro sucialista de Portugal, adepto de Hanns Johst
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Cultura pode encher a cabeça, mas, em regra, esvazia a barriga. Daí que os escritores realmente cultos devem ter uma silhueta retilínea, sem mácula de gorduras e de adiposidades.
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“Se o saber não ocupa lugar, nós temos a cabeça vazia”, lembra a sabedoria popular. Contudo, o saber não ocupa lugar, porque sendo cortês e cavalheiro, cede sempre o lugar à dama que viaja de pé.
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Um livro de ficção com mais de 200 páginas é grosso. Com mais de 300 é uma grossura. Com mais de 400, começa a ser uma grosseria.
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Se a ficção literária anda pelas ruas da amargura, a fricção literária não anda pelas avenidas da doçura. A literatura começa a ficar emparedada num cul de sac. Se ainda fosse o do filme homônimo do Roman Polanski, até seria cinefilamente estimulante e atraente.
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Atenção: ficção sem fricção, ao leitor não dá tesão!
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Para mim, a poesia literária ideal é a maldita. Mesmo que seja mal dita.
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Na sua esmagadora maioria, os poetas coetâneos não passam de uns pindéricos. Pindéricos sim, não confundir com pindáricos. Antes fossem. Serão raríssimos os que cultivam a leitura da arte poética de Pindaro.
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“Hoje em dia, até as prostitutas escrevem romances”
Lygia Fagundes Telles
Escrevem, insigne Fagundes Telles? Duvido. Elas até podem assinar, melhor dizendo, assassinar, mas não acredito que escrevam. No máximo, escrevinham enquanto se vêm ao espelho.
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Vale ressalvar que há pelo menos uma exceção à regra. É o caso da veneziana Veronica Franco. Retratada por Tintoretto, esta cortigiana onesta legou à posteridade uma preciosa coletânea poética de 25 capitoli in terza rima, a fórmula aplicada por Dante Alighieri em ‘A Divina Comédia’.
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“E se for perfeito, um poema te alimenta para toda a vida”
Hilda Hilst
Mas cadê esse poema perfeito, estiamada Hilst? O poema (quase) perfeito que encontrei é ‘O Mostrengo’ do Pessoa da ‘Mensagem’, inspirado na vida e reinado do Príncipe Perfeito, el-rei D.João Segundo.
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“Na casa da poesia, só permanece o que foi escrito com sangue para ser ouvido pelo sangue”
Pablo Neruda
No corpo humano, a casa da poesia é a medula óssea, órgão onde, sem paranças, o sangue se fabrica como um pletórico ato poético. Esse processo se designa, não por acaso, hematopoiese, a poesia do sangue, numa livre tradução.
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Com algumas honrosas exceções, os escritores andam há séculos chovendo no molhado. Deveriam antes empenhar-se em fazer cair alguma chuva dourada…. perdão, eu quero dizer, chuva de ouro.
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“O poeta é incapaz de conter um segredo. Acaba sempre por dizer no poema aquilo que queria guardar só para si”
Eugénio de Andrade
Caro de Andrade, não preciso ser eu gênio para concluir que todo o poeta sofre de incontinência…
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Não há escrita mais criativa do que a dos analfabetos. Malgrado essa verdade consabida, numerosos escretore e escrotores insistem e persistem em organizar ateliês e oficinas de “escrita criativa”. Profissionais do embuste, eles estão é de olho nos euros dos ingênuos e incautos candidatos a escritor
Quem tem de aprender a ter escrita criativa é guarda-livros.
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Refluxo da inconsciência, eis a bisonha técnica adotada por um número crescente de escretores e escrotores modernosos. Presunçosos, eles julgam ter competência, aptidão e talento bastantes para secundarem expoentes do fluxo da consciência como Arthur Schnitzler, Marcel Proust, James Joyce, Virginia Woolf, Clarice Lispector ou João Guimarães Rosa, legítimos epígonos do pioneiro Édouard Dujardin.
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À semelhança das outras artes, a literária está igualmente acima e além do bem e do mal. Em vez de pretender veicular boas causas políticas e sociais, ela deve expressar boas consequências estéticas.
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Boas intenções não fazem, não asseguram boa arte literária. Vale lembrar que de boas intenções está o Inferno cheio. Cheio até das boas intenções divinas.
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Com honrosas exceções, na atual literatura, leia-se literatontura ou literatortura, tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é enfado.
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*Glossário:
Escroto – pessoa desonesta, mesquinha, torpe, de má índole.
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Danyel Guerra (aka Dannj Guerra) nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. Com diploma, licenciatura, em História Universal da Infâmia, Guerra perfilha a opção preferencial pela escrita recreativa, assumindo oposição à “escrita criativa”.
Publicou ‘Em Busca da Musa Clio’ (2004), ‘Amor, Città Aperta’ (2008), ‘O Céu sobre Berlin’ (2009), ‘Excitações Klimtorianas’ (2012), ‘O Apojo das Ninfas’ (2014), ‘Oito e Demy’(2015), ‘O Português do Cinemoda’(2015), ‘Os Homens da Minha Vida’ (2017) e ‘Corpo Estranho’(2021).
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