AMAR ANICÉE ALVINA – por Danyel Guerra

“Havia um jardim de Vênus, de roseiras rodeado,

 o grato campo da senhora, que quem tivesse visto amava”

      Floro

AMAR ANICÉE ALVINA

Que deslumbrante sinestesia. Uma noite destas, escutei no rádio, Carminho e Seu Francisco cantando a maviosa Carolina, numa interpretação timbrada pela depuração do sublimado. Inadvertida, a audição me sugeriu uma vertiginosa associação de ideias e de sentidos. Na tela da minha memória tremularam sequências de  Le Jeu avec le Feu (1975), de Alain Robbe-Grillet, reavivando algumas boas lembranças cinéfilas.

Nesse sexto delírio fílmico do integrante do nouveau roman, a canção composta por Chico Buarque é mais que uma música incidental. Cantada em português por uma crooner de cabaré, ela se insinua sedutora, ciciando-se numa cadência leitmotiv, ao longo da trama deste falso thriller, mesclando referências ao cinismo do film noir, com pitadas muito spice de um erotismo sofisticado, quando não exótico.

Creio que o cinescritor foi muito feliz na escolha deste tema índice. Não tanto devido a circunstância de ser Carolina o nome da heroína acolhida, sob a proteção do detetive Frantz (Jean-Louis Trintgnant), numa casa dos prazeres excêntricos, com laivos kinky, um serralho de luxuosa luxúria. Mas, antes de tudo, porque a meiguice soprada pela letra e pela melodia é uma declaração de amor ambivalente, tanto a personagem como a atriz. Um amor que, à imagem do fogo camoniano, arde sem se ver e sufoca o ignis fatuus das vaidades e frivolidades humanas.

 Um tríptico incompleto

 Le Jeu… assinalou a continuação do encontro cinematográfico de Alain Robbe-Grillet com Anicée Alvina, a intérprete de Carolina. O filme se configura como o segundo quadro de um projetado tríptico, em que ela seria, ao mesmo tempo, a musa, o modelo, a retratada. Nessa terceira entrega, conforme as ideias de Alain, Anni não mostraria “même pas les chevilles.”(1). Um apogeu que ficou para sempre no script do roteiro.

O primeiro quadro concebido por Robbe-Grillet  não poderia ter título mais premonitório: Glissements Progressifs du Plaisir (1974). O que me estimulou a vê-lo, numa segunda matinê do portunense Cinema Passos Manuel, foi antes de mais, a caução cultural do diretor, assente nas suas relações com os cineastas do grupo da Rive Gauche, expressa de modo exemplar na autoria do argumento de L’Anée Dernière a Marienbad, de Alain Resnais. E não tanto devido a qualquer excitação prévia sugerida pelas fotos promocionais que clicavam a atriz protagonista generosamente desnudada.

A pelicula recolhe, contém e transborda uma torrente de derivas reais e imaginárias.  Anicée dá corpo e alma a Alice, uma jovem acusada do assassinato da amiga Nora (Olga Georges-Picot).  Alice protesta inocência de um crime que aparenta ter sido o epílogo de um ritual de lúbrica bruxaria, em que ela disporia da vítima como se esta fosse uma boneca insuflável. E, na verdade, ela é uma libidinosa feiticeira.  Presa na cela branca de um convento, a possessa Alice inventa o país das maravilhas eróticas, onde impera a lei do desejo, o feitiço da lascívia, a compulsão do amor lésbico, a exaltação do amour fou, em que as únicas regras invioláveis são as das mulheres. Na reconstituição do crime, sua advogada (interpretada logicamente por Olga) cede a seus caprichos ternamente sáficos.

Numa dimensão conotativa, Glissements… não ambiciona ser senão um cinemático texto-pretexto, concatenado, articulado, concretizado para excelsar a beleza cinegênica de Alvina. A narrativa se estende, se desenrola, como uma passerelle aveludada, pintada de escarlate, urdida para que ela desfile soberba e soberana seu profano e sagrado despojamento edênico. Paradigmática será aquela cena em que Alice pinta o holy body  com le sang des autres, para de imediato estampar o sugestivo frente-e-verso na parede alvina como a neve.

Na época desta produção, era pouco frequente que no Cinemarte/Cinemensaio francês, europeu e até mundial, o nu feminino fosse desvelado de modo, duplamente, tão frontal e audaz, elegante e desassombrado. Tais ousadias eram um procedimento a que recorriam vulgarmente, e com reiterada vulgaridade, as produções cineróticas mais corriqueiras, taxadas com a notação “X rating”, olhos gulosos, visando apenas o sucexo e o heavy metal das bilheterias.

Anicée Alvina atua, age como um duplo Ás, trunfo triunfante de Glissements…, uma fita que a pátina do tempo se encarregará de tornarum filme de culto, um dos clássicos do filmerótico artensaístico. Por muito que alguma massa crítica o (des)classificasse como um porno chic.

A doçura da pomba, a peçonha da serpente

Esta francesa, nascida em 1952, sob o signo de Aquário, veste/despe, com pueril à vontade, o robbe da bruxinha terrível e sapeca, uma (sa)fadinha lésbica, menina travessa, levada da breca. Mas que se enleia, ao mesmo tempo, como uma mulher faceira/mulher fada/mulher fatal, ciente da eficácia das suas mandingas e perversidades, que não dispensam e incluem requintes bondage. A doçura da pomba e a peçonha da serpente se conciliam no mesmo corpo e espírito. A mignon de Boulogne-Billancourt  refulge no ecrã como uma encarnação cândida e perversa de Vênus.  Arrisco mesmo que Ticiano não hesitaria em convidá-la para posar no lugar da modelo da tela Vênus de Urbino. Óleo que adequadamente emoldura uma das cenas mais fogosas de Le Jeu avec le feu.

Pela minha parte, prefiro reverenciá-la como uma fidedigna corporização de Anahita, a deusa persa que personifica o poder fertilizador da Lua, da água e da chuva. Padroeira da reprodução, ela purifica o sêmen do homem e abençoa o útero e os seios da mulher. Lembre-se que Anicée era filha de uma francesa e de um iraniano e que tinha Schahmaneche ou Shahmanesh como sobrenome oficial.

O alvo fascínio da sua cinegenia voltaria a vibrar em dois filmes da mesma época. Une Femme Fatale (1975), de Jacques Doniol-Valcroze – cineasta do grupo de Les Cahiers du Cinéma– e Isabelle Devant le Désir (1975), de Jean-Pierre Berckmans. Em ambas produções, suas personagens estão no epicentro da intriga passional-sexual. Esposas entediadas e desiludidas, Anne Korber e Isabelle se evolvem em relações adulterinas, traindo amoralmente os maridões.

“Lá fora, amor, uma rosa morreu, uma festa acabou, nosso barco partiu”

 Numa quente tarde de julho de 1975, subindo a portuense rua 31 de janeiro, comprei, na banca de revistas de uma livraria, a  Lui, em que um dos destaques de capa era um “face a face” de Régis Débray e de Costa-Gravas, diretor do célebre “Z” (1969), a propósito de Séction Spéciale (1975). Havia, contudo, uma outra “seção especial”. Folheando-a, enquanto tomava uma imperial no Guarany, fui brindado, par hasard, com a visão de um ensaio de charme em que Anicée posava gloriosamente desnuda, exibindo seu equilátero triângulo púbico. Do portfolio, admirei detidamente aquela foto em que a brunette aparece gaiata, evocando uma sacerdotisa do deus Priapo, zeladora das rosas de Floro num jardim onde é a rosa púrpura mais viçosa e perfumada.

No texto que abria o ensaio, ninguém menos que Robbe-Grillet derramava uma cascata de afetos e desvelos pela sua découverte.

A dado passo, o ensaísta faz uma advertência. “Ne vous fiez donc pas, lecteur naïf, aux mines engageantes  ici présentées, qui vous paraîtront sortir sans fard de la nature. C’est au contraire le comble de l’art. Se laisser voir nue, de toute façon, ne dérange pas le moindrement Anicée.”(1)

Exemplificando esse alarde de “naturalidade”, Alain adianta que “au bout de quelques  jours du tournage de Glissements…, Anicée s’aperçut que les autres comédiennes  demandaient   qu ‘on vide le plateau pour les scènes déshabillées. Elle exigea donc que l’on en fit autant pour elle. («Il n’y a pas de raison, après tout!») Puis, oubliant aussitôt sa nudité, elle court à l’autre bout des studios ébahis pour chercher ses cigarrettes.”

“Lá fora, amor, uma rosa nasceu, todo mundo sambou, uma estrela caiu”

Não demorará, porém, que o vício contamine e mine a virtude da cidadã e da atriz, que debutou em ‘Friends’ (1971), de Lewis Gilbert. O fogo consumirá paulatino a mortalha, ativará a nicotina, o alcatrão, danificando, tóxico, os pulmões, enquanto o fumo se evola de uns lábios doucement tingidos de carmesim.  A mortalha de organza, que há-de envolver seu corpo esbelto, vai sendo silenciosamente tecida pela Parca. Após o plenilúnio vivido nas envolvências dos delírios fetichistas de Robbe-Grillet,  a Lua da belle comédienne entrará na fase de quarto minguante.

Anni não terá, todavia,tempo, muito menos pulmões, para o fôlego de um novilúnio. Corroída por um câncer imparável, a excelsa parisiense expirará no dia 11 de novembro de 2006, aos 53 anos.

Revendo hoje os filmes que iluminou com a chama inapagável de uma auréola tão santa como sensual, retenho a ideia de que somente um sátiro prenhe de cupidez poderia nela enxergar apenas uma peça de carne viva, nua e crua, apetecível, degustável, desfrutável. Carne, como todas, condenada mais cedo ou mais tarde a uma inexorável putrefação. De uma matéria muito mais fluídica e transmutadora se poetisa a imagética cinematográfica.

Agora e para todo o sempre, eu continuarei venerando Anicée como uma teofânica manifestação de um ser venturosamente híbrido, onde a casta ninfa e a fescenina bacante coabitam em plena harmonia. Na minha agência de notação cinéfila, ela só pode aspirar a uma cotação: AAA… Amar Anicée Alvina.

Nota:

Revista Lui, edição de maio de 1975, Paris, p.48

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Danyel Guerra (aka Danni Guerra) Faz parte do Conselho Editorial de Athena. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História Universal da Infâmia pela FLUP. É jornalista nas horas (mal) pagas e autor literário nas horas com vagas.
Publicou os livros ‘Tomás Gonzaga-Em Busca da Musa Clio´’, ‘ Amor, Città Aperta’, ‘O Céu sobre Berlin’, ‘Excitações Klimtorianas’, ‘O Apojo das Ninfas’, ‘Oito e demy’, ‘Fernando de Barros-O Português do Cinemoda’ e ‘Os Homens da Minha Vida’.