ALGUMA POESIA de Ieda Estergilda de Abreu

Mário Cesariny Figuras de Sopro, 1947

Bruxices

Queria voar.
Poeira, persianas, vassoura de palha, vôos razantes pela casa,
cabelos de palha e vento, vassoura no canto da sala calada, varrida.
Quatro panelas no fogo, boiando no espaço
cansaço.
Quatro panos de prato, quatro panelas que amofinam
quatro panos pra lavar.
Queria voar.

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Nuvens, quadros

O lobo e a princesa correm pelo céu
um trem cruza o azul
na mais alta e volátil velocidade.
O lobo corre, a princesa desfalece e desaparece
na sombra da nuvem.
O vento forma icebergs de luz

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Gato de papel

O gato miou, deu voltas ao redor dele mesmo e foi para o canto da página,
uma página azul com estrelas que tinham escapado da noite.
Um sol, desses que aparecem nos desenhos, riu para o gato que fosforeceu,
piscou para a luz que entrava pela janela da página,
depois continuou quieto no seu canto. Estava ali só para encantar.

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O português

O mestre navega na língua dos mares mais antigos
dos descobrimentos, das explorações
e faz dela seu porto.
Diz o mestre:
a língua tem regras e mistérios
é aprendizado e surpresa
pede atenção,
tropeça no grave e no agudo
no hífen
no desuso e na ousadia
é lógica, percepção.
Desarma e chateia quem a ignora
enreda quem dela se aproxima
não é bicho de quem se fuja
nem é credo nem altar
mas só existe se antropofágica.
(Em: A Véspera do Grito)

♣♣♣

sensações

o que vai nascer me provoca
ternura e náusea

o que vai nascer soca
minhas entranhas e aumenta
a expectativa.

o que sei dele, do esperado
é meu corpo se abrindo para lhe dar lugar
pesando com seu corpo dentro.

o que vai nascer vive
em leito de água e silêncio
nada sabe do que se fala e trama cá fora.
o que vai nascer não sabe
forma-se a cada dia para o dia de ser entre nós. (Em: Grãos-poemas de lembrar a infância)

♣♣♣

brincadeira

o ovo alvo, calvo, ainda na galinha
nada sabia do exterior, se com ou sem dor.
não tinha ideia da concepção, do amor em questão
um ovo sem as implicações do ser ou não ser
cozido ou frito.
um ovo só, um ovo O, que já cansado de não ser
pôs-se. (Em: Mais Um Livro de Poemas)

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Hoje

é dia de sorrir, sofrer, resistir, como sempre foi com os dias.
Hoje é só mais um dia na coleção do tempo sem começo nem fim.
Passo a limpo o que não entendo, o que não desce na garganta e fere o coração
o que me completa e atordoa,
a tudo libero.
Desfaleço pelo que me pesa: o acordar sem ter dormido, morrer sem ter nascido.
Hoje é onde tudo acontece e transborda. Infinitamente hoje.

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A actriz portuguesa Lucinda Loureiro elegeu de forma espontânea o poema transcrito abaixo e enviou-nos o vídeo, que acrescentamos.

Confesso que fui eu

Facho, fiapo, franja, fama, fútil e fácil fui
enchi os espaços, cantei o hino da ilusão
comi um pedaço do pão do futuro
rolei em pedras escuras
vi minha face boiando no lago
de amarelo e negro circundei a terra
fui dona da noite e da aurora
esculpi minha face em pedra sabão.

Perguntei ao fundo do poço, ao lago
à lua coberta de nuvens, ao lobo, ao cão
à noite que não acabava
me responderam silêncio.
Contei até à última estrela meu caso, minha cruz,
elas sumiram.
Esperei o dia, que trouxesse apenas luz

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Oferenda

Dedico ao destino estes versos
que nunca me pertenceram,
mostras de ofício forjado
ora em tumulto e estranheza, múltiplos silêncios
aceitação.
Na febre das cidades, na calma dos retiros
busco a felicidade.

Ieda Estergilda de Abreu, brasileira, nascida em Fortaleza, estado do Ceará, vive em São Paulo capital. Jornalista free lance,escritora de poesias (com livros publicados), crônicas, pequenas histórias urbanas, íntimas, universais.